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A autonomia do jornalista

No documento Jornalismo e Mercado (páginas 75-79)

De facto, o que distingue os jornalistas de todos os produtores de informação é o método que o jornalista utiliza na recolha e distribuição dessa informação; é essa capacidade de olhar para a realidade selecionando-a, transformando factos em notícias, a que se atribui o estatuto de acontecimento. A distin- ção reside no método, mas também na forma como ele se aplica, no quadro de valores e compromissos que o jornalista associa ao aparentemente simples processo de recolha e transmissão de notícias. Ou, como refere Josep Ma- ria Casasús i Guri, a marca distintiva do jornalista, relativamente às restantes profissões na área da comunicação, reside naquela que é a sua missão princi- pal: “tratar da dimensão ética do fenómeno comunicativo” (apud Fernández, 1996: 44 e 45).

Bill Kovach e Tom Rosenstiel classificam o jornalismo como “um ato de carácter”, onde a ética, a autoridade, a honestidade e a capacidade crítica do jornalista (2001: 188 e 189), e da organização para a qual o jornalista trabalha, promovem essa marca distintiva que assinalávamos.

A ética e a moral, a responsabilidade individual e social do jornalista, o espírito de missão, integram juntos esse lado mais invisível, porque interior, da ação do jornalista, mas sobrepõem-se, ocupando claramente um patamar superior ao domínio das técnicas editoriais. A interpretação que Carol Marin, jornalista da televisão de Chicago, faz desse patamar superior é ambiciosa: “O jornalista é alguém que acredita em algo e pelo qual estaria disposto a demitir-se” (apud idem, ibidem: 190).

A consciência do jornalista é, pois, um valor interior que lhe serve de es- cudo, estando legalmente consagrado na figura jurídica da cláusula de consci- ência. Este princípio legal e outros, como as leis anti concentração, o estatuto profissional, a lei de imprensa e algumas normas dos diplomas que regulam a comunicação social conferem ao campo jornalístico uma certa autonomia que, em teoria, o protege quer dos “atentados à sua liberdade por parte do poder

político, como de uma subordinação sem limites a patrões todo-poderosos” (Neveu, 2001: 49 e 50).

A concentração, como detalharemos à frente, posiciona-se como um dos elementos que mais condicionam a liberdade e a autonomia do jornalista; força-o a acomodar-se à lógica do grupo onde trabalha, mesmo quando o jor- nalista entra em choque com essa lógica. A concentração restringe a mobili- dade e, como consequência, novas possibilidades de emprego.

De facto, as influências do campo económico vieram, claramente, fra- gilizar esse escudo protetor do jornalista. E essas influências começam por condicionar e moldar a ação das empresas e, por pressão destas, a atividade do jornalista.

Mas, acima das leis, acima das influências dos campos político e econó- mico, há um indivíduo disposto a exercer uma profissão singular6, compro- metido com o quadro de valores que a enformam.

Como reconhecem Bill Kovach e Tom Rosenstiel, “a consciência não é algo que deva ser aliviado” (2001: 191). Por isso, Neveu entende que a auto- nomia do jornalista deve ser preservada. O académico francês constata, aliás, que ao mesmo tempo que a dimensão económica contribui para alienar o exer- cício do jornalismo, tornando a aplicação dos princípios éticos mais difusa, também parece existir uma “nova sensibilidade para a deontologia” (2001: 132) por parte dos cidadãos, que começam a pedir contas diretas aos jornalis- tas pela forma como exercem o seu trabalho, mas também pela existência de um esforço de familiarização dos contornos desse trabalho junto do público (media literacia), promovido pela escola e pelos próprios media. Esse esforço de formação contribui para tornar “mais compreensíveis as condições diárias do trabalho jornalístico”, permitindo que se ultrapassem as lógicas simplistas da acusação individual (idem, ibidem).

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Edite Soeiro, jornalista falecida em 2009, que chegou a ser a mais velha jornalista em atividade em Portugal, caracterizava desta forma essa disposição para exercer a atividade sin- gular: “Nunca me arrependi (...) o jornalismo tem tudo para ser uma profissão digna, tudo quanto tu quiseres. Eu gosto mesmo é de ser jornalista” (Gomes, 2011a: 279).

Bob Woodward7, um jornalista que integra o pequeno grupo daqueles cujo estatuto lhes permite romper os grilhões impostos pela lógica do mercado, assume que, “muitas vezes, o melhor jornalismo é feito quando desafiamos a gestão” (apud Kovach e Rosenstiel, 2001: 191).

Atualmente, um número crescente de jornalistas está condicionado pela precariedade, afirmada pela ação de superiores hierárquicos que preferem li- derar um grupo de trabalho onde todos sejam desenhados à sua imagem e semelhança. Não deixa de ser, porém, verdadeiro o princípio de que há, em cada jornalista, uma fronteira mental que não pode ser ultrapassada. A ética individual, a formação moral e cívica estabelecem e definem essas linhas in- transponíveis. A história está carregada de exemplos de jornalistas que se deixaram guiar pelas linhas da própria consciência moral e da ética, investi- gando temas habitualmente distantes das agendas, mas de inegável interesse público, a começar pelo próprio Bob Woodward.

Homer Bigart, um repórter americano que profissionalmente viveu a guer- ra do Vietnam, e que a desvendou, contribuindo para o seu questionamento, John Crewdson, um dos pilares do jornalismo de investigação nos Estados Unidos da América, pelos métodos de verificação da informação e recurso às mais diversas fontes para confirmar factos, David Burnham, que em 20 anos no The New York Times, a trabalhar na área das polícias, forçou a criação de uma comissão estatal que investigou os casos de corrupção denunciados nas reportagens do jornalista, ou Diana K. Sugg, especializada em assuntos de saúde, vencedora de um Pulitzer, cuja escrita apaixonada, e a extrema ligação aos entrevistados, lhe permitiu absorver as histórias nas entrelinhas das con- versas, são exemplos de jornalistas que, mesmo não sendo figuras que atingi- ram o estatuto de estrelas mediáticas, conseguiram colocar o interesse público acima dos interesses individuais8. Fizeram-no com um espírito de missão que deveria servir de referência às novas gerações.

Bill Kovach e Tom Rosenstiel destacam o jornalismo de autor, que con- segue tocar o público. Integram nesta classificação, os trabalhos dos diversos

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Jornalista norte-americano que, juntamente com Carl Bernstein e o jornal Washington Post, investigou, nos anos 70 do século passado, o escândalo Watergate, que haveria de con- duzir à demissão do Presidente norte-americano Richard Nixon. A investigação valeu-lhes o Prémio Pulitzer, em 1973.

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Os nomes aqui referidos são destaques de Bill Kovach e Tom Rosenstiel citados no livro Blur, 2010, nas páginas 26, 57,153,157.

profissionais que anteriormente citámos que rompem a muralha da elevada torrente informativa dos nossos dias, conquistando a atenção dos destinatá- rios, apenas pela qualidade do trabalho que produzem:

“A experiência demonstra-nos que os trabalhos dos melhores jornalis- tas refletem uma subtil assinatura. Esses trabalhos são produto de um método pessoal que eles usam para disciplinar a curiosidade, essa é a forma que encontram para irem ao fundo das questões (...) Cultivam um conhecimento cético (...) alcançam um nível mais elevado de ve- rificação, conseguindo produzir histórias com contexto” (2010: 152 e 153)9.

Brian McNair opta por recordar alguns dos que atingiram o estrelado e que ficaram, ou hão de ficar, na história das notícias:

“Wolfe, Thompson, Murrow, Cronkite, Paxman, Frost, Adie, Aman- pour tornaram-se nomes familiares no passado e no presente por se te- rem empenhado no tratamento de temas importantes, ou pelas reporta- gens, análises, perfis que assinaram e que o público reconhece como tendo sido certeiros e reveladores” (2010: 12).

Os nomes citados por Bill Kovach e Tom Rosenstiel, e as figuras que atingiram o estrelato, selecionadas por Brian McNair, partilham o perfil que Ryszcard Kapuscinski crê ser o que deve assentar a qualquer jornalista:

“Aceitar uma certa disposição para o sacrifício, colocar no trabalho um pouco da nossa individualidade, das nossas ambições e isso requer a nossa alma, a nossa dedicação, o nosso tempo (...) Qualquer jornalista tem de ser um bom homem, ou mulher, um bom ser humano. Os maus não podem ser bons jornalistas” (2002: 32-33, 38).

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Os autores definem o conhecimento cético como uma característica profissional que se concretiza em processo, ao longo do qual o jornalista deve dar resposta às seguintes questões: que conteúdo vou encontrar; a informação está completa; o que falta para estar; quais são as fontes e por que devo acreditar nelas; quais são as evidências e como as posso provar; haverá uma explicação ou um entendimento alternativos; terei eu aprendido o que preciso para trabalhar esta matéria (Kovach, Rosentiel, 2010: 32).

Kapuscinski acredita que a adoção dessa prática, de forma continuada, acabará por despertar no público reconhecimento e confiança nesses jornalis- tas.

Os nomes de jornalistas que aqui destacámos, a que poderíamos juntar profissionais do universo mais vasto da comunicação como Larry King ou Jon Stewart, que chegam a adquirir um estatuto mediático mais relevante do que o dos protagonistas que diariamente entrevistam,10 estão longe de retratar a realidade do mercado profissional.

No documento Jornalismo e Mercado (páginas 75-79)