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A religião na Constituinte de 1823

No documento JOELMA SANTOS DA SILVA (páginas 77-83)

2 O IMPÉRIO E A IGREJA NO BRASIL: A ATUAÇÃO POLÍTICA DE DOM

2.1 O ensaio parlamentar de 1823

2.1.2 A religião na Constituinte de 1823

Reunindo parte significativa da elite política do Brasil da época, apesar da fragilidade do funcionamento parlamentar, que decorria “[...] da ausência de partidos definidos, das hesitações dos representantes quanto ao papel que exerciam e da falta de coerência que manifestavam em suas posições.” (NEVES, 2009, p. 386), a Constituinte de 1823, como enfatiza Guilherme Pereira das Neves (2009), não deixou de refletir os interesses

e preconceitos em voga na época, o que se torna perceptível por meio das questões que perpassaram direta ou indiretamente o tema da religião.

Deve-se lembrar que a questão de como deveria relacionar-se a religião com a política não era exclusividade dos debates da Constituinte brasileira, mas um importante ponto nos países predominantemente católicos. Guido Zagheni (1999) coloca essa questão como uma das características da época contemporânea da Igreja Católica, sendo que a separação do Estado, ou o separatismo, postura mais radical, representou também uma reação à estreita união entre o altar e o trono, característica do Antigo Regime.

No Brasil, as proposições oriundas dos diferentes entendimentos sobre como a Igreja e o Estado deveriam se vincular afetaram os clérigos católicos e consequentemente os espaços sociais, políticos e intelectuais nos quais eles transitavam, como ocorreu na Constituinte de 1823. Porém, diferente de outros países, aqui não houve nas primeiras décadas do século XIX um declarado sentimento antirreligioso; e o anticlericalismo, característico do movimento liberal e muito incisivo em algumas regiões da Europa, não teve grande inserção no contexto local, como é possível concluir por meio do grande número de clérigos eleitos para as Cortes de Lisboa e para a primeira Assembleia Constituinte.

Os violentos ataques direcionados ao clero católico na Europa (ZAGHENI, 1999) não se fizeram presentes com a mesma intensidade no Brasil, principalmente quanto ao clero secular. O clero regular e as ordens religiosas foram os principais alvos de manifestações contrárias, pois os adeptos do liberalismo consideravam-nas agentes do absolutismo e inimigas do sistema constitucional (SOUZA, 2010).

Norberto Bobbio (1998) coloca que, no plano político, o anticlericalismo pressupunha a laicização do Estado e a rejeição de toda interferência da Igreja e da religião na vida pública, afirmando como necessária a total separação entre política e religião, Igreja e Estado. A partir dessa definição é possível entender porque essa característica do movimento liberal não foi tão forte no Brasil, onde este adquiriu feições cristãs e a união entre o Estado e a Igreja foi ponto pacífico entre os deputados da Constituinte.

Uma das primeiras preocupações dos parlamentares, no aspecto religioso, não foi o privilégio de uma região ou outra, ou questões ligadas à prática religiosa e moral da população, mas sim a reorganização da geografia eclesiástica do Brasil. Na visão deles, esse assunto cabia ao governo, e não à Igreja, pensamento muito ligado ao próprio termo freguesia, que na época designava tanto a circunscrição religiosa quanto civil (NEVES, 2009). Logo, reorganizar a geografia eclesiástica era também conhecer e reorganizar a geografia do Estado brasileiro.

Pedro de Araújo Lima, futuro regente, propôs uma emenda para que o governo oficiasse os bispos para que informassem as igrejas que necessitavam de divisão. Joaquim Manuel Carneiro da Cunha, representante da Paraíba, ofereceu um aditamento para que todas as paróquias com mais de oito mil almas fossem divididas; e José Ricardo da Costa Aguiar Andrada sugeriu uma “reforma geral” para que essas providências se estendessem por todo o Império, pois quase todas as freguesias se achariam em situação de grandes extensões e população para um único pároco (BRASIL, 1823).

Ao pensarmos na peculiaridade da fisionomia religiosa do Brasil à época da Independência é compreensível esse tipo de preocupação por parte dos parlamentares, pois, como anteriormente mencionado, o Estado muito se utilizou da estrutura burocrática e organizacional da Igreja durante a sua constituição, mesmo com a situação precária na maior parte do território, pois

Para uma população que, provavelmente, ultrapassava quatro milhões de almas, as paróquias não deviam ir além de 600, o que dava a inacreditável média de quase sete mil fiéis por pároco. Se, nas cidades e nas regiões mais densamente povoadas de partes do litoral ou das minas, as freguesias tinham dimensões razoáveis, no restante do território estendiam-se por tantas léguas, que faziam da administração do pasto espiritual – isto é, dos sacramentos – uma tarefa quase impossível, que não dispensava o uso do cavalo e canoa, como freqüentemente os padres solicitavam (NEVES, 2009, p. 384).

O projeto constitucional apresentado à Assembleia Constituinte em seu artigo 16 foi acatado sem polêmicas e por unanimidade, estabelecendo que “A religião católica apostólica romana é a religião do estado por excelência, e única mantida por ele.” (BRASIL, 1823, p. 689). Esse fato pode encontrar explicação no sentimento religioso sobre o qual foi construída uma ideia de sociedade brasileira, bem como no regalismo predominante na política do período e no entendimento partilhado entre clérigos e leigos que a religião católica possuía importante função integradora, sendo o sustentáculo moral e instrumento de controle social, não podendo ser, portanto, dissociada do Estado.

Essa crença na religião como instrumento moral de sustentação do Estado está presente em diversas falas dos parlamentares registradas nos Anais da Constituinte. O deputado Muniz Tavares afirmava que era sempre necessário o homem ter religião, pois “[...] da sua observância pende a boa moral e com ela formam-se bons cidadãos.” (BRASIL, 1823, T. III, p. 195). Já o deputado Carneiro de Campos dizia que somente na religião seria possível encontrar “[...] o suplemento necessário às Leis civis e a uma moral sempre incompleta.” (BRASIL, 1823, T. III p. 191).

Para Neves (2009), o que ocorria na Constituinte de 1823 era o enfrentamento de dois universos mentais, um conservador e outro de inspiração liberal. Onde, mesmo com alguns parlamentares já tendo contato com a literatura antirreligiosa do século XVIII, admitia- se uma atitude de fiéis depositários da tradição católica por interesses políticos do momento, e não por um simples sentimento de fidelidade à fé católica ou à Igreja.

Reveladora dos variados pontos de vista, influências e universos mentais que compunham a primeira Constituinte do Brasil é a longa discussão iniciada em 7 de outubro de 1823 sobre a liberdade religiosa, que apareceu na ordem do dia em sete sessões, suscitando aproximadamente setenta intervenções. O debate iniciou-se pela votação do § 3° do artigo 7º do Projeto da Constituição, que incluía como direito individual dos brasileiros a “liberdade religiosa”, e apesar de toda a polêmica levantada, nenhum eclesiástico se posicionou terminantemente contrário ao que se tencionou instituir (SANTIROCCHI, 2010) e o § 3º acabou passando sem modificações.

Detalhando as discussões sobre a “liberdade religiosa” na Constituinte de 1823, Guilherme Pereira das Neves (2009) destaca que

Nela esteve envolvido cerca de um terço dos 84 constituintes, representando nove províncias [...] Desse conjunto, nove eram religiosos, incluindo um bispo; três ligavam-se ao foro; um se apresentara apenas como proprietário. No futuro, três participariam da redação da Constituição de 1824; a oito seriam outorgados títulos nobiliárquicos. E a 15, a condição de senador do império. O maior número de intervenções (sete) coube a José da Silva Lisboa, da Bahia, o futuro visconde de Cairu. Quase tão participativos foram Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (SP), Francisco Gê Acaiaba Montezuma (BA) e, ainda que em campos opostos, os padres Manoel Rodrigues da Costa (MG) e Venâncio Henriques de Resende (PE), um inconfidente de 1789, e o outro preso em 1817 (p. 387).

É possível constatar que na Constituinte de 1823 ainda não havia se consolidado um movimento católico liberal. O que havia eram padres e leigos que, influenciados por esse ideário, faziam leituras e questionamentos mais diretos a determinados preceitos da Igreja, mas sem abdicar do entendimento de que o Estado deveria intervir nos assuntos eclesiásticos que dissessem respeito à moral e à conduta da sociedade.

Contudo, fora as questões religiosas de interesse público, os outros assuntos ligados à crença individual eram entendidos como de natureza privada e, portanto, fora da ingerência do Estado. Nesse sentido, é possível entender a defesa da liberdade de religião em um Estado confessional, onde o pensamento católico liberal compactuava com os princípios regalistas em voga desde o período pombalino. Para esse tipo de compreensão da particularidade da situação histórico-social brasileira é necessário ter presente que “[...] em

relação ao catolicismo, o liberalismo retórico era limitado pelo regalismo real, ou seja, defendia-se a liberdade de culto para os acatólicos, mas sem eliminar as restrições regalistas contra o clero católico.” (SANTIROCCHI, 2010, p. 67).

A causa da liberdade religiosa foi a que conseguiu aglutinar mais padres em torno de si. Estes se dividiram entre favoráveis, em maior número, e os que, mesmo não negando por completo a liberdade de crença, sustentavam uma orientação religiosa mais conservadora, exigindo limites bem claros à mesma.

Os padres constituintes Custódio Dias, Muniz Tavares, Martiniano de Alencar, Henriques de Resende, Rocha Franco e Antonio Caldas defenderam abertamente a liberdade religiosa, tal como ela se apresentava no projeto constitucional. Utilizaram como justificativa a doutrina jusnaturalista14, defendendo a liberdade de crença como um direito natural, anterior e superior ao direito positivo, do qual o indivíduo não abrira mão quando do pacto social, logo, fora da competência do Estado e inalienável.

Nesse entendimento, ao Estado só caberia a administração do culto em seu aspecto externo, evitando a perturbação da ordem pública. Assim, os clérigos justificavam a liberdade de culto doméstico e vedavam o direito ao culto público às religiões não cristãs, por afirmarem que estas possuíam costumes muito diferentes dos nossos e que afetariam a ordem pública, apresentando e delimitando as bases jurídicas e políticas sobre as quais a liberdade de crença fora proposta no Brasil.

Para além da esfera política, os padres que defenderam a liberdade de culto buscaram ampliar a sua argumentação demonstrando que essa medida também seria benéfica para a própria Igreja Católica. Com este objetivo, Muniz Tavares e Henriques de Resende se utilizaram de seus conhecimentos sobre a história da Igreja, destacando os seus momentos de intolerância e as consequências negativas que eles tiveram entre o povo, afirmando que em um ambiente de tolerância religiosa o catolicismo tenderia a ampliar-se (BRASIL, 1823, T. III).

Outro argumento amplamente utilizado para a obtenção da aprovação da liberdade de crença foi de fundo moral, destacando a questão da consciência religiosa. Os clérigos colocaram que era necessário “[...] estabelecer uma relação de sinceridade entre os fiéis e

14 Segundo Guido Fossò “O Jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um „direito natural‟ (ius naturale), ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer. O Jusnaturalismo é, por isso, uma doutrina antitética à do "positivismo jurídico", segundo a qual só há um direito, o estabelecido pelo Estado, cuja validade independe de qualquer referência a valores éticos.” (BOBBIO, 1998, p. 655-656).

Deus, extirpando da Igreja a hipocrisia originada da imposição religiosa.” (SOUZA, 2010, p, 200).

O debate em torno da liberdade religiosa, nesse período, também passava por questões econômicas, como a necessidade de redução do comércio de escravos por meio da migração de colonos europeus para o Brasil. A tolerância religiosa, nesse aspecto, possuía um objetivo utilitarista, pois era vista como condição indispensável para a entrada de estrangeiros no país, o que, na perspectiva da maioria dos constituintes, auxiliaria na prosperidade do Brasil a medida que desenvolveria a agricultura e aumentaria a população para povoar o vasto território (COSTA, 1999).

Por outro lado, os padres defensores da liberdade religiosa temiam ser confundidos com inimigos da religião. Françoise Souza (2010) ressalta que certos sacerdotes apresentaram desconforto durante a discussão daquela lei, temendo serem mal interpretados, pois seus opositores os denunciavam constantemente à população como destruidores da religião católica.

Na outra vertente, os opositores da liberdade religiosa na Constituinte evitavam serem vistos como inimigos ou contrários ao tipo de liberalismo corrente entre os parlamentares daquela Assembleia (NEVES, 2009; SOUZA, 2010). Logo, com o objetivo de não serem taxados de intolerantes, se posicionavam favoráveis a essa ideia enquanto um princípio do direito natural, mas buscavam meios de impor restrições a sua aplicação, como, por exemplo, tolerá-la somente para os estrangeiros e proibir a realização de cultos públicos (BRASIL, 1823, T. III).

Os clérigos que mais se posicionaram contrários à liberdade de culto foram o bispo D. José Caetano da Silva Coutinho e o ex-inconfidente Manoel Rodrigues da Costa. Contudo, o principal argumento utilizado não foi religioso, e sim político. Afirmavam que a proposta de lei não representava a maioria da população brasileira, que era católica, logo era

antipolítica e contrária ao sentimento e à vontade ampla do povo (BRASIL, 1823, T. III).

Outro argumento utilizado pelos conservadores foi o da necessidade de evitar-se o pluralismo religioso, pois o seu princípio poderia ser utilizado como base para o estabelecimento de ideias sobre pluralismo político, como na França, o que poderia ameaçar o regime monárquico brasileiro (PEREIRA; RIBEIRO, 2009). Outra linha argumentativa se relacionava com a necessidade de um elo identitário entre as províncias e consenso político entre os seus dirigentes, donde a unidade religiosa seria a fundamentação para a construção do Estado brasileiro e a religião católica era colocada como o único elemento capaz de agregar a nação.

Guilherme Pereira das Neves (2009) afirma que, mesmo admitindo posições contrárias, a quase totalidade da elite responsável pela elaboração do primeiro projeto de Constituição no Brasil continuava a partilhar uma concepção pombalina e regalista de que a jurisdição eclesiástica não era própria da Igreja, mas uma permissão do soberano, pois não a viam como uma instituição independente e autônoma, mas como um elemento inserido no Estado.

Outros artigos, como o 24º, que garantia aos bispos censurar escritos sobre dogma e moral, punindo os seus autores ou publicadores, caso fossem católicos, com o auxílio do governo, também provocou debates e oposições entre os deputados, mas não se chegou a nenhuma decisão sobre essa questão, pois as votações ficaram inconclusas devido à dissolução da Assembleia Constituinte (SANTIROCCHI, 2010).

No documento JOELMA SANTOS DA SILVA (páginas 77-83)