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A Constituição de 1824 e a religião oficial

No documento JOELMA SANTOS DA SILVA (páginas 83-88)

2 O IMPÉRIO E A IGREJA NO BRASIL: A ATUAÇÃO POLÍTICA DE DOM

2.1 O ensaio parlamentar de 1823

2.1.3 A Constituição de 1824 e a religião oficial

Sobre a situação da Constituinte de 1823, no período anterior à sua dissolução, Vantuil Pereira (2010) afirma que a relação de seus membros com o imperador não era boa. Isso ia além de questões meramente pessoais, representando, na verdade, uma disputa de força em torno de projetos de Estado. Estabeleceu-se um combate dos liberais mais extremados à figura do Imperador, o que estava levando as discussões na Assembleia a se encaminharem para a limitação do seu poder.

Apesar do modelo de governo centralizado parecer o vitorioso, os líderes regionais encontravam outras formas de se opor ao autoritarismo do Imperador, seja de forma direta ou por meio dos representantes das suas províncias na Assembleia. Dessa oposição dos parlamentares e das elites regionais ao Imperador, Graham (1997) destaca que “Um ponto particularmente delicado foi que, ao nomear ministros nascidos em Portugal, ele negligenciou a avidez que os brasileiros tinham pelo poder, para ampliar o controle que tinham sobre o clientelismo.” (p. 72).

Em artigo que objetiva revisar o Primeiro Reinado, Ribeiro e Pereira (2009) assinalam que a movimentação nas ruas e galerias da Assembleia Constituinte indicava a preocupação de vários setores com as decisões que vinham sendo tomadas, principalmente nos debates em torno da expansão dos direitos de cidadania. Ao longo das votações a platéia ia aumentando e chegava-se cada dia a uma maior radicalização da Assembleia, pautada

gradativamente nos movimentos contestatórios de rua e pelo crescente conflito político entre os parlamentares e o Imperador.

Os conflitos entre os parlamentares e o Imperador se acirraram e em 12 de novembro de 1823 a primeira e única Constituinte do Império do Brasil foi dissolvida por ordem de D. Pedro I e sob o poder das armas (COSTA, 1999; PEREIRA; RIBEIRO, 2009; NEVES, 2009; SANTIROCCHI, 2010; SOUZA, 2010). Para Ítalo Santirocchi (2010) as causas foram múltiplas, dentre as quais destaca

[...] a rivalidade entre nativos e adotivos desde que os Andradas abandonaram o poder; o fato de D. Pedro ter se cercado de conselheiros portugueses; as críticas na imprensa ao autoritarismo do Imperador; a independência da Assembléia; a pressão de portugueses pertencentes aos altos escalões das forças armadas brasileiras no intuito de reassumir seus poderes totais; o favorecimento e a pressão dos grupos econômicos portugueses junto ao Imperador; e a contra-revolução em Portugal, em oposição às Cortes de Lisboa (p. 68).

Após a dissolução da Constituinte, D. Pedro I nomeou uma comissão15 composta por dez juristas, em sua grande maioria, formados na Universidade de Coimbra, para elaborar a nova Constituição do Império. De acordo com Emília Viotti da Costa (1999), o objetivo era aplacar as elites, ao acompanhar de perto os anteprojetos apresentados pela Assembleia Constituinte de 1823 e pelo Conselho de Estado, e ao mesmo tempo fortalecer o Poder Executivo, afirmando o poder do Imperador. A Carta Magna do Império do Brasil foi outorgada em 25 de março de 1824, cerca de um ano e meio após a declaração da Independência, ficando em vigor por mais de sessenta anos (PEREIRA; RIBEIRO, 2009; NEVES, 2009; SANTIROCCHI, 2010; SOUZA, 2010).

Vendo a Constituição de 1824 a partir da negociação de interesses com a elite política, ela seria um meio de mediação de conflitos dos grupos economicamente e politicamente dominantes e dos interesses do Imperador, contribuindo para a dinâmica de estabilidade do Império ao não colocar em risco o sistema. Deste modo, podemos entender que a Constituição foi um acordo básico, do tipo que “[...] permitiu o processamento não traumático dos conflitos constitucionais relativos à organização do poder, e também dos

15 Sobre a comissão que redigiu a Constituição do Império do Brasil de 1824, Santirocchi (2010) informa que seus membros foram “[...] Severiano Maciel da Costa (Marquês de Queluz), Luis José de Carvalho e Melo (1º. Visconde de Cachoeira), Clemente Ferreira França (Marquês de Nazaré), Mariano José Pereira da Fonseca (Marquês de Maricá), João Gomes da Silveira Mendonça (Marquês de Sabará), Francisco Vilela Barbosa (Marquês de Paranaguá), José Egídio Álvares de Almeida (Marquês de Santo Amaro), Antonio Luís Pereira da Cunha (Marquês de Inhambupe), Manuel Jacinto Nogueira da Gama (Marquês de Baependi), e José Joaquim Carneiro de Campos (Marquês de Caravelas). Todos eles se formaram em Coimbra, com exceção de João Gomes da Silveira Mendonça.” (p. 69).

conflitos substantivos oriundos do choque de interesses materiais.” (CARVALHO, 2011, p. 42).

De acordo com a análise proposta por Bonavides e Andrade (1991), a Constituição do Império exibia uma dupla face: a liberal, presente na declaração de direitos e nas atribuições que foram conferidas ao Poder Legislativo; e a autoritária, encarnada na concentração de poderes na mão do imperador, por meio do estabelecimento do Poder Moderador. Esse hibridismo também se manifesta no tratamento constitucional dado à religião, à liberdade religiosa e à cidadania, pois, se por um lado o Estado cedeu relativa liberdade religiosa ao cidadão, por outro não dispensou manter um rígido controle sobre os assuntos da Igreja.

O texto inaugural de 1824 substituiu o polêmico conteúdo de 1823 pelo artigo 5º, que dizia: “A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo”. Consolidou-se legalmente, assim, a tradicional união lusitana entre Estado e Igreja Católica, herdada do período colonial, no Império do Brasil, com inspiração do regalismo pombalino.

Os enunciados do artigo 5º revelam o tipo de compromisso assumido pelo Estado Brasileiro em relação à liberdade religiosa no século XIX. Primeiramente, deve-se destacar o tratamento dado à religião Católica, e, de outro, às demais religiões. O primeiro enunciado aborda um reconhecimento, ao afirmar que a “Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império”, enquanto o segundo dispõe sobre uma permissão, quando estabelece que “todas as outras religiões serão permitidas”.

Nesse sentido, Casamarro (2010) acredita que o emprego de verbos distintos nos enunciados do artigo 5º obedeceria a uma lógica, o verbo continuar demonstraria o reconhecimento de um autêntico direito, já o verbo permitir corresponderia a uma permissão do poder estatal, e não ao reconhecimento de um pleno direito.

A submissão do poder eclesiástico ao poder político foi assegurada pelo artigo 102, que definiu as principais atribuições do Imperador em relação à Igreja, na condição de Chefe do Poder Executivo. Em concordância com o inciso II daquele artigo, é atribuição do Imperador “nomear Bispos, e prover os benefícios eclesiásticos”. Esse dispositivo reproduzia o instituto do Padroado e demarcava mais ainda o aspecto regalista da nova Constituição, pois

O direito de nomear bispos e prover os benefícios eclesiásticos, que era uma concessão dada pela Sé Apostólica por meio do padroado e do Grão-Mestrado da Ordem de Cristo, passou a ser considerado como um direito constitucional do Poder

Executivo e unilateralmente estabelecido, sem prévia discussão ou Concordata com a Santa Sé (SANTIROCCHI, 2010, p. 70).

Também inserido no artigo 102, o inciso XIV trata do régio exequatur, ou

beneplácito régio, instituto que previa a necessidade do consentimento do Imperador para

permitir a entrada em vigor dos atos das autoridades eclesiásticas (CASAMARRO, 2010). Segundo este inciso, para que as normas vindas de Roma adquirissem validade, deveriam obter o beneplácito régio “os Decretos dos Concílios e letras Apostólicas, e quaisquer outras Constituições Eclesiásticas”. O beneplácito régio expressava o intento do Estado em exercer um severo controle, sob a forma de um direito de censura, sobre as mais variadas decisões e atividades da Igreja Católica no Brasil.

Por meio dessas regulamentações o Estado brasileiro também conservava como herança jurídica das antigas leis portuguesas o direito de regular a admissão de noviços nas ordens religiosas católicas e o direito de controlar os bens eclesiásticos. Casamarro (2010) alega que, no primeiro caso, a finalidade era a fiscalização do ingresso de internos nas instituições católicas e impedir licenças individuais abusivas ou desnecessárias em relação às obrigações civis e militares.

No segundo caso, o objetivo inicial era controlar os poderes eclesiásticos decorrentes da riqueza que possuía o clero católico. Para a Igreja Católica, cujas associações religiosas não eram reconhecidas como pessoa jurídica, isto significou a proibição de “[...] adquirir, possuir por qualquer título e de alhear bens de raiz sem especial licença do governo civil.” (CASAMARRO, 2010, p. 6.170). Os bens da Igreja encontravam-se, portanto, fora de circulação, como se estivessem “mortos” para o comércio, surgindo daí a denominação deste regime de bens: o regime de mão morta.

A ponte constitucional entre religião e política foi registrada no artigo 103 da Carta Imperial. De acordo com o texto preambular, D. Pedro I é apresentado como Imperador pela “graça de Deus e unânime aclamação dos povos”. Neste caso é possível inferir que a ordem dos fatores era indicativa de uma hierarquia em que a legitimação do poder político viria, primeiramente, de Deus.

Junto ao preâmbulo, na introdução da Constituição, a legenda que a anuncia, em caixa alta: “EM NOME DA SANTÍSSIMA TRINDADE”. Quanto a esta questão, Casamarro (2010) alega que “A menção de frase tão grandiosa, à guisa de intróito, tem o efeito de uma verdadeira pedra angular: é a partir daquele ponto que será erguida a sociedade política. Os seus fundamentos reduzem-se a um só: à „Vontade Divina‟.” (p. 6168).

O artigo 103 aponta ainda que a aclamação de D. Pedro I deveria ser precedida de um juramento seu perante as Câmaras do Senado e dos Deputados, onde este se comprometeria a manter a religião católica apostólica romana, a integridade do Império, a fazer respeitar a Constituição e as demais leis da nação brasileira. Neste artigo, a listagem de instituições a serem protegidas pelo Imperador também sugere uma ordem hierárquica: primeiro a Igreja Católica, depois o Império, e, finalmente, a Constituição e as demais leis; ou seja, Deus, o poder político e o direito.

A Carta Constitucional de 1824 instituiu o catolicismo como religião oficial do Estado brasileiro. Durante todo o período imperial, a união entre o Estado e a Igreja Católica foi determinante para a legitimidade do regime monárquico, repercutindo na cidadania e na vida cotidiana dos brasileiros. Ao lado do regime escravista, a religião católica colocou-se como um dos grandes sustentáculos da cultura e das estruturas política, social, econômica e jurídica da sociedade brasileira do século XIX (COSTA, 1999; NEVES, 2009; PEREIRA; RIBEIRO, 2009; SERBIN, 2008; SOUZA, 2010).

Pode-se afirmar que o modelo religioso consolidado na Constituição de 1824 foi o de orientação mais conservadora, composto de ideias vindas da Europa mescladas com a realidade escravocrata, apesar da orientação liberal, o que gerou um paradoxo político (SANTIROCCHI, 2010). Esse paradoxo pode ser entendido como característico da forma de dominação do tipo patrimonial onde o sistema jurídico engloba o direito expresso e o direito aplicado, exprimindo e vinculando os interesses de grupos particulares.

Esta Constituição não apresentou muito dos avanços constantes no ano anterior, pois somente tolerava as religiões não católicas16, não permitindo a liberdade de culto (SOUZA, 2010). Outorgada a Constituição de 1824, as questões que desafiariam a Igreja e a elite eclesiástica brasileira foram de outra natureza. Não mais as questões vinculadas à liberdade do cidadão em escolher a sua fé ou manifestar o seu culto, mas, sim, questões referentes à ingerência do Estado sobre a Igreja e sobre as orientações advindas de Roma. Estes temas serão arduamente debatidos quando os padres eleitos deputados, com o objetivo de inaugurar uma nova fase da história do catolicismo brasileiro, resolvem levar para o Parlamento os diferentes projetos de reforma da Igreja.

16 Essa tolerância quanto às religiões não católicas deve ser entendida dentro do contexto de relações entre o Brasil e a Inglaterra, país protestante, e de uma política econômica de estímulo à vinda de imigrantes europeus para o Brasil com objetivos demográficos, pelo reconhecimento da necessidade de povoar-se o país (COSTA, 1999). Nesse sentido, a liberdade de culto da Constituição de 1824 se constituía enquanto um atrativo aos imigrantes europeus de religião protestante, não sendo estendida essa discussão para as religiões de matriz africana ou indígena, que sofreram uma processo de invisibilização na elaboração das leis do Império.

2.2 Elementos de uma dupla fidelidade: o posicionamento político-religioso de Dom

No documento JOELMA SANTOS DA SILVA (páginas 83-88)