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A ausência de obrigatória bilateralidade entre os delitos de corrupção

3. A ESTRUTURAÇÃO TÍPICA DOS DELITOS DE CORRUPÇÃO ATIVA E

3.1. A estrutura típica dos delitos de corrupção ativa e passiva

3.1.2. A ausência de obrigatória bilateralidade entre os delitos de corrupção

Como visto acima, o legislador de 1940 adotou um modelo que, a par de conceituar um delito com o mesmo nome de um fenômeno, o que largamente contribui para um prejuízo na sua compreensão em sentido estrito e também na multifacetada ocorrência da corrupção, separou-lhe a tipificação nas figuras passiva e ativa. Inclusive, o Código Penal brasileiro – ao contrário, por exemplo, do Código Penal de Portugal e da Espanha – estabeleceu locus distinto para cada uma das formas delitivas.

Desta forma, o delito de corrupção passiva está inserido no Capítulo I (Dos Crimes praticados por Funcionário Público contra a Administração em Geral) e o de corrupção ativa está no Capítulo II (Dos Crimes praticados por Particular contra a Administração em Geral), ambos previstos no Título XI (Dos Crimes contra a Administração Pública).

Tal alteração promovida em 1940 e vigente até hoje, para além de figurar mera alteração do ponto de vista histórico, fez com que se pudesse conceituar propriamente um delito de corrupção praticado pelo particular e, ao mesmo tempo, inseriu no Direito penal brasileiro a desnecessidade de que os delitos de corrupção ativa e passiva tivessem que ocorrer simultaneamente. Significa, como há muito aponta a doutrina398, a desnecessidade de existência da bilateralidade nos delitos de corrupção.

Sob este pormenor dois detalhes merecem realce. O primeiro se relaciona com a quebra da regra insculpida no artigo 29 do Código Penal.

398 HUNGRIA, Nelson. Comentários ..., p. 367; COSTA JR., Paulo José da. Comentários ...,

Ora, é consabido que este adotou como regra, no concernente ao concurso de pessoas, a teoria monista. A respeito elucida Guilherme de Souza NUCCI: “a) teoria unitária (monista ou monística): havendo pluralidade de agentes, com diversidade de condutas, mas provocando-se apenas um resultado, há somente um delito. Nesse caso, portanto, todos os que tomam parte na infração penal cometem idêntico crime. É a teoria adotada, como regra, pelo

Código Penal (Exposição de Motivos, item 25);”399

Nada obstante a regra advinda do artigo 29 do Código Penal, tem-se que, para alguns delitos, o Código Penal brasileiro adote “situações

de exceção pluralística ao princípio unitário do concurso de pessoas”400,

sendo certo que os delitos de corrupção passiva e ativa se enquadram entre as hipóteses excepcionais do Direito penal brasileiro.401

Tanto é assim que, analisados os núcleos dos tipos penais previstos nos arts. 317 e 333 do Código Penal brasileiro, percebe-se ser plenamente viável a ocorrência de solicitação por parte do servidor público sem o necessário adimplemento por parte do particular, tal como é também viável a prática do oferecimento de vantagem indevida por determinado particular sem que haja o aceite desta vantagem pelo servidor seduzido pela proposta que lhe é feita.

A conclusão inarredável a que se chega é não serem as modalidades de corrupção ativa ou passiva necessariamente bilaterais ou ainda crimes de concurso necessário. Com isso não se nega o óbvio, ou seja, a plena viabilidade de que os delitos ocorram conjuntamente, v.g., o oferecimento de dinheiro por parte de um particular a um agente penitenciário para que este possibilite a entrada de drogas e de munição para dentro de um estabelecimento prisional.402

399 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal ..., p. 322. 400 BUSATO, Paulo. Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2013. p. 704;

401 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal ..., p. 322; NUCCI, Guilherme de

Souza. Código Penal Comentado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 1291; BUSATO, Paulo. Direito Penal. Parte Geral. 1ª ed., p. 704; FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições ..., p. 437; PRADO, Luiz Regis. Curso ..., p. 475; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Volume 5. p. 77 e, em especial, p. 87; STOCO, Rui; STOCO, Tatiana de O. Dos crimes ..., p. 1467.

402 Exemplo de corrupção própria fornecido por SANTOS, Claudia Cruz; BIDINO, Claudio;

Aliada a esta característica de excepcionalidade em relação ao artigo 29 do Código Penal está, e aqui reside a principal importância, pois se trata dos limites do Direito penal em face da prevenção e da repressão à corrupção, a ampliação do espectro de punibilidade, quer-se dizer, de criminalização dos eventos relacionados à corrupção ativa e passiva.

Isso porque, a depender do modelo de bilateralidade – praticamente abolido em países de família romano-germânica403 – estar-se-ia sempre na dependência da confirmação dupla: de um lado do oferecimento ou promessa de vantagem indevida e do outro do aceite ou do efetivo recebimento de “propina”.404

Há de se pensar, conforme já referido, que o legislador de 1940 não compreendeu o tipo penal para a evolução tecnológica e social que seguiu, muito menos pelas dificuldades probatórias que se seguiriam à criminalidade organizada, onde a corrupção se insere. A única explicação, para o acerto na confecção dos tipos penais de corrupção ativa e passiva, desde 1940 independentes entre si, diz respeito à ampliação do espectro de punibilidade pela simples necessidade de considerar como grave e lesiva aos interesses da administração pública a atuação unilateral de um dos agentes envolvidos no delito, seja o agente público, seja o particular.

Não se pode negar que, perante o aspecto político-criminal405, a medida de autonomizar os delitos de corrupção ativa e passiva assume papel relevante e inarredável, cujo retrocesso sequer se imagina. Eis aqui um limite político-criminal ultrapassado em boa medida pelo legislador e que não merece reparos, ao menos neste aspecto. A título de nota e crítica fica a

Brasil. In: Direito penal econômico: questões atuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 533.

403 É a interpretação a ser retirada, ao menos, da legislação portuguesa (art. 372, 373 e 374

do Código Penal Português), espanhola (artigos 419 a 425 do Código Penal Espanhol) e alemã (§§ 331 a 334 do Código Penal Alemão); quanto ao aspecto doutrinário vide SÁNCHEZ TOMÁS, José Miguel. Cohecho, p. 384; MIGUEZ GARCIA, M.; CASTELA RIO, J. M. Código Penal. Parte geral e especial. Coimbra: Almedina, 2014. p. 1228.

404 Com o que, com a devida vênia, tem-se por equivocado o entendimento exposto por

WUNDERLICH ao afirmar que entende “a corrupção passiva como delito bilateral que depende da corrupção ativa” e que não vê “como possível a existência do crime de corrupção passiva sem a configuração da corrupção ativa.” WUNDERLICH, Alexandre. Dos crimes ..., p. 43.

405 Cf. QUANDT, Gustavo de Oliveira. Algumas considerações sobre os crimes de corrupção

ativa e passiva. A propósito do julgamento do “mensalão” (APN 470/MG do STF). In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 106, janeiro de 2014. p. 184.

incorreção, salvo melhor juízo, das expressões utilizadas por Paulo José da Costa Jr. e por Magalhães Noronha. O primeiro se refere ao delito de corrupção como sendo um “crime tentado”406, e acompanhado pelo segundo por meio da expressão “crime-tentativa”407. Não se trata de crime tentado, mas sim de clara antecipação da tutela penal para uma situação que, se não ofende diretamente o bem jurídico, ao menos ancora a sua legitimidade jurídico-penal por meio da colocação em perigo da administração pública e os objetivos por ela pretendidos em um Estado democrático de direito.

A propósito, não se trata de utilização desmesurada da lei penal, simbólica ou ainda apriorística, levando o Direito penal a um embate inicial despropositado e fora de suas precípuas funções, mas sim de reconhecer que, em alguns casos, a antecipação da tutela penal nada mais desempenha do que o óbvio e o esperado. Se a par disso o órgão acusatório se desincumbe de certa carga probatória é mera consequência que decorre de configuração típica adequada à finalidade do Direito penal.