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A elite eclesiástica na política formal

No documento JOELMA SANTOS DA SILVA (páginas 45-49)

1.3 A eleição do clero e os elementos de inserção na política formal

1.3.1 A elite eclesiástica na política formal

Com base na Constituição do Império do Brasil de 1824 a monarquia hereditária, constitucional e representativa se dividia em quatro poderes: Executivo (o monarca e seus ministros de estado), Judiciário (juízes e jurados), moderador (Imperador) e o Legislativo, formado pelo Senado e pela Câmara dos Deputados.

Os membros do clero, principalmente aqueles pertencentes à elite eclesiástica, foram parte integrante e destacada da elite política do Império no período inicial de organização do Estado. Este duplo pertencimento influenciou a relação estabelecida entre o poder oficial e a religião, pois “A força político-eleitoral do clero manifestou-se justamente na ocasião em que a problemática da acumulação de poder do Estado, da elaboração de novas estruturas e da construção da unidade nacional mais desafiou os dirigentes do país.” (SOUZA, 2010, p.19).

O sacerdócio, nesse período, caracterizava-se por ser uma atividade pública análoga as demais profissões, onde o padre recebia um salário do governo, a côngrua, por ser considerado um funcionário público que exercia funções próprias da religião do Estado. Assim, após a ordenação os padres iniciavam a construção de suas trajetórias religiosas, muitas vezes se utilizando do capital social personalizado e não de um capital institucionalizado. Prática típica de uma sociedade patrimonialista em que o particularismo, o poder pessoal e o favoritismo são os meios por excelência de ascensão (CAMPANTE, 2003), como era a brasileira no período, o que também marcou o recrutamento da burocracia de Estado.

Após o ordenamento, os padres normalmente procuravam uma paróquia para pastorear, e após conseguirem lançavam-se a busca de melhores benefícios, paróquias mais bem localizadas, onde receberiam côngruas e emolumentos, além de garantirem sua

proximidade junto aos círculos de poder, bem como buscavam também a obtenção de insígnias (SOUZA, 2010). Esses elementos constituíam distinções que credenciavam seus portadores para ascender aos mais altos cargos na hierarquia eclesiástica, o que favorecia a entrada nas carreiras públicas. Além disso, a posse de um cargo político dava ao sacerdote maiores condições de ascender no interior da Igreja, o que fazia com que suas carreiras e trajetórias políticas e religiosas se entrecruzassem e influenciassem de maneira mútua.

Quando destacamos a elite eclesiástica não nos referimos a grandes homens ou tentamos entender a relação entre religião e política durante o período de constituição do Império do Brasil unicamente pelo meio de sua atuação. Nesse sentido, participamos da interpretação proposta por José Murilo de Carvalho (2011), quando este explica que as elites desse período histórico específico são diferenciadas entre si e distintas da massa da população por fatores sociais, culturais, econômicos ou políticos, sendo condicionadas por estes mesmos fatores e atuando dentro de limitações oriundas do seu contexto histórico, tendo pouco ou nenhum controle sobre eles.

De maneira análoga a elite política, identificamos os membros da elite eclesiástica como os membros do clero que possuíam os mais altos cargos dentro da hierarquia da Igreja Católica no Brasil. Assim, esses seriam os membros do capítulo catedral, no arcebispado, e do carpo capitular ou cabido, nos bispados, estando no topo da hierarquia os bispos e o arcebispo.

As elites eclesiásticas ou políticas, por si mesmas, não podem explicar todos os desdobramentos e consequências da relação entre Igreja e Estado. Por outro lado, não podemos negar que existam grupos minoritários e que estes sejam formados por agentes que possuam características em comum e exerçam poder de mando e influência decisiva em certos acontecimentos. Desta forma, esse tipo de análise se torna relevante, pois

Atribuir influência à atuação de elites políticas significa apenas negar o determinismo de fatores não-políticos, sobretudo econômicos, nas decisões políticas. Há sempre maior ou menor grau de liberdade nas decisões e o exercício dessa liberdade pode ser mais ou menos eficaz dependendo dos atores (CARVALHO, 2011, p. 20).

Essa considerável presença dos agentes da Igreja na ocupação de cargos do Legislativo no Estado, principalmente na primeira metade do século XIX, no período posterior à Independência, encontra explicações diversas, que não devem ser buscadas unicamente durante esse período e na realização efetiva dos pleitos, mas sim na própria função da religião como princípio estruturante do mundo, fazendo-se presente tanto nos

setores da vida pública quanto da privada, e nas mais diferentes esferas de socialização (NEVES, 2009).

O Brasil organizou-se por meio da ideia de uma Cristandade, pois o catolicismo foi um dos elementos constituintes da nacionalidade lusitana e, por conseguinte, da brasileira (SANTIROCCHI, 2010). Dessa relação adveio uma interpenetração estreita entre Igreja e Estado, religião e sociedade, característica marcante da cristandade colonial brasileira.

A primeira explicação pode ser formulada com base na estrutura burocrático- administrativa do Estado português no Brasil enquanto colônia, onde, devido a sua atrofia e até mesmo ausência nas regiões interioranas e mais longínquas de seus domínios, a autoridade religiosa se fez mais presente junto à população local do que a exclusivamente laica, legitimando o empreendimento colonial, fundando missões nas áreas de conquista, dando nomes cristãos ao território, erigindo igrejas, levando os padres a todas as esferas da vida colonial portuguesa, sustentando uma grande influência mental, cultural e política sobre os fiéis, que se estendeu também durante boa parte do período monárquico (SERBIN, 2008).

A Igreja Católica assegurava, através de seu clero, por diversas vezes, a logística da administração colonial, sendo responsável desde a cobrança de impostos até o recenseamento e a manutenção da ordem, entre outras funções. Nessa acepção, Sardica (2002) afirma que, diversas vezes o Estado “[...] só se revelava nas vidas individuais mediado pela homilia do cura, pelo ensinamento do frade ou pela pastoral do bispo.” (p. 130).

Segundo Sérgio da Mata (2002), a religião teve papel fundamental na construção dos espaços urbanos no Brasil, pois muitos povoados teriam sido erguidos em porções de terra doados à Igreja para a construção de capelas e, com o passar do tempo, habitações, vendas e estalagens iam se estabelecendo ao seu redor, formando os primeiros arraiais. Com a existência posterior de templos mais estáveis e a ampliação da ocupação, poderiam se constituir freguesias ou paróquias.

Essa ocupação territorial eclesiástica possuía também efeito civil, na medida em que era utilizada como divisão administrativa para o governo, tendo na figura do padre o seu primeiro representante. Em outro aspecto, toda a documentação produzida na freguesia, os assentamentos de batismo, casamento e morte, eram utilizados como registro cartorial, e a própria matriz funcionava como lugar das eleições locais e posse dos membros do Senado da Câmara (FAORO, 2008).

Também não foram raros os casos em que, diante da ausência de alguma autoridade pública, os bispos foram consultados em questões ligadas à administração das capitanias. Dentro dessa perspectiva, Hoornaert (1992) assevera que os bispos “[...]

funcionavam realmente como representantes do rei, seus substitutos na vacância de um governo tanto geral como regional.” (p. 278).

Deve-se destacar que em grande parte do Brasil, mas não em todo o seu conjunto territorial, durante o período colonial, a vida pública, associativa, considerada legal e moralmente aceitável se desenvolveu ligada à religião, porquanto

Seja dentro dos templos, durante as missas e sermões, seja na rua, em realizações de festejos religiosos, ou ainda por intermédio das confrarias e irmandades, os eventos religiosos eram um dos raros momentos em que as pessoas convivivam com outras de fora de suas famílias, tornado-se alvo de diferentes apropriações e formas de sociabilidade (SOUZA, 2010, p. 44).

Outro aspecto a se ressaltar diz respeito às peculiaridades do catolicismo colonial brasileiro e sua fraca ortodoxia, donde o clero se destacava no meio leigo pela sua verossimilhança com os fiéis no dia-a-dia. Não era raro ver padres sem o hábito sacerdotal, amasiados, casados, com filhos, em festas profanas, envolvendo-se em querelas de natureza temporal; compartilhando, enfim, dos mesmos problemas, questões e sentimentos de seus fiéis, o que os fazia serem vistos como porta-vozes aptos a falarem pelo povo, líderes em potencial (HOORNAERT, 1992; SOUZA, 2010; SERBIN, 2008).

Sobre as peculiaridades da prática católica durante o período colonial e a inserção dos padres nesse espaço, Kenneth P. Serbin (2008) destaca que “Normal também era o padre que vivia respeitosamente com uma mulher e tinha filhos. A preocupação principal do povo não era o celibato, mas ter padres que desempenhassem adequadamente outros deveres sacramentais e religiosos.” (p. 62).

Um aspecto interessante eram as missas. Estas tinham um significado que ia além do campo espiritual, pois em uma sociedade cuja aptidão para ler e escrever era limitada a poucos indivíduos e a comunicação oral prevalecia, o pároco, por meio da sua pregação, constituía a grande ligação entre a maioria iletrada e os mundos político, técnico e culto (SOUZA, 2010).

Como afirma Bourdieu (1996), o poder de influência do orador é proporcional ao capital simbólico que ele possui; ao reconhecimento, institucional ou não, de que ele é detentor de uma fala autorizada. Assim, os padres, através das missas, pregações, sermões, homilias, não raras vezes utilizaram-se do capital simbólico acumulado pela Igreja, instituição que lhes autorizava e conferia-lhes legitimidade, enquanto seus representantes, para adaptar os discursos proferidos nos púlpitos a seus interesses e aspirações pessoais.

Ao assumirem funções que iam além daquelas de natureza religiosa, ocupando, por vezes, o vazio institucional e burocrático do Estado, os padres tornavam-se autoridades que transitavam entre as esferas de poder temporal e espiritual. Além de uma simples opção, a relação intrínseca do clero católico com a política e com as atividades administrativas públicas, no início do século XIX, foi uma consequência do tipo de lugar que a Igreja ocupou na formação da sociedade brasileira desde o início do período colonial.

Outra explicação possível para a conformação do clero enquanto elite política no Primeiro Reinado e nas Regências está na sua presença entre os homens considerados cultos do país. Havia uma efetiva discrepância entre o nível educacional dos padres, principalmente entre os membros da alta elite eclesiástica, e o grande número de analfabetos que compunham a população. Isto fez com que esse grupo perfizesse também parte da intelectualidade da época e fosse solicitado a concorrer nas eleições, desde os cargos de vereança até as câmaras legislativas provinciais, nacionais e no senado (CARVALHO, 2011; SOUZA, 2010).

No documento JOELMA SANTOS DA SILVA (páginas 45-49)