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3. A ESTRUTURAÇÃO TÍPICA DOS DELITOS DE CORRUPÇÃO ATIVA E

3.2. Tomada de posição As consequências do modelo unilateral adotado pelo

3.2.4. A exigência normativa do ato de ofício para a conformação do tipo

3.2.4.1. Posicionamentos favoráveis à exigência

Sempre muito bem lembrada pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive no recente julgamento da Ação Penal n. 470 perante o Supremo Tribunal Federal, a Ação Penal n. 307, envolvendo o ex-presidente Fernando Collor de Mello421, é um marco no tocante ao estudo dos elementos componentes do tipo penal de corrupção no direito brasileiro e, de maneira especial, do aludido <<ato de ofício>>.

Sem fazer pouco caso das decisões jurisprudenciais provenientes de outros órgãos e instâncias julgadoras, o ganho teórico- técnico advindo destes grandes julgamentos é notório, pois se vislumbra o apreço dos responsáveis pelas decisões judiciais ao se debruçarem sobre temas que, permissa venia, em casos normais, não teriam a mesma conveniência, atenção e cuidado.

De acordo com o que bem relembra Renato de Mello Jorge SILVEIRA422, a votação realizada na sede da Ação Penal n. 307 (STF) não foi unânime. Se a composição do julgamento contou com os Exmos. Srs. Ministros Octavio Galloti (presidente da Suprema Corte), Ilmar Galvão (relator), Moreira Alves (revisor), Sepúlveda Pertence, Sidney Sánchez, Néri da Silveira, Celso de Mello e Carlos Velloso, é pontual asseverar que os Ministros Sepúlveda Pertence, Néri da Silveira e Carlos Velloso votaram

421 A respeito do caso, com detalhes importantes, vide FURTADO, Lucas Rocha. As raízes

..., p. 276 a 290.

422 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. O Supremo, do caso Collor ao mensalão. In: Jornal

Valor Econômico, dia 09 de outubro de 2012. Disponível em

http://www.valor.com.br/mensalao/2860364/o-supremo-do-caso-collor-ao-mensalao, acesso em 05 de julho de 2015, às 12h40min.

contra a tese majoritária, qual seja a exigência do ato de ofício para a configuração do delito de corrupção passiva.

Extraem-se do voto condutor do Exmo. Ministro Ilmar Galvão os seguintes argumentos a justificar a afirmação lançada em seu voto: “... a doutrina e a jurisprudência pátrias nunca discreparam, e não discrepam, do entendimento de que a consumação do delito de corrupção passiva, se, de uma parte, prescinde da efetiva realização do ato funcional correspondente, de outra, exige que a prática ou omissão deste tenha sido a causa da solicitação, do recebimento ou da aceitação da vantagem ou da promessa de

vantagem indevida.”423

O primeiro argumento reside, assim, na noção de que os delitos de corrupção passiva e ativa, com exceção das modalidades unissubjetivas de solicitar (passiva) e oferecer (ativa), importam a noção de bilateralidade, ou seja, são interdependentes entre si, de maneira que para um ocorrer o outro também é necessário.

A mesma opinião é defendida por Cezar Roberto Bitencourt:

“É necessário que haja uma promessa formulada por um extraneus, que é aderida pelo funcionário público, aceitando recebê-la futuramente. Pressuposto dessa figura é a existência de promessa de vantagem indevida formulada pelo agente corruptor, configuradora do crime de corrupção ativa. Em outros termos, como demonstraremos no tópico seguinte, nas duas modalidades – receber e aceitar - , estamos diante de crime de concurso necessário, no qual a bilateralidade está caracterizada.”424

Assim também conclui Heleno Claudio FRAGOSO declinando:

“Na forma de solicitação, independe o crime de seu acolhimento (a ação parte aqui do próprio corrompido), sendo bastante que o pedido chegue a conhecimento do interessado. Nos casos de recebimento e de promessa, há um entendimento e um acordo entre o agente e o corruptor (que será, por sua vez, agente da corrupção ativa).”425

O segundo argumento exposto no voto se baseia na doutrina de Nélson HUNGRIA. Sob a sombra de ter integrado a comissão elaboradora do Código Penal de 1940, Nelson HUNGRIA aludia que “a corrupção (...) no seu tipo central, é a venalidade em torno da função pública, denominando-se

423 Trecho do voto do Ministro Ilmar Galvão a respeito do crime de corrupção passiva, p.

2194 do acordão da Ação Penal n. 307 (STF). Disponível em

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=324295, acesso em 30 de junho de 2015, às 18h10min.

424 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Volume 5. p. 79. 425 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições ..., p. 440.

passiva quando se tem em vista a conduta do funcionário corrompido, e ativa

quando se considera a atuação do corruptor.”426

O Ministro Relator da Ação Penal 307 aliou a tal entendimento a opinião de que no direito brasileiro a corrupção assenta-se, “de modo real ou virtual, na existência de duas prestações recíprocas, a comporem um pseudo-

sinalagma”427, não tendo o direito brasileiro punido a mera aceitação ou

solicitação de dádivas.

Heleno Cláudio FRAGOSO chancelaria tal opinião, adicionando que o delito de corrupção passiva estaria “na perspectiva de um ato de ofício, que à acusação cabe apontar na denúncia e demonstrar no curso do

processo”428 e que “é próprio da corrupção que a vantagem seja solicitada,

recebida ou aceita em troca de um ato de ofício.”429

Já como terceiro argumento, o Ministro Relator utilizou em suas razões de decidir o parecer exarado por Julio Fabbrini Mirabete e devidamente juntado aos autos.

Dada a pontualidade com que o tema é debatido, é o caso de se trazer alguns trechos do mencionado parecer elaborado por Julio Fabbrini Mirabete:

“A falta de menção expressa ao ´ato de ofício´ no caput do artigo 317, do Código Penal, que a ele só se refere nos parágrafos 1º e 2º, não exclui a imprescindibilidade da relação entre a conduta do agente e o ato funcional. (...)

O objetivo do legislador, ao elaborar tipos diversos no art. 317, foi o de diferenciar condutas diversas mais ou menos graves, com sanções penais proporcionais à relevância penal de cada fato. Assim estabeleceu, no parágrafo 1º, um tipo em que a sanção penal é a mais severa porque o funcionário retarda ou deixa de praticar qualquer ato de ofício ou o pratica infringindo dever funcional. (...) O dano causado pelo agente é mais relevante penalmente pois ou o fato que deveria ser praticado não o foi, ou foi retardado, ou foi praticado em desacordo com as determinações legais. Também previu a lei uma figura menos grave, no parágrafo 2º, em que o agente retarda ou deixa de praticar ato de ofício, com infração do dever funcional, não motivado por vantagem indevida, mas simplesmente por atender a pedido de extraneus. Trata-se, nesse caso, como é pacífico, de corrupção passiva privilegiada (...).

426 HUNGRIA, Nelson. Comentários ..., p. 365.

427 Trecho do voto do Ministro Ilmar Galvão a respeito do crime de corrupção passiva. p.

2195 do acordão da Ação Penal n. 307 (STF). Disponível em

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=324295, acesso em 30 de junho de 2015, às 18h10min.

428 FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições ..., p. 438. 429 FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições ..., p. 438.

No caput do dispositivo a lei estabelece a figura básica, fundamental, da corrupção passiva, menos relevante que a forma qualificada e mais grave do que a forma privilegiada.

Ora, afronta a lógica que a lei preveja no fato mais grave e no fato menos grave a necessidade de relação da conduta com um ato de ofício e dispense o mesmo quando trata da espécie intermediária, ou seja, da corrupção passiva simples, ou, em outros termos, que seja ele indispensável no crime qualificado e no ilícito privilegiado e não no tipo básico. É sabido que as formas qualificadas e privilegiadas de um delito devem ser interpretadas em função da forma simples do ilícito.”430

Há outro trecho do citado parecerista que merece igual destaque. Veja-se:

“Explica-se a divergência do tipo penal. Inovando no assunto, a lei pátria faz referência, como sujeito ativo do crime, àquele que está fora de suas funções ou ainda não as assumiu. O legislador nacional, ao incluir tal agente, fez menção expressa à conduta praticada em ´razão´ da função pública, entendendo desnecessário que se fizesse referência, com redundância, ao ´ato de ofício´. Na lei italiana a referência ao ato de ofício era de rigor já que a figura penal da corrupção passiva naquela legislação penal não contempla como sujeito ativo o intraneus que está fora da função ou ainda não a está exercendo. Já na lei brasileira, a expressão ´ato de ofício´ era desnecessária diante da redação do dispositivo no que se refere ao servidor que não se encontrava no exercício de suas funções.”431

Deste parecer, utilizado em larga escala para fundamentar o voto vencedor, tem-se: a) em sendo a corrupção passiva prevista no artigo 317, caput, a figura básica do tipo, não existiria razão lógica para que a figura privilegiada (artigo 317, §2º, do Código Penal) ou ainda a figura qualificada (artigo 317, §1º, do Código Penal) fizessem menção ao termo ato de ofício e a figura básica ser órfã de tal elemento descritivo tácito; b) o fato de a descrição típica do artigo 317, caput, do Código Penal, não conter a expressão ato de ofício se deve ao fato de que seria mesmo desnecessária, porquanto o tipo menciona a possibilidade de o fato poder transcorrer no exercício da função ou em razão dela, evitando-se assim a menção <<ato de ofício>> para não incorrer em redundância.

Note-se que se está a identificar o argumento jurisprudencial e doutrinário capaz de fundamentar a transposição do termo ato de ofício do tipo penal de corrupção ativa para a corrupção passiva, quando não de uma leitura implícita do termo <<ato de ofício>> em um tipo penal que não o prevê de maneira literal.

430 Ação Penal 307 (STF) – p. 2196 a 2198. 431 Ação Penal n. 307 (STF) – p. 2200 a 2201.

Parte da doutrina nacional navega nas idênticas águas do entendimento do Supremo Tribunal Federal, muitas vezes até por argumentos diversos.

Paulo José da COSTA JUNIOR e Antonio PAGLIARO comentam ser “indispensável, porém, que a vantagem venha a ser solicitada, recebida ou aceita em troca de um ato funcional. Nesse sentido, o agente mercadeja

com a função de que dispõe.”432 O argumento aqui transparece ser a própria

natureza do tipo de corrupção, ou melhor, o fundamento de punição da conduta da corruptiva seria o mercadejar com a função pública, desde que viesse consubstanciada em um ato definido como ato de ofício.

Da mesma forma Rui STOCO e Tatiana STOCO também assinalam que “a ação deve necessariamente relacionar-se com o exercício da função pública que o agente exerce ou virá a exercer – se ainda não a tiver assumido –, pois é próprio da corrupção que a vantagem seja solicitada,

recebida ou aceita em troca de um ato de ofício.”433 Extrai-se aqui idêntica

conclusão à de COSTA JUNIOR e PAGLIARO, pois a corrupção teria como razão de ser, do ponto de vista típico-penal, a troca de vantagem indevida por um ato de ofício.

O próprio Julio Fabbrini MIRABETE434, acima citado, se refere à exigência do ato de ofício (ratione oficii), ou seja, um ato que deva estar dentro das competências do funcionário e de suas específicas atribuições funcionais, porque somente assim é que seria possível se deparar com dano efetivo ou potencial ao regular funcionamento da administração pública. Justifica, portanto, a exigência a partir do prisma do bem jurídico tutelado, o que não deixa de ser um argumento bastante convincente, mas que depende da concordância acerca de qual é o bem jurídico tutelado pelo Direito penal nos tipos penais de corrupção ativa e passiva.

Vale transcrever ainda opinião adicional de MIRABETE a respeito do tema:

432 PAGLIARO, Antonio; COSTA JR., Paulo José da. Dos crimes ..., p. 103. Idêntica

afirmação se encontra no livro de COSTA JR., Paulo José da. Curso de Direito Penal. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 814.

433 STOCO, Rui; STOCO, Tatiane de O. Dos crimes ..., p. 1468.

434 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. Volume III. 28ª ed. São Paulo: Atlas,

“Visa-se preservar a Administração Pública não num sentido genérico, por estar o agente apto a exercer uma função pública, mas porque trafica, mercadeja, vende, especula, um determinado ato de ofício. Só nessa hipótese é que se pode dizer há uma lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico, ou seja, a regularidade da Administração Pública no que tange aos atos funcionais de seus agentes. Não há ofensa ao bem jurídico tutelado no art. 317 do CP quando o comportamento do agente deriva apenas de exercer uma função pública, não se relacionando com qualquer ato de ofício.”435

O Supremo Tribunal Federal ao julgar a Ação Penal 470 acabou por referendar o entendimento já aplicado. Isso pode se extrair do voto do Ministro Celso de Mello ao declarar que “para a integral realização da estrutura típica constante do art. 317, caput, do Código Penal, é de rigor, ante a indispensabilidade que assume esse pressuposto essencial do preceito primário incriminador consubstanciado na norma penal referida, a existência de uma relação da conduta do agente – que solicita, ou que recebe, ou que aceita a promessa de vantagem indevida – com a prática, que até pode não

ocorrer, de um ato determinado de seu ofício.”436

QUANDT bem relata em escrito aqui já citado que a votação foi conturbada em seus conceitos e definições, mas conclui “que todos os ministros mantiveram-se na mesma posição intermediária de exigir a relação entre a propina e um ato de ofício, mas dispensar a efetiva realização desse

ato.”437

Este mesmo autor acredita na necessidade, por meio de critérios lógicos, de ser mantida alguma relação de vinculação da vantagem indevida a algum ato de ofício. Isso porque parte da noção de que o pagamento, pelo particular, da vantagem indevida solicitada pelo funcionário público, torna aquele partícipe do delito de corrupção passiva, apenas não sendo punido a

435 MIRABETE, Julio Fabbrini. Dos sujeitos ativos nos delitos de corrupção. In: Revista

Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 04, 1993. p. 97.

436 Ação Penal n. 470/MG (STF) – fl. 3681.

437 QUANDT, Gustavo de Oliveira. Algumas ..., p. 203. Conclusão diversa, com a qual não

se concorda, é a que chega SMANIO ao afirmar que o STF teria reafirmado alguns posicionamentos, dentre os quais o de que o “o crime de corrupção passiva não exige para sua caracterização que o ato de ofício a ser praticado pelo funcionário público seja desde logo apontado e determinado, bastando que a vantagem indevida seja solicitada, recebida ou havendo aceitação da promessa, em razão da função exercida pelo agente.” SMANIO, Gianpaolo Poggio. Análise da decisão da Apn 470/MG pelo STF referente aos crimes contra a administração pública – corrupção ativa e passiva – elementos do tipo penal. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 933, julho de 2013, p. 205. Na mesma linha de SMANIO está BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. O ato de ofício como elemento para caracterizar o crime de corrupção. In: Jornal Valor Econômico, 30.04.2013, acesso em 10 de agosto de 2013, às 15h42min.

este título em razão de existir um tipo penal próprio (artigo 333 do Código Penal).438 Eis a conclusão:

“Mas se isso for correto, então a referência a ato de ofício no art. 333 do CP se torna inócua nos casos de corrupção bilateral, pois ela não aparece expressa no art. 317 do CP. Em outras palavras: por mais que o Código Penal exija, na corrupção ativa (art. 333 do CP), a relação entre a vantagem indevida e algum ato de ofício, o particular que sucumbisse à solicitação feita pelo funcionário público em razão de sua função, mas sem qualquer referência, implícita ou explícita, a algum ato de ofício, acabaria incorrendo em participação no crime de corrupção passiva, sofrendo as mesmas penas. Assim, julgamos que a tendência do STF de identificar os requisitos típicos dos arts. 317 e 333 do CP é correta, e a única forma de fazê-lo é acrescentar ao art. 317 do CP as exigências adicionais do art. 333 do CP, pois o caminho contrário – supressão das exigências abundantes do art. 333 do CP – obviamente violaria o princípio da legalidade.”439