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A atuação dos padres políticos na Constituinte de 1823

No documento JOELMA SANTOS DA SILVA (páginas 73-77)

2 O IMPÉRIO E A IGREJA NO BRASIL: A ATUAÇÃO POLÍTICA DE DOM

2.1 O ensaio parlamentar de 1823

2.1.1 A atuação dos padres políticos na Constituinte de 1823

Os padres políticos que participaram da Assembleia Constituinte de 1823, influenciados em grande escala pelo pensamento liberal, encabeçaram diversos projetos e participaram de discussões variadas. Fato esse nada surpreendente em um Estado onde a Igreja Católica havia tido o monopólio cultural e religioso durante séculos e o clero, enquanto seu agente, desempenhado um importante papel administrativo (COSTA, 1999).

Os assuntos sobre os quais esses clérigos mais participaram foram, principalmente, aqueles relacionados ao processo de consolidação do Império e que marcaram as principais disputas políticas ocorridas ao longo do Primeiro Reinado e do Período Regencial (SOUZA, 2010). Analisando os Anais da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa de 1823 podemos destacar: a definição de como de daria a divisão de poderes entre o Legislativo e o Executivo, bem como entre o governo central e as províncias, e a determinação da preponderância do catolicismo sobre a vida da população.

As discussões sobre os limites da soberania do monarca em relação à soberania da nação, representada, na perspectiva da maioria dos parlamentares, pela Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Brasil, enquanto poder oriundo de um processo eleitoral que legitimava o seu caráter representativo, foi um dos pontos mais controversos de 1823 e teve muito peso no seu fechamento naquele mesmo ano. A soberania que durante séculos esteve concentrada na figura do monarca, dentro da tradição lusitana na qual o então imperador do Brasil foi educado, encontrava-se pela primeira vez dividida entre dois poderes, o que estabeleceu desconfianças recíprocas e conflitos entre D. Pedro I e os membros do Legislativo, depositários dos interesses de grupos regionais.

Fernando Uricoechea (1978), ao analisar a contradição do surgimento de um impulso modernizante no contexto tradicionalista do sistema político imperial brasileiro, entende a interação da autoridade central com os poderes locais como um processo complexo e “[...] composto de antagonismos relativos, identidades relativas, e autonomias relativas entre os dois atores.” (p. 109).

A demarcação dos limites do poder de D. Pedro I, considerada condição básica para a edificação da soberania da Assembleia Constituinte (SOUZA, 1999), foi pauta já nas sessões preparatórias, transcorridas entre 17 de abril e 02 de maio de 1823, quando estava sendo elaborado o seu regimento.

O regimento interno da Assembleia estabelecia, entre outras coisas, as formalidades adotadas quando o Imperador entrasse no local para abrir oficialmente os trabalhos Legislativos. A comissão encarregada de tal regimento propôs que no topo da sala estivesse o Trono Imperial e no último degrau a direita estivesse a cadeira do presidente da Assembleia. Essa proposição gerou a primeira grande polêmica daquela legislatura, pois o padre José Custódio Dias, um dos padres mais empenhados na defesa da autoridade do poder Legislativo, salientou que por trás de uma simples discussão sobre etiqueta estavam concepções imagéticas sobre a constituição do poder político e da forma como seria partilhado o poder que constituiria o Estado (BRASIL, 1823).

Contrapondo-se a essa proposta que, na sua concepção alimentaria a mística da

realeza (SOUZA, 1999), o padre José Custódio Dias argumentou que não havia razão para

que o imperador fosse colocado em posição superior na Assembleia e não ao lado do seu presidente, afirmando que

É na solene instalação destas que tem de comparecer o digno representante do Poder executivo, e como tinha de respeitar a nação, legitimamente representada, da qual só deriva toda a autoridade que pelo pacto social lhe vai a conferir por lei fundamental, sou de parecer que a posição que se lhe deve designar seja sim distinta, mas ao mesmo plano onde estiver o Sr. Presidente (BRASIL, 1823, T.I., p. 4).

Os defensores da Coroa e das prerrogativas imperiais afirmavam que D. Pedro I, sozinho, representava todo o Estado, enquanto o presidente da Assembleia, sendo somente um membro desta, não poderia ser visto como representante da vontade de toda a nação. Estando assim em posição inferior em relação ao aclamado Defensor Perpétuo e Imperador Constitucional do Brasil. Nesse sentido, o deputado Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado faz os seguintes questionamentos no púlpito da Assembleia.

Que paridade há entre o representante da nação inteira e os representantes temporários? Ainda mais: que paridade há entre o representante hereditário único e um único representante temporário que, bem que condecorado com o título de presidente, não é mais que o primeiro entre seus iguais? (BRASIL, 1823, T.I., p. 5). Utilizando-se de um vocabulário liberal para construir a sua argumentação, o deputado usa a ideia de representação para justificar o seu argumento sobre a supremacia da autoridade do imperador frente ao Legislativo (GUIMARÃES, 2001). Não se tratava, porém, de reabilitar o absolutismo. O que estava em pauta era o fortalecimento do poder monárquico, a pacificação, unificação e construção do Estado brasileiro, que, na perspectiva de Andrada Machado, recomendavam a concentração do poder na figura do monarca.

Para os defensores do poder da Coroa a autoridade imperial precedia o Legislativo, pois teria sido conferida a D. Pedro I no momento de sua aclamação e ele fora o responsável pela sua convocação. Com relação aos defensores das prerrogativas da Assembleia a argumentação era diversa, o poder do imperador não emanaria naturalmente da sua aclamação, ele seria condicionado pela aceitação das leis estabelecidas pela nação, reunidas em Constituinte.

Nas discussões relativas ao local onde reside a soberania é também possível perceber a contraposição de interesses mais centralizadores em relação a outros mais regionalistas, que são resultado e ao mesmo tempo se revertem em uma maior ou menor filiação com as elites das províncias ou com o círculo de poder a volta do monarca. Logo, afirmar o local de autoridade e de soberania do Estado, para os parlamentares, era também afirmar a legitimidade do seu local de autoridade no espaço de poder, ampliando o valor do seu capital político e social.

Refletindo sobre o posicionamento do padre José Custódio Dias, Françoise Souza (2010) argumenta que

A aclamação não era o acontecimento que marcaria a transferência da soberania da nação para as mãos do seu representante; ao contrário, este „momento fundador‟, no qual haviam sido estabelecidas as bases de um „contrato social‟, teria se dado por ocasião da eleição da Assembleia Constituinte. Nesse sentido, contratualismo e constitucionalismo estariam intimamente associados (p. 174).

Essas concepções também eram compartilhadas pelo padre Venâncio Henrique de Resende, que negava a existência de qualquer direito natural do monarca, destacando o seu poder como uma concessão condicionada ao pacto social que os homens estabelecem entre si, cedendo os seus direitos originais (BRASIL, 1823, T.I).

Necessário é ressaltar que tanto os defensores das prerrogativas da Coroa quanto os da Assembleia Constitucional, ao falarem da soberania da Nação, não a entendiam em seu sentido mais amplo, como representação da vontade geral da população, já que isso se dava em meio a um contexto onde o vocabulário político assumia significados diversos e reconfigurações semânticas. Pelo contrário, a representatividade da nação era restrita aos grupos capazes de gerir os negócios públicos, aos detentores de saber e de poder que os faziam qualificados a ter também, além dos direitos de cidadão, também os direitos políticos (COSTA, 1999; GUIMARÃES, 2001; MOREL, 2005; SOUZA, 1999).

A querela sobre a soberania do Legislativo tornou-se mais acirrada após a Fala do Trono, discurso feito por D. Pedro I quando da abertura oficial dos trabalhos da Assembleia. Pois mesmo contendo elementos liberais, as palavras proferidas pelo imperador causaram polêmica ao “[...] realçar a superioridade potencial e hierárquica de sua imperial pessoa, bem como a anterioridade de sua aclamação e coroação, sem oposição e sem compromissos que a limitassem.” (SANTIROCCHI, 2010, p. 66), afirmando que esperava uma Constituição digna dele e do Brasil. No momento da elaboração do Voto de Graças13 – a resposta oficial da Assembleia a esta fala – os debates foram intensos e os padres que participavam da Constituinte se dividiram em contrários e defensores das palavras de D. Pedro.

Os principais padres contrários às palavras do Imperador, acreditando que avaliar a Constituição como justa e digna só cabia aos parlamentares enquanto representantes legítimos do povo, foram José Custódio Dias, Luís Inácio de Andrada Lima e Henrique de Rezende. A favor da Fala do Trono e em defesa do imperador se alinharam os padres Francisco Muniz Tavares, Belchior Pinheiro de Oliveira e Antonio da Rocha Franco (NEVES, 2009).

Os discursos favoráveis ou contrários ao monarca demonstram a diversidade das propostas que se gestavam em relação ao Estado brasileiro, tendo como principais linhas, mas não únicas, uma maior centralização ou descentralização do poder político. Nessa polêmica, os padres políticos ficaram divididos, não compondo um único bloco de pensamento e ação, o que é sintomático de um corpo de agentes não profissionais, pertencentes a uma instituição – a Igreja Católica – que não possuía no Brasil, a essa época, unidade nem autonomia administrativa, estando totalmente inserida, influenciando e sendo influenciada pelos debates políticos do espaço laico.

13 O Voto de Graças era o discurso oficial que a Assembleia Legislativa formulava e proferia ao Imperador como resposta da Fala do Trono [N.A.].

Outros clérigos adotaram um posicionamento mais conciliatório, como o diácono José Martiniano de Alencar, que embora defendesse a soberania do Legislativo não tinha essa causa como seu principal estandarte. Para ele, a localização geográfica do poder, se concentrado na Corte ou compartilhado com as províncias, era mais importante do que a definição de quem o possuía, se o Executivo ou o Legislativo (BRASIL, 1823).

De acordo com Pereira e Ribeiro (2009), o Brasil ainda não possuía uma identidade consolidada enquanto nação em 1823. Bahia, Maranhão, Pará e Cisplatina ainda estavam em guerra contra as tropas portuguesas, não tendo ainda se pronunciado oficialmente sobre a integração com o novo Estado. O Império ainda estava em processo de constituição, formado por um conjunto de províncias que pouco se ligavam umas às outras.

Esses fatores tornavam a relação entre as províncias do Império e a Assembleia Legislativa muito delicada, pois a questão da integridade territorial do novo Estado fazia com que houvesse grande receio. Qualquer discurso, projeto de lei ou colocação mal interpretada poderia gerar conflitos entre elas, levando a consequentes perdas para Portugal ou ainda a formação de Estados independentes, como ocorreu no restante da América de colonização espanhola.

Mas a questão que mais obteve atenção dos padres na Constituinte de 1823 e que foi largamente discutida em seus últimos meses, pois se encontrava na base cultural e social da população, foi a temática da religião. Ela situou-se como ponto de confluência de outras questões que desafiaram os parlamentares, como a definição dos direitos individuais, a mão de obra livre e sua promoção, o controle da população por meio da identidade católica, bem como seu uso como elemento que constituiria uma consciência nacional (NEVES 2009; SOUZA, 2010).

No documento JOELMA SANTOS DA SILVA (páginas 73-77)