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A questão da escravidão

No documento JOELMA SANTOS DA SILVA (páginas 94-98)

2 O IMPÉRIO E A IGREJA NO BRASIL: A ATUAÇÃO POLÍTICA DE DOM

2.2 Elementos de uma dupla fidelidade: o posicionamento político-religioso de Dom

2.2.1 A questão da escravidão

Ao longo dos três séculos iniciais da expansão da ocupação portuguesa da América, a escravidão foi de suma importância para a sociedade e para a economia, não se resumindo somente às relações de trabalho, mas pautando as relações sociais de cativos e homens livres (SCHWARTZ, 1988).

Seguindo uma medida legislativa promulgada em 1807, os britânicos abandonaram o comércio de escravos africanos e iniciaram uma campanha de extinção desse tipo de atividade ao longo do Atlântico. O governo brasileiro foi amplamente pressionado pelos britânicos nesse sentido, principalmente após proteger a família real portuguesa na sua transferência para o Brasil em 1808 (MAMIGONIAN, 2009).

Os tratados anglo-portuguêses de 1815 e 1817, que proibiam o tráfico de escravos com países estrangeiros, tiveram a sua aplicação no Brasil restringida após a independência, em 1822. Nesse aspecto, o império formou-se sob a pressão inglesa de abolição do tráfico, visto que era essa a condição exigida durante as negociações do reconhecimento da independência brasileira por parte da Grã-Bretanha. Assim, o representante da coroa brasileira assinou um tratado de abolição do tráfico de escravos em 1826, que renovava os acordos anteriormente assinados com Portugal e proibia toda a importação de escravos para o Brasil a partir de 1830 (COSTA, 1999; MAMIGONIAN, 2009).

Quando este tratado chegou a Câmara dos Deputados para ser ratificado, gerou grandes polêmicas. Durante três sessões de julho de 1827 o tratado e os procedimentos do governo em sua negociação foram discutidos, acirrando o clima de competição entre o chefe do Executivo e os membros do Legislativo, posto que o principal aspecto questionado foi a autoridade do governo na negociação, assinatura e ratificação de um tratado sem a consulta e o consentimento prévio daquela casa, como exigia a Constituição (BRASIL, 1827).

Além da ameaça às bases do sistema econômico agrário e escravista brasileiro do qual muitos deputados eram diretamente ligados por uma rede de clientelismo ou como agentes diretos (COSTA, 1999), o discurso em defesa da soberania nacional foi o principal recurso utilizado pelos deputados para se colocarem contrários ao tratado. A cláusula sobre a pirataria, que dava à Inglaterra o direito de punir todo aquele preso em contravenção como pirata, foi considerada um ataque ao direito do Brasil, enquanto um Estado independente e soberano, julgar seus acusados e punir seus culpados (BRASIL, 1827).

De acordo com Beatriz Mamigonian (2009), o posicionamento da maioria dos deputados em relação à assinatura do tratado foi “[...] criticada como sinal de capitulação diante da Inglaterra e de admissão de inaceitável interferência externa em interesses nacionais.” (p. 220).

Os sacerdotes, por sua vez, fora D. Romualdo Antonio de Seixas e D. Marcos Antonio de Sousa, que pouco se envolveram diretamente nessa discussão. Souza (2010) adverte que o tema era tido por esse grupo como incômodo e desagradável na Câmara, o que explicaria o fato de declinarem a esse debate, seja por negligência ou por dificuldade de lidar com as contradições de pregarem a moral cristã no seio de uma sociedade escravocrata.

Naquela ocasião D. Romualdo proferiu um longo discurso em favor do fim do tráfico de escravos, afirmando que a escravidão era juridica e moralmente reprovável, contrária ao direito natural do homem, às luzes do século e aos princípios da filantropia; degradante de sua dignidade e oposto ao espírito do cristianismo (BRASIL, 1827). Utilizou nesse discurso princípios do liberalismo, ao que tanto se opunha, para justificar os seus argumentos, perante uma Câmara predominantemente liberal.

D. Marcos Antonio de Sousa se colocou ao lado de D. Romualdo, afirmando sua imensa satisfação em ouvir os argumentos produzidos sobre o fim do tráfico de escravos africanos. Disse ainda que este objeto havia sido discutido diversas vezes na Câmara inglesa, onde os deputados se esforçavam em demonstrar o quanto era detestável o comércio de escravos e que estas ideias era amplamente conhecidas na Europa e em todo o mundo civilizado, motivo pelo qual não se debruçaria sobre elas (BRASIL, 1827).

Mas, diferente de D. Romualdo, que combinou princípios religiosos e racionalistas na defesa do fim do tráfico, a argumentação de D. Marcos deixa clara a sua oposição a esse tipo de comércio, postura que já era comum em alguns setores da sociedade no período, mas se centra em um aspecto mais objetivo. Para ele “[...] toda a questão deveria versar sobre o procedimento que teria a augusta camara a respeito do tratado, que foi apresentado pelo ministro respectivo.” (BRASIL, 1827, p. 37).

O bispo do Maranhão se posicionou contrário àqueles que apontavam a ilegalidade de um convênio como o assinado com a Inglaterra sem o consentimento do Legislativo. Isto ressalta o seu posicionamento sobre em quem se depositaria a soberania posto que, para ele, o governo teria agido em conformidade com as suas atribuições e não necessitava de tal consentimento, sendo centrado na figura do imperador.

É desta maneira que analisa o artigo 102 da Constituição, deixando nítida a diferença que estabelece entre o governo e a Câmara, bem como a relação de subordinação da segunda pelo primeiro. Desta forma, afirma que

[...] é a primitiva competencia do governo declarar a guerra e fazer, a paz, celebrar tratados com as nações estrangeiras, e depois de concluidos os mesmos tratados, apresental-os à camara para seu reconhecimento, quando o interesse e segurança do estado o permittirem. Nem se pôde questionar sobre o estar já ratificado; porque um tratado não se considera concluido e obrigatorio senão depois da sua ratificação, segundo os principios de diplomacia, principios que muito bem desenvolve Martin, e outros celebres escriptores. Por isso o governo o apresentou a esta augusta camara, depois de satisfeitas todas as formalidades prescriptas (BRASIL, 1827, p. 37). Tentando abrandar e conformar seus colegas de deputação com o tratado celebrado entre a coroa do Brasil e da Inglaterra, realça que o ministro procedeu conforme as atribuições que a Constituição lhe concedeu, dentro das regras estabelecidas. A Câmara estaria somente tomando conhecimento do tratado para averiguar se haveria algum artigo prejudicial à nação para que se responsabilizasse o ministro que o negociou e nada mais, excluindo de qualquer culpa de prejuízo o imperante.

D. Marcos conclui sua fala apoiando o tratado, por este estar “[...] a par das luzes do século.” (BRASIL, 1827, p. 37), e como membro da comissão encarregada de analisá-lo, sustenta o seu parecer favorável, por

[...] ser a convenção feita com legalidade e que a esta camara não compete ocupar0se de ulteriores discussões, visto que os Srs. Deputados reconhecem a justiça do objeto em convenção e os sentimentos de humanidade da nação ingleza, e protecção e benevolencia do seu illuminado governo para com selvagens que habitão as costas d‟Africa (BRASIL, 1827, p. 38).

A importância do discurso de D. Romualdo e do posicionamento de D. Marcos em favor do fim do comércio de escravos ganha relevo quando recordamos a tradicional posição da elite eclesiástica brasileira na defesa da ordem estabelecida e, por conseqüência, na aceitação e até na participação no regime escravocrata durante o período colonial. Sobre essa questão José Murilo de Carvalho (1999) declara que “[...] o cristianismo em sua versão luso- brasileira, vale dizer, na versão do catolicismo ibérico, não foi capaz de gerar oposição clara à escravidão.” (p. 47). Já Kenneth P. Serbin (2008) lembra que “O código moral da Igreja tolerava o abuso sexual de cativos e a debilitação da família afro-brasileira.” (p. 59).

A argumentação de D. Marcos também apresenta princípios liberais, apesar deste ser identificado enquanto pertencente ao grupo dos conservadores na Câmara, o que denota

seu pragmatismo em algumas ocasiões, bem como um hibridismo no seu discurso. Dessa forma, não se rogava em utilizar argumentos desse ideário amplamente aceito naquela casa, quando convinha a seus objetivos.

Nesse caso, o objetivo era contra-argumentar com os oposicionistas que tentavam boicotar um acordo deveras importante para o reconhecimento internacional do sistema político-administrativo estabelecido após a independência e abalar a figura do monarca. Reafirma, assim, a soberania e o local de autoridade do monarca no espaço de poder político, o respeito à ordem e à hierarquia, valores do conservadorismo que eram caros para o clérigo, tanto do ponto de vista político quanto religioso.

Fora as questões políticas é necessário lembrar que também haviam questões particulares. Importantes membros do clero liberal que compunham a Legislatura de 1826, como Martiniano de Alencar, Diogo Feijó e Custódio Dias eram agricultores ou comerciantes e donos de escravos (SOUZA, 2010). Logo, o fim do tráfico afetaria diretamente os interesses desses clérigos. D. Marcos, por sua vez, não tinha origem na elite agrária, o que o deixava relativamente livre da influência da tradicional rede política de clientela e patronagem (COSTA, 1999), característica desse grupo.

Seu pai, Francisco Manuel de Sousa Costa, era bacharel e foi Ouvidor das Alagoas e Desembargador da Relação da Bahia. Assim, quando o bispo faleceu não deixou terras em seu testamento e libertou os poucos escravos que possuía, deixando-lhes vinte mil réis de esmola a cada um, e a preta Agostinha e seu filho Marcellino Antonio de Sousa, que o acompanharam da Bahia ao Maranhão, deixou um total de seiscentos mil réis e o usufruto de uma morada de casas térreas na Rua de João Pereira, na cidade da Bahia (ver ANEXO A).

Os bens que o bispo tinha quando faleceu, apesar de serem de grande valor quando comparados ao nível econômico da maior parte da população do período, não constituíam grande fortuna, o que, de certa forma, lhe dava uma maior liberdade de se posicionar a favor de questão tão polêmica e que teria grande impacto na economia nacional, como o fim do tráfico de escravos.

Isso era possível, naquele contexto, devido a composição diferenciada do seu capital em relação àqueles que compunham a nobreza da terra. Logo, as distinções adquiridas e estratégias utilizadas ao longo de sua trajetória para o sucesso na carreira, a ascensão na elite política e eclesiástica eram fatores muito mais pautados em atributos sociais, educacionais e culturais do que nos econômicos, pelo seu pertencimento a rede de patronagem ligada à figura do monarca e às atividades na burocracia de Estado.

No documento JOELMA SANTOS DA SILVA (páginas 94-98)