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Atipicidade da conduta de dar ou entregar a vantagem indevida

3. A ESTRUTURAÇÃO TÍPICA DOS DELITOS DE CORRUPÇÃO ATIVA E

3.2. Tomada de posição As consequências do modelo unilateral adotado pelo

3.2.2. Atipicidade da conduta de dar ou entregar a vantagem indevida

É conhecido dos afetos à matéria penal que os delitos de corrupção passiva e ativa no direito brasileiro sofreram reforma, promovida pela Lei n. 10.763/2003, apenas em relação à quantidade de pena.

Dessarte, é lugar comum que a tipologia de tais delitos assuma caracteres desde há muito reconhecidos pela doutrina pátria, a começar pela já demonstrada não exigência de bilateralidade entre ambos. Nada obstante esta independência, é também evidente a ausência de homogeneidade entre os verbos incidentes sobre os tipos penais mencionados.

A mera leitura dos tipos, em suas acepções impróprias (arts. 317, caput e 333, caput, do Código Penal) demonstra que na corrupção passiva estão punidas as condutas de solicitar, receber e aceitar promessa de vantagem indevida, enquanto na modalidade ativa estão previstas as condutas típicas de oferecer e prometer vantagem indevida ao agente público.

Trata-se de uma ampliação dos limites do Direito penal, embora realizada há muito tempo que, sem dúvida alguma, “facilita sua

punibilidade”.410 Ademais, vem acompanhada de um correto fundamento, pois

realmente há inserção adequada da norma penal na punição autônoma e independente destes delitos.

Portanto, há uma pergunta muito evidente a ser feita, mas que raramente recebe o enfrentamento devido: qual a interpretação possível, a partir da norma penal brasileira em vigor, a ser lançada sobre a conduta do

particular que, ao concordar com o pedido anteriormente formulado pelo agente público, dá/entrega a vantagem indevida pretendida?

Afora qualquer espécie de elucubração sobre a vontade do legislador de 1940 e que poderia fundamentar a pensada e pretendida não punição do particular a partir do momento em que a iniciativa tenha partido do agente público, realmente as disposições penais brasileiras a respeito deixam a desejar.

Uma característica a ser desvelada inicialmente é o desrespeito ao princípio da previsibilidade da norma penal. Um bom exemplo é como está redigido o tipo penal do artigo 333, caput, do Código Penal. Ora, a imprecisão da norma penal, deixando dúvida se a literalidade do texto incluiria a conduta de dar ou entregar vantagem indevida como punível, afronta fatalmente o princípio da taxatividade penal. Neste sentido elucida Iñigo ORTIZ DE URBINA GIMENO:

“(...) la especial exigencia de taxatividad en materia penal es consecuencia de la mayor gravedad de las consecuencias en este ámbito y por completo compatible con la consideración del principio de legalidad penal como una especificación del más general principio de legalidad de la intervención pública en la vida de las personas.”411

Dessarte, melhor conclusão lógica não há do que, a partir da legislação atualmente em vigor, concluir pela atipicidade da conduta daquele particular que, após ter sido solicitado pelo agente público, entrega/dá a vantagem indevida a este, eis que “por mais criticável que seja esta configuração legislativa, não parece possível, ante os reclames do princípio da legalidade, incriminar-se um tal proceder, donde a necessidade de

alteração legislativa a consubstanciar explicitamente tal reproche.”412

Cumpre citar a opinião de André ESTEFAM:

“Quando o funcionário público exige a vantagem indevida, comete concussão (art. 316), figurando o particular que cedeu à pressão, diante do temor incutido pela função desempenhada (i.e., metus publicae potestatis) como vítima. O mesmo ocorre quando o servidor toma a iniciativa do negócio escuso e solicita o pagamento da vantagem. Inexiste, nesse contexto,

411 ORTIZ DE URBINA GIMENO, Iñigo. Leyes taxativas interpretadas libérrimamente?

Principio de legalidad e interpretación del derecho penal. In: La crisis del principio de legalidad en el nuevo derecho penal: decadencia o evolución? Edición e introducciones de Juan Pablo Montiel. Marcial Pons: Madrid, 2012. p. 177.

412 SANTOS, Cláudia Cruz; BIDINO, Claudio; MELO, Débora Thaís de. Notas ..., p. 549. Vale

citar, respeitosamente, entendimento contrário, como é o exposto por NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal ..., p. 1052.

corrupção ativa, porquanto tal ilícito exige do extraneus que “ofereça” ou “prometa” a vantagem ilícita – isto é, deve ser sua a iniciativa e não do servidor. O art. 333 não inclui os verbos “dar” ou “entregar” no seu preceito primário. Comparando os tipos penais da corrupção ativa e da passiva nota- se uma correspondência em quase todas as condutas. Quando o particular oferece ou promete a vantagem ilícita e o funcionário a aceita, ambos estarão incursos no CP, imputando-se a eles, respectivamente, corrupção ativa e passiva. Sublinhe-se que, nas hipóteses retratadas, a iniciativa foi do extraneus (ou seja, o particular é que corrompeu o servidor). Dando-se o inverso (ou seja, se a proposta partir do funcionário), repise-se, só ele comete crime.”413

Assim é que merece especial destaque a corajosa decisão jurisprudencial de se reconhecer que “o delito de corrupção ativa caracteriza- se com o oferecimento ou promessa de vantagem a funcionário público,

sendo atípica a conduta de "dar" a benesse após solicitação deste.”414

Por outro lado, se assim é a legislação pátria, fica a pergunta se outra solução, não interpretativa, mas sim legislativa, seria viável de ser adotada. Há lugar para uma reforma legislativa que contemple a punição do particular hoje “impune”?

A resposta é afirmativa, mas com detalhes a serem observados. A um, em razão do caráter velado, sigiloso e secreto do atuar corruptivo, seja ele ativo ou passivo, desvelar a limitação precisa se a oferta inicial partiu do agente público ou do privado torna-se quase que inviável na prática.

A dois, porque a conduta do particular, que livremente se põe a negociar com o agente público, merece reprovação penal, simplesmente porque lesiona o bem jurídico tutelado no delito de corrupção em sentido estrito, qual seja a imparcialidade do servidor público.

Convém ressaltar também uma necessária recolocação das condutas típicas de corrupção ativa. Nada obstante a leitura crítica aqui vertida, é conhecida a tendência jurisprudencial de se concluir pela ocorrência da corrupção ativa na atitude de entregar ou dar a vantagem indevida requerida pelo funcionário público sob o entendimento de que se

413 ESTEFAM, André. Direito penal. Parte Especial. Volume 4. Arts. 286 a 259-H. São Paulo:

Saraiva, 2011. p. 310 e 311.

414 TRF4 – Apelação Criminal 2004.72.00.015990-6 – 8ª Turma – Rel. Des. Fed. Luiz

trata de uma troca entre iguais415, com o que existiria nesta troca a plena chance de o particular não aquiescer com a entrega.

Esta abstrata “troca entre iguais” é realmente abstrata e não se atém ao cotidiano. Como assim uma troca entre iguais? O milionário empresário está em condições de igualdade ao negociar com o contínuo do órgão de trânsito municipal? O auditor da Receita Federal está em condições de igualdade ao tratar de vantagem indevida com um microempresário? A artificialidade desta construção é flagrante e merece o rechaço da doutrina.

A título de tomada de posição a reforma legislativa brasileira deveria passar por:

i) criminalizar a conduta do particular que entregue ou dê a vantagem indevida solicitada pelo servidor público com o objetivo de obter um tratamento parcial deste;

ii) deixar assentado na norma penal que é isenta de pena a conduta do particular que entrega ou dá a vantagem indevida a servidor público quando o ato de ofício pretendido pelo particular lhe é justo, esperado e devido.

Neste último sentido observa MILITELLO416:

“El particular debe responder además en cuanto haya remunerado al funcionario público para obtener de él un tratamiento más favorable que aquel que un ejercicio imparcial de sus poderes le habría dispensado. Hay que excluir, sin embargo, la responsabilidad del particular que haya remunerado al funcionario público a fin de que éste realizase una conducta que debería realizar, porque en verdad tiene poco sentido castigar a quien paga para obtener aquello que le es debido gratuitamente, en la misma forma y en el mismo tiempo en los que le es debido: en términos reales, nadie se gravaría con este costo adicional si no hubiese sido <<obligado>> de alguna forma.

La razón por la que hay que diferenciar los casos de acto discrecional de los de acto debido, haciendo depender de ello – en las hipótesis de cohecho impropio – el an de la responsabilidad del extraneus, parece ser la siguiente: en el caso en el que el particular remunere al funcionario público para que este último se comporte como es su deber hacer, la <<corrupción>> pretende que el <<corruptor>> obtenga exactamente aquello a lo que tendría derecho

415 V.g., “(...) 2. Na exigência do corruptor tem-se a coação, a ordem, a imposição sob pena

de mal sério e grave (ainda que não especificado), daí a dificuldade ou impossibilidade de resistência do particular, que por isso não será processado por corrupção ativa. Na solicitação do corrupto, tem-se uma troca, um acordo entre iguais, donde a possibilidade plena do particular não aceitar a entrega da vantagem e sua responsabilização pelo crime de corrupção ativa. (...)” TRF4 – Apelação Criminal n. 2000.71.11.000494-6, Rel. Exmo. Des. Tadaaqui Hirose, 7ª Turma, DJ 17.05.2006.

416 MILITELLO, Vincenzo. Concusión …, p. 255 e 256. Da mesma forma RODRÍGUEZ

gratuitamente. Hipótesis en la cual, se ha dicho ya, sería injusto castigar a quien en el fondo soporto un costo por obtener un derecho.”

3.2.3. Ato de ofício como elemento típico apenas está presente na corrupção