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Atribuições civis do clero

No documento JOELMA SANTOS DA SILVA (páginas 53-58)

1.3 A eleição do clero e os elementos de inserção na política formal

1.3.3 Atribuições civis do clero

Importante também era a situação do sacerdote enquanto servidor da Igreja, sendo visto pelo Estado como um funcionário público, exercendo uma dupla fidelidade, em razão do Padroado Régio. Como ressalta Ítalo Santirocchi em trabalho sobre a participação política do clero durante o Período Imperial

Isto acontecia, não porque recebessem côngruas do Tesouro, mas sim pelas funções civis que eram obrigados a realizar a mando do Governo e por determinação das leis aprovadas sem nenhuma negociação com a Santa Sé. Esta imposição de dupla lealdade (Igreja-Estado) era fonte potencial e permanente de conflitos entre as duas instâncias, além de ter favorecido a participação de sacerdotes nas principais revoltas políticas do final da Colônia e primeiras décadas do Império (2011, p. 1-2). O emprego público foi, segundo José Murilo de Carvalho (2011), a atividade que por excelência favoreceu e treinou a elite política que participou da fase inicial de construção do Estado brasileiro, após a sua emancipação política, constituindo um importante canal de mobilidade para os elementos que não tinham espaço de atuação no sistema econômico agrário e escravista vigente, sendo esse um dos motivos pelos quais o clero teria relevante participação nesse processo. Já Emília Viotti afirmou que “A burocracia do Império foi cabide de empregos [...]” (COSTA, 1999, p. 12), pois o Estado foi, nessa fase, o maior empregador

dos burocratas levados ao poder público, aos cargos eletivos do Legislativo e aos cargos do Executivo.

Outro elemento do fenômeno eleitoral do clero foi, segundo Françoise Souza (2010), a impossibilidade de o nascente Estado independente brasileiro abrir mão da estrutura administrativa e burocrática organizada pela Igreja Católica desde os primórdios da colonização. Pelo contrário, inicialmente houve uma dependência em relação a esta instituição, tanto com relação ao seu sistema de documentação e controle das populações das paróquias e freguesias quanto a sua infra-estrutura de pessoal e edifícios, como no caso do processo eleitoral.

Desta forma, os agentes do clero pertenciam simultaneamente às burocracias do Estado e da Igreja, o que favoreceu sua relevante participação política e sua utilização como importante recurso da administração. Antes mesmo da emancipação política do Brasil, durante a regência de D. Pedro, por meio da lei eleitoral proclamada em 19 de junho de 1822 é possível notar que os párocos teriam uma participação mais significativa no processo eleitoral (SANTITOCCHI, 2011).

De acordo com o artigo 3º do primeiro capítulo desta lei, os párocos auxiliariam os Presidentes das Câmaras nas eleições de 1º grau, e o art. 6º do mesmo capítulo definia que iriam “[...] afixar nas portas das suas Igrejas Editais, por onde conste o número de seus fogos, e ficam responsáveis pela exatidão.” (COLEÇÃO DAS DECISÕES DO GOVERNO DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1824, p. 43). A novidade mais importante dessa lei foi a posição relevante adquirida pelos párocos, podendo interferir nas eleições, devido a função de reconhecimento e indicação dos eleitores.

Segundo Santirocchi (2011), a partir dessa lei o pároco e o presidente da mesa assumiram uma posição muito importante no pleito, ainda mais no caso do primeiro, pois este era o responsável por indicar os indivíduos aptos a votar. Isto ocorria, por que

[...] fazia parte das suas atribuições realizar o censo, ou seja, o levantamento das pessoas dotadas da renda mínima estabelecida para possuir os direitos eleitorais. Este fato contribuiu para uma maior politização da figura clerical dentro da sociedade, que passou a ser disputado pelos partidos políticos e os potentados locais. Além disso, o pároco passou a fazer parte efetiva da burocracia civil e a trabalhar, também, diretamente no interesse do Estado (p. 05).

Finalmente, é possível afirmar que a presença de religiosos no parlamento foi potencializada pela carta constitucional de 25 de março de 1824 e o decreto de 26 de março do mesmo ano, que atribuíam aos párocos funções de extrema importância no processo

eleitoral. De acordo com Souza (2008) “O envolvimento dos sacerdotes com o processo eleitoral não só tornava mais natural a associação entre prática religiosa e prática política, como fornecia aos homens da Igreja os instrumentos de controle e manipulação das eleições.” (p. 129).

A partir dessa lei (Quadro 3) e do decreto de 26 de março de 1824, instaurou-se uma prática profanadora das igrejas durante o período imperial, a partir da determinação de que as eleições paroquiais ocorreriam depois das missas, com a mesa eleitoral posta no corpo das Igrejas Matrizes, e mais nos Paços dos Conselhos.

Em artigo sobre o voto no Império, Porto (2009) destaca que os templos religiosos não foram empecilho para os diversos tipos de conflitos, tanto verbais quanto armados e que os ódios políticos sobrepujavam, aí, toda a veneração religiosa, chegando os eleitores a usarem as imagens e objetos sagrados como armas contra seus opositores.

De acordo com Manuel Rodrigues Ferreira (2001), as eleições realizadas no interior das igrejas não impediram o surgimento de insultos, brigas e violências variadas no dia das eleições dos deputados, pois

[...] o furor antes reprimido explodia, provocando, entre os partidários, toda a série de desatinos. Tudo se corrompia: mesas eleitorais, autoridades, eleitores, etc. O objetivo era ganhar de qualquer maneira. E nesses dias de eleições, as paixões políticas se desencadeavam (FERREIRA,2001, p. 168 Apud SANTIROCCHI, 2011, p. 06).

Para Neves (2009), as realização das eleições dentro das igrejas confirmavam a inserção da política na ordem cósmica de base religiosa que, para a maioria da população do período em questão, continuava a reger o mundo, tanto que a falta das cerimônias religiosas antes das eleições foi diversas vezes utilizada como argumento para questionar a sua validade. Com base nesse aspecto, alega que

[...] a realização das eleições em igrejas ligava a ordem social a uma ordem sagrada que se estendia até Deus, ritual que, ao ser repetido, com o toque dos sinos e nuvens de incenso, enaltecia cada vez mais „o caráter sagrado do teatro civil‟, que aquelas ocasiões representavam (p. 404).

De acordo com as regras vigentes, as eleições gerais e provinciais eram feitas indiretamente e em dois graus: os cidadãos votantes de cada paróquia se reuniam na igreja matriz e elegiam os eleitores. Nas eleições de segundo grau, os cidadãos eleitores formavam o colégio eleitoral que, reunido nas cidades e vilas, que eram cabeças de distrito, elegiam os representantes da província e da nação.

Quadro 3 – Capítulo VI da Constituição Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824.

CAPITULO VI.

Das Eleições.

Art. 90. As nomeações dos Deputados, e Senadores para a Assembléa Geral, e dos Membros dos Conselhos Geraes das Provincias, serão feitas por Eleições indirectas, elegendo a massa dos Cidadãos activos em Assembléas Parochiaes os Eleitores de Provincia, e estes os Representantes da Nação, e Provincia.

Art. 91. Têm voto nestas Eleições primarias

I. Os Cidadãos Brazileiros, que estão no gozo de seus direitos politicos. II. Os Estrangeiros naturalisados.

Art. 92. São excluidos de votar nas Assembléas Parochiaes.

I. Os menores de vinte e cinco annos, nos quaes se não comprehendem os casados, e Officiaes Militares, que forem maiores de vinte e um annos, os Bachares Formados, e Clerigos de Ordens Sacras.

II. Os filhos familias, que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem Officios publicos.

III. Os criados de servir, em cuja classe não entram os Guardalivros, e primeiros caixeiros das casas de commercio, os Criados da Casa Imperial, que não forem de galão branco, e os administradores das fazendas ruraes, e fabricas.

IV. Os Religiosos, e quaesquer, que vivam em Communidade claustral.

V. Os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou Empregos.

Art. 93. Os que não podem votar nas Assembléas Primarias de Parochia, não podem ser Membros, nem votar na nomeação de alguma Autoridade electiva Nacional, ou local.

Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam- se

I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego.

II. Os Libertos.

III. Os criminosos pronunciados em queréla, ou devassa.

Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se

I. Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida, na fórma dos Arts. 92 e 94. II. Os Estrangeiros naturalisados.

III. Os que não professarem a Religião do Estado.

Art. 96. Os Cidadãos Brazileiros em qualquer parte, que existam, são elegiveis em cada Districto Eleitoral para Deputados, ou Senadores, ainda quando ahi não sejam nascidos, residentes ou domiciliados.

Art. 97. Uma Lei regulamentar marcará o modo pratico das Eleições, e o numero dos Deputados relativamente á população do Imperio.

Antes do início efetivo do pleito, cabia ao pároco afixar os editais de convocação dos votantes nas portas das suas igrejas. No dia marcado para as eleições paroquiais, os cidadãos votantes e eleitores eram reunidos na matriz onde era celebrada uma missa e fazia-se uma pregação contemplando o processo eleitoral e seus objetivos (SOUZA, 2008). Desta forma, era pelas mãos do sacerdote e a partir da celebração do rito católico, a missa, que se iniciava, oficialmente, o pleito para a escolha dos membros do Legislativo brasileiro no início do período imperial.

Estabeleceu-se assim, no nosso sistema eleitoral brasileiro, um tipo de “[...] simbiose entre o político-administrativo e o religioso, entre o temporal e o clerical, o profano e o sagrado.” (BASTOS, 1997, p. 19 Apud SOUZA, 2008, p. 130). Os párocos aproveitavam- se dessa situação para indicar os candidatos apoiados por ele ou pela Igreja, ou ainda, para apresentar a si mesmo como o melhor candidato.

Tratando da organização das mesas eleitorais, Santirocchi (2011) argumenta que a lei não conseguia prover uma organização adequada das mesas eleitorais, pois geralmente eram irregulares, facciosas e arbitrarias. Pelo fato de não haver nenhum alistamento ou registro de eleitores, “[...] a mesa era absoluta para julgar da qualidade dos votantes, negando- lhes o direito de voto, se quisesse [...] os ódios explodiam, naqueles dias. A turbulência, o alarido, a violência e a pancadaria decidiam o conflito.” (FERREIRA, 2001, p. 168 Apud SANTIROCCHI, 2011, p. 05).

Contudo, a participação do clero nas eleições não se limitou a abertura do processo, pois eles foram extremamente importantes na aplicação das exigências legais de qualificação dos cidadãos votantes e eleitores. Como o recém formado Estado brasileiro não possuía uma estrutura logística necessária à verificação da situação dos eleitores e votantes, foi o pároco que teve de utilizar da documentação e das informações produzidas e controladas pela igreja, possibilitando ao Estado obter as informações necessárias para a realização das eleições, ficando ao seu cargo a elaboração das listas dos eleitores qualificados a votar. Conseqüentemente, ocorria que

[...] os párocos eram designados a participar das mesas eleitorais, esclarecendo as dúvidas de inclusão ou exclusão dos votantes, atuando como árbitro nas contendas das apurações e, conseqüentemente, assumindo um papel definidor dos resultados eleitorais. (SOUZA, 2008, p. 130).

Em relação às eleições municipais as Ordenações do Reino, vigoraram até a lei de 1º de outubro de 1828, sendo modificada e apresentando uma diferença fundamental na

função do pároco. Antes ele era o responsável pela contagem dos fogos (núcleo familiar ou morada) e pela lista dos que tinham direito a voto, mas a partir da mudança de 1828 foi instituída, pela primeira vez, a inscrição prévia dos eleitores e o encarregado de elaborar a lista geral dos que poderiam votar era o juiz de paz da paróquia, como previa o art. 5º, não obrigando e nem excluindo o uso dos templos como recinto eleitoral (COLEÇÃO DAS LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL, 1828, parte I; SANTIROCCHI, 2011).

As leis e decretos acima citados ficaram em vigor durante todo o Primeiro Império e as Regências, período em que houve um elevado aumento da politização clerical, da sua atuação na política partidária e em movimentos insurrecionais (SANTIROCCHI, 2011), o que nos leva a concluir que elas foram fundamentais para o fenômeno eleitoral do clero nesse período e sua inserção na política formal por meio da ocupação de cargos eletivos.

A partir dos fatores apresentados, é possível afirmar que a presença do clero compondo a elite política do Brasil no período de sua constituição enquanto Estado independente não foi um simples resquício de uma sociedade herdeira do Antigo Regime português. Foi, antes de tudo, resultado dos diferentes tipos e níveis de associação entre a Igreja e o Estado no Brasil desde o período colonial, em conjunto com distinções próprias dos agentes da Igreja e inserções em diferentes espaços de sociabilidade, que se converteram em capitais sociais e simbólicos importantes e disposições que foram valorizadas para a elegibilidade do grupo e conseqüente ocupação de cargos eletivos, e participação nos altos escalões da burocracia do Estado, possibilitando a existência de uma trajetória política e religiosa em paralelo, como a de Marcos Antonio de Souza.

No documento JOELMA SANTOS DA SILVA (páginas 53-58)