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A saúde na agenda internacional e sua influência na abordagem do tema no Brasil

Objetivos Específicos

3. CAPÍTULO 1 SAÚDE NA AGENDA INTERNACIONAL E

3.1 A saúde na agenda internacional e sua influência na abordagem do tema no Brasil

O interesse da comunidade internacional por assuntos de saúde já se fazia presente na Carta das Nações Unidas, em 1945, com o compromisso dos fundadores da organização em “promover o progresso social e a melhoria das condições de vida dos povos” e com o propósito, presente no primeiro artigo da Carta, de “conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário” (ONU, 1945). Em 1946, é criada a Organização Mundial da Saúde (OMS), agência especializada da ONU, com a função de tratar exclusivamente dos temas sanitários, tendo como objetivo “a obtenção do mais alto padrão possível de saúde para todos” (RUBARTH, 1999, p. 123-128).

Para atingir (esse objetivo), busca promover, por meio de diferentes modalidades de cooperação técnica direta com seus Estados-membros e de estímulos à cooperação entre eles, o desenvolvimento de serviços de saúde, a prevenção e o controle de doenças, a melhoria das condições ambientais, o aperfeiçoamento na formação dos profissionais de saúde, a coordenação e o desenvolvimento de pesquisas na área biomédica e de gestão de serviços e o planejamento e a implementação de programas de saúde (RUBARTH, 1999, p. 128).

Na criação da OMS já se fazia presente a definição de saúde que iria influenciar de modo significativo a inserção do tema na Constituição Federal do Brasil de 1988 e, consequentemente, a legislação de saúde do país: “a saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade” (OMS, 1946, p.1). Definição bastante ampla e polêmica, tanto por trazer à baila questionamentos sobre o caráter dicotômico de se pensar saúde e doença, característico do paradigma biomédico, quanto por sua perspectiva bastante idealista.

No Brasil, essa mudança paradigmática permeou toda a reflexão que antecedeu a promulgação da Constituição de 1988, influenciando a inserção da saúde no texto constitucional como um direito de todos e um dever do Estado. De importância fundamental durante esse período, o Movimento pela Reforma Sanitária brasileira, não somente se pautou nos princípios da OMS como ampliou sua proposta, conforme abordado na análise crítica de Nunes (2009):

A Constituição Federal do Brasil de 1988 consagra a saúde como um “direito de

ampla ainda do que a proposta pela OMS. Essa definição ampla havia sido avançada pelo Movimento da Reforma Sanitária, durante as lutas pela democratização do país, e seria vertida no texto constitucional a partir de uma proposta de emenda popular apresentada por aquele movimento. A VIII Conferência Nacional de Saúde (1986), que constituiu um marco decisivo desse processo, definiu a saúde como (i) “o resultado das condições de alimentação, moradia, educação, renda, ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso à posse da terra e acesso a serviços de saúde..., o resultado das formas de organização social da produção, que podem gerar grandes desigualdades de nível de vida”; (ii) uma conquista da

população, definida em “um contexto histórico de uma sociedade determinada e num dado momento de seu desenvolvimento, [e que] deve ser conquistada pela população através das suas lutas quotidianas”; (iii) um direito, que ganha forma

através da garantia, pelo Estado, “de condições de vida dignas e de acesso universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde, a todos os níveis, para todos os habitantes do território nacional, conduzindo ao pleno desenvolvimento do ser humano na sua individualidade”; (iv) esse direito é formalizado no texto constitucional, mas realiza-se, sobretudo, através de uma política de saúde “consequente e integrada nas outras políticas econômicas e sociais”, com os meios necessários a sua execução e garantindo o “controle do

processo de formulação, gestão e avaliação das políticas sociais e econômicas pela população” (Oitava Conferência Nacional de Saúde, 1986 apud NUNES, 2009, p.

153).

Ao analisar a ampliação do conceito de saúde, Nunes (2009) enfatiza o paradoxo da busca por direitos nessa área:

A saúde é definida como algo mais amplo do que a ausência de doença, e os problemas que afetam a saúde como algo mais do que a existência de doença [...]. Essas concepções ampliadas de saúde constituem, por um lado, um recurso mobilizável para a luta pela saúde como um direito. Mas as formas que assume essa luta – especialmente aquelas que resultam em avanços efetivos no plano das políticas públicas e da organização da sociedade – parecem estar vinculadas a uma luta pelo direito à doença, ou seja, pelo reconhecimento da existência de doenças ou da condição de pessoa, grupo ou comunidade afetado por essas doenças. Por outras palavras, e recorrendo a um vocabulário consagrado nas ciências sociais, concepções ampliadas de saúde são mobilizadas para reivindicar, precisamente, a medicalização de certas perturbações e de certos problemas, através do seu reconhecimento como doenças, com causas e etiologias por vezes desconhecidas ou complexas. E através do processo de identificação dessas causas e etiologias que toma forma, em muitos casos, a luta pela saúde como direito (NUNES, 2009, p. 155-156).

Nesse sentido, o autor considera permanecer um desafio, tendo em vista que mesmo quando se considera concepções ampliadas de saúde, que não a reduzem a ausência de doença, e de intervenções que vão além do modelo biomédico, continua a ser central para a realização da saúde como direito o acesso aos dispositivos de diagnósticos e terapêuticos da biomedicina.

Germani e Aith (2013) abordam o caráter complexo e polissêmico do conceito de saúde, mencionando as duas vertentes que são mais presentes na literatura, uma biomédica com sua ênfase no corpo, a saúde e a doença vistas como opostas; e outra perspectiva que parte de uma premissa dinâmica, valorizando a determinação social no processo saúde- doença-cuidado. No âmbito internacional, enfatizam que a Constituição da OMS, em 1946, marcou o reconhecimento da saúde como direito humano universal, fundamental para a

dignidade do ser humano, e traçou as linhas gerais para a sua proteção, em que destacam o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, que consolidou a saúde como um direito humano a ser protegido pelos Estados. Afirmam que o conceito de saúde mais difundido hoje é o proposto pela OMS, um conceito amplo, inicialmente percebido de forma positiva, mas que esbarra em críticas por possibilitar interpretações tidas como idealistas ou sem aplicação prática. Ampliam a discussão sobre o tema ao abordarem as possibilidades de avanços para a efetivação da promoção de saúde no mundo após o reconhecimento da saúde como direito (GERMANI; AITH, 2013).

Dentre os marcos dos debates internacionais que provocaram mudanças na prática de Saúde estão as Conferências realizadas pela OMS que geraram a Declaração de Alma-Ata (1978) e a Carta de Ottawa (1986). A Declaração de Alma Ata é resultante da I Conferência Internacional sobre os Cuidados de Saúde Primária, realizada na antiga URSS, quando a saúde foi reconhecida como um direito humano fundamental. Atrelou-se ao movimento mundial sob a responsabilidade de combater as desigualdades entre os povos e alcançar a meta audaciosa de Saúde para Todos no ano 2000.

Nesse contexto foi dada ênfase na desigualdade entre os países procurando responder às necessidades e problemas de saúde mais prevalentes: as doenças infectocontagiosas; a desnutrição, fome, e mortalidade infantil. As principais áreas de intervenção propostas: (i) a educação para a saúde; (ii) a qualidade da água e saneamento básico; (iii) os cuidados de saúde materno-infantil; (iv) a imunização; (v) a prevenção e controle de doenças endêmicas; (vi) o tratamento de doenças e lesões comuns; e (vii) o fornecimento de medicamentos essenciais.

Nessa Conferência, e na consequente Declaração, foram chamados à responsabilidade governos, organizações supranacionais e comunidade internacional para a implementação dos Cuidados de Saúde Primários, que correspondem ao primeiro nível de contato com o sistema de saúde do país. Esses cuidados devem estar integrados aos sistemas de referência como forma de garantia ao acesso à saúde pautado pela acessibilidade universal, equidade e justiça social. A Declaração de Alma Ata convoca o espírito de comunidade e serviço entre as nações: “a saúde do povo de qualquer país interessa e beneficia diretamente todos os outros países” (DECLARAÇÃO DE ALMA ATA, 1978; MEIRELES, 2008).

Se por um lado a Declaração de Alma Ata emerge com ênfase nas desigualdades entre países procurando responder às necessidades e problemas de saúde relacionados à desnutrição, fome, mortalidade materno-infantil e doenças infectocontagiosas, por outro lado, a Carta de Ottawa (1986), resultante da I Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde,

procura responder às expectativas de bem estar pleno das sociedades mais desenvolvidas. Os serviços de saúde passam a ser vistos além da prestação de cuidados preventivos, curativos e de reabilitação, buscando-se realizar cada vez mais ações de promoção de saúde.

Promoção da saúde é o nome dado ao processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo. Para atingir um estado de completo bem- estar físico, mental e social os indivíduos e grupos devem saber identificar aspirações, satisfazer necessidades e modificar favoravelmente o meio ambiente... Assim, a promoção da saúde não é responsabilidade exclusiva do setor saúde, e vai além de um estilo de vida saudável, na direção de um bem-estar global (CARTA DE OTTAWA, 1986, p. 1).

A Carta de Ottawa (1986, p. 1) propõe que “a saúde deve ser vista como um recurso para a vida cotidiana, e não como objetivo de viver. A saúde é um conceito positivo, que enfatiza recursos sociais e pessoais, bem como capacidades físicas”. Nessa perspectiva, o

conceito de saúde e de sua proteção como direito dependeria do comprometimento de todos os envolvidos no processo saúde-doença-cuidado, incluindo os usuários do sistema de saúde, profissionais e gestores de saúde, da educação, do direito, dentre outros (GERMANI; AITH, 2013).

Embora partindo de perspectivas distintas, ambas assumem a Saúde como um direito humano fundamental; propõem uma abordagem de caráter multidisciplinar em ações coordenadas de vários setores da sociedade, e partilham de princípios e valores como justiça social, equidade em saúde, igualdade entre cidadãos, solidariedade nacional e internacional, responsabilidade individual e coletiva (MEIRELES, 2008).

No que concerne aos compromissos internacionais relativos à saúde mental, especificamente, merece ser destacada a Declaração de Caracas (ORGANIZAÇÃO PAN- AMERICANA DE SAÚDE - OPAS, 1990), documento que marca as reformas na atenção à saúde mental nas Américas e estabelece o dever do Estado de adequar sua legislação e promover a reestruturação da Assistência Psiquiátrica e a defesa dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais.

A declaração reconhece que a assistência psiquiátrica convencional, desenvolvida por meio de internação psiquiátrica, não permite alcançar os objetivos compatíveis com um atendimento comunitário, descentralizado, participativo, integral, contínuo e preventivo, pois isola a pessoa do seu meio social, põe em risco os seus direitos humanos, centraliza os recursos destinados à saúde mental e fornece ensino insuficiente às necessidades de saúde mental da população. Considera que os programas de Saúde Mental e Psiquiatria devem se adaptar aos princípios, orientações e modelos de organização da assistência à saúde que valorizem o Atendimento Primário de Saúde e desenvolvam programas baseados nas necessidades da população de forma descentralizada, participativa e preventiva (CRUZ, 2014, p. 508).

Outro marco foi a aprovação pela Assembleia Geral das Organizações das Nações Unidas, em dezembro de 1991, da Resolução 46/119 sobre os Princípios para a Proteção das Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental (ONU, 1991). Composta por 25 princípios, a Resolução estabelece liberdades fundamentais e direitos básicos das pessoas com transtorno mental, como o direito à melhor assistência disponível à saúde mental, com humanidade e respeito; veda a discriminação por conta do transtorno mental e prevê que toda pessoa acometida de transtorno mental tem o direito de exercer todos os direitos civis, políticos, econômicos e sociais e culturais reconhecidos nas declarações internacionais de direitos humanos. Prevê que as decisões relativas à capacidade civil e à necessidade de um representante sejam revistas em intervalos razoáveis, admitindo-se o recurso a tribunal superior por ela, seu representante ou interessado.

De acordo com a declaração, a pessoa com transtorno mental tem direito a receber os cuidados sociais adequados às suas necessidades, tratamento no ambiente menos restritivo possível, plano de tratamento prescrito individualmente, discutido com ela e revisto regularmente, no sentido de preservar e aumentar a autonomia pessoal [...]. Estabelece como regra o consentimento informado sobre o diagnóstico, o tratamento e os modos alternativos de tratamento para a internação, mas admite a internação sem consentimento informado em casos excepcionais (CRUZ, 2014, p. 510). Em primeiro lugar, nenhum tratamento (involuntário) poderá ser imposto à paciente de internação voluntária; em segundo lugar, um tratamento involuntário só poderá ser imposto à paciente quando atenda ao maior interesse de suas necessidades de saúde. Ainda, a internação só poderá se efetuar mediante determinação, por profissional de saúde mental qualificado e autorizado por lei para este fim, que a pessoa tem uma enfermidade mental, com uma séria possibilidade de dano imediato ou iminente à própria pessoa ou a outros, ou em caso de risco de séria deterioração de sua condição (BERTOLETE, 1995, p. 153).

Interessante observar que no Brasil, antes mesmo da aprovação da Legislação específica que dispôs sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, que ocorreu em 2001, o Conselho Federal de Medicina (CFM) já havia adotado em 1994 os Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental (ONU, 1991), aprovados pela Assembleia Geral das Nações Unidas de 1991, em sua Resolução CFM nº 1.407/1994 (CFM, 2000). Além disso, em 2000, aprovou a Resolução CFM nº 1.598/2000 (CFM, 2000), que normatizou o atendimento médico a pacientes portadores de transtorno mental em consonância com os princípios da ONU. Essa segunda resolução complementa a anterior indicando como deve agir o médico no atendimento de saúde mental, de forma que sejam garantidos os direitos elencados na resolução anterior (BRITO; VENTURA, 2012).

Relevante se faz registrar que nas avaliações quinquenais dos países em relação à Saúde Mental, a OMS toma como primeiro elemento para analisar o avanço do acesso da

saúde mental nos países, a existência de uma lei nacional. Para Delgado (2011), em 2001 (ano em que foi aprovada a Lei 10.261), o fato da Assembleia Mundial da OMS trazer como tema central a saúde mental, teria ajudado para que a lei brasileira fosse aprovada.

Semanas depois da sua aprovação, o Brasil levou à OMS, como contribuição do país para o ano internacional da saúde mental, a sanção governamental da lei, o que foi extremamente relevante e reconhecido por todos os países como um fato positivo. Desde então, a OMS vem acompanhando o processo brasileiro, com todas as suas dificuldades e problemas. Esse é um dos processos nacionais que a entidade cita como exemplo de enfrentamento da iniquidade em saúde mental. Enfrentamento, não solução ou milagre e, sim, compromisso concreto do Estado Nacional com a questão da saúde mental. No mundo inteiro, são 10 os países mencionados como exemplo, dos 190 países do sistema das Nações Unidas, entre os quais o Brasil (DELGADO, 2011, p. 6).