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Ato de ofício como elemento típico apenas está presente na corrupção

3. A ESTRUTURAÇÃO TÍPICA DOS DELITOS DE CORRUPÇÃO ATIVA E

3.2. Tomada de posição As consequências do modelo unilateral adotado pelo

3.2.3. Ato de ofício como elemento típico apenas está presente na corrupção

Parece, ao contrário, que o legislador deixou de maneira bem evidente a situação diversa dos tipos direcionados ao servidor público e ao particular. Ao servidor são proibidas as condutas de solicitar, de receber e de aceitar promessa de vantagem indevida, seja para si ou para terceiro, em razão de sua função. Já ao particular estão proibidas as condutas de oferecer ou prometer vantagem indevida para determinar o servidor a praticar, retardar ou não praticar determinado ato de ofício.

Assim, muito embora se compreenda interpretação diversa, fato é que o Estado Brasileiro possui, em matéria de corrupção, tipos de criminalização absolutamente diversos, exigindo muito menos elementos para que se dê a corrupção passiva e muito mais para que ocorra a corrupção ativa. Dessarte, o modelo de criminalização adotado desde 1940, sem dúvida equivocado, é permeado por aquilo que se pode chamar de <<unilateralidade absoluta independente>>. Explica-se, desde que estejam presentes alguns exemplos fáticos.

O servidor público A que solicita vantagem indevida ao particular B comete o crime de corrupção passiva, figura prevista no caput do artigo 317 do Código Penal. E assim será independentemente de vincular à sua solicitação eventual prática ou não prática de algum ato de ofício. Da mesma forma, o servidor público A, que receba vantagem indevida ou aceite promessa de tal vantagem de um particular, cometerá o delito de corrupção passiva, anote-se, independentemente da prática ou não prática de um ato de ofício. E mais. Independentemente de tal ato de ofício ter sido mencionado pelo agente faticamente, mas não criminalmente, corruptor.

Ora, a bilateralidade até pode existir. Ela não decorre dos esforços doutrinários, interpretativos ou jurisprudenciais, mas sim de aspectos normativos. Portanto, faz-se necessário separar a legislação

brasileira sobre os tipos penais de corrupção em sentido estrito entre aquilo que efetivamente são e entre aquilo que se gostaria que fossem.

Reconhecer os equívocos desde há muito tempo incidentes em nossa legislação é a melhor forma para propugnar uma reforma adequada e consentânea com a realidade. Outro ganho obtido com esta interpretação é o de poder identificar as falhas de toda a sorte incidentes, inclusive quanto à (des)proporcionalidade da pena, muito embora idêntica, a incidir sobre criações de distintos perigos ao bem jurídico tutelado.

Olhos postos no já afirmado, a bilateralidade do ponto de vista jurídico-penal irá incidir apenas e tão-somente nos casos em que o oferecimento ou promessa de vantagem se inicie pelo particular e que haja vinculação para este oferecimento ou promessa de vantagem com o intuito de retardar, omitir ou praticar um determinado ato de ofício. Eis aqui a possibilidade de bilateralidade típica entre as duas figuras de corrupção. De outro canto, caso ocorra o oferecimento ou promessa de vantagem a determinado funcionário público e este acabe concordando com o agente corruptor, na hipótese de não restar identificado o ato de ofício, ter-se-ia apenas a corrupção passiva, pois ao funcionário, como dito acima, é proibida a prática do recebimento ou do aceite de vantagem indevida em qualquer circunstância.

Alerte-se: se isto é ou não desejável político-criminalmente, se com tais figuras típicas se tutela o bem jurídico <<imparcialidade>> de maneira adequada aos princípios penais de garantia, é tudo uma questão de crítica ou, ainda, de reconstrução da legislação brasileira.

Eis o retratado por Rui STOCO417 ao afirmar que a “bilateralidade só se apresenta nas modalidades de recebimento da vantagem indevida ou da aceitação da promessa de tal vantagem por parte do intraneus, ou de adesão do agente público à solicitação do particular ou administrado, ou nas formas qualificadas previstas no §1º e parágrafo único, respectivamente, dos arts. 317 e 333, do CP.”

Contudo, ainda que a bilateralidade, passível de existir em algumas das modalidades de suborno, classifique o delito como um delito de

concurso necessário, resta indagar se tal bilateralidade importa, no campo processual, mais precisamente nos momentos de aviar a denúncia e de ser prolatada eventual decisão condenatória, a necessidade de serem identificados os dois polos, in casu, ativo e passivo. Evidentemente que para falar de bilateralidade se faz imperiosa a menção a servidor público de um lado e de um particular de outro, mas a dúvida persiste efetivamente quanto à plena identificação do sujeito ativo da corrupção ativa ou ainda da corrupção passiva.

Um exemplo tende a auxiliar a interpretação da questão. Por meio de interceptação telefônica licitamente concedida, descobre-se que o particular A, industrial do ramo farmacêutico, oferece valor ao servidor público B, integrante da agência nacional de vigilância sanitária. O objetivo era acelerar a aprovação de autorização para o comércio de um novo medicamento produzido pela indústria capitaneada por A; B, de acordo com a prova telefônica, aceita a promessa de tal vantagem.

Dado o caráter cartesiano do exemplo, evidente que uma vez identificados A e B, ambos poderiam ser denunciados pelas condutas perpetradas. A dúvida remanesce, contudo, se no caso concreto apenas A é de fato identificado, mas B não. Nesta última hipótese poderia A ser denunciado por oferecer vantagem a pessoa que, muito embora não identificada corretamente, seguramente ostenta a qualidade de “funcionário público” em conformidade com o artigo 327 do Código Penal? Quais os limites processuais-penais a incidir neste caso concreto?

A complexidade e a dinâmica dos delitos de suborno vão, contudo, além desta mencionada duplicidade de autores ou, como se quer na doutrina e jurisprudência pátrias, bilateralidade. Tem-se, em tantos casos, assevere-se, uma multiplicidade e pluralidade de agentes, isso tudo muito relacionado à ideia sub-reptícia e sigilosa da corrupção e do suborno, a considerar a partir das redações típicas em vigor no direito brasileiro, pois estampado está no tipo penal da corrupção passiva, artigo 317, caput, do Código Penal, o termo “para si ou para outrem”.

Assim, num primeiro momento, encontram-se nas pessoas do particular decidido a oferecer ou prometer o suborno e o servidor público

suscetível de aceitar a promessa de vantagem e recebê-la. Contudo, pode-se agregar que (i) eventual beneficiário da vantagem indevida possa não ser o funcionário público, (ii) que eventual solicitante ou receptador não seja apenas o funcionário público, incluindo-se aqui mais um autor ao delito, bem como as situações de (iii) que aquele que oferta ou entrega a vantagem indevida seja pessoa diversa do particular que se beneficia do ato ou omissão do funcionário público.418

O termo ato de ofício foi incluído tanto na figura do caput do artigo 333, do Código Penal, como na figura do § único do mesmo artigo. Conforme já afirmado, tal termo é de fato precário, de difícil definição e poderia inclusive ser reformulado em futura reforma legislativa.

Contudo, precário ou não, trata-se de elemento normativo do tipo419 e que não pode ser simplesmente relegado pelo intérprete ou aplicador da norma. Necessita sim ser interpretado, à luz do que foi proposto acima, isto é, de maneira mais consentânea à realidade da corrupção que permeia a administração pública brasileira. Assim é que se manifestam SANTOS, BIDINO e MELO ao lucidamente afirmarem que

“não se pode negar que o tipo de corrupção ativa (art. 333 do CP), ao dispor que os comportamentos sejam empreendidos “para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”, acaba por dar azo às exigências alargadamente feitas pela doutrina e jurisprudência brasileiras para fins de censurabilidade, para afastamento de quaisquer dúvidas e maior proteção ao bem tutelado, de uma alteração legislativa a deixar patente o reproche conquanto não provado um liame entre a benesse ofertada e um determinado ato.”420

Desnecessária a citação de todos os autores que referendam a exigência da incidência do ato de ofício para a tipificação da corrupção ativa, posto que lugar comum. Por se tratar de exigência normativa clara e direta, não há como negá-la. Definido o ato de ofício, talvez o primeiro entrave, deságua-se na (des)necessidade de incidência do ato de ofício para o delito de corrupção passiva (item 3.3. infra) e também no quão definido há de ser o ato de ofício para que se tipifiquem o suborno ativo e passivo na legislação brasileira (item 3.4. infra).

418 SÁNCHEZ TOMÁS, José Miguel. Cohecho, p. 385.

419 A respeito da distinção entre elementos normativos e descritivos do tipo vide ROXIN,

Claus. Derecho Penal, p. 305 a 307.

Como conclusão preliminar absolutamente óbvia para este tópico tem-se que o ato de ofício é elemento descritivo do tipo penal de corrupção ativa e há de ser obrigatoriamente compreendido e aplicado.

3.2.4. A exigência normativa do ato de ofício para a conformação do tipo