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A queda do muro que separava o lado editorial do lado

No documento Jornalismo e Mercado (páginas 92-95)

O reconhecimento dos efeitos dos condicionalismos impostos pelo mercado, ampliados pela tecnologia, reduzem, drasticamente, a autonomia do jornalista, tornando legitima a interrogação: resistirão o jornalismo, e os jornalistas?

Nos anos 60 do século passado, Manuel Vázquez Montalbán assinalava que a capacidade de resistência do jornalista advém da rigidez do contrato que estabelece com o público:

“O jornalista é um profissional submetido a quase todas as servidões e a que só resta uma grandeza: lutar contra todos esses condicionalismos para recuperar, quotidianamente, a dignidade que lhe é outorgada pela constante busca de satisfazer as necessidades do público” (1963: 230).

Nelson Traquina reconhece, igualmente, que os jornalistas se tornaram servos de um mercado que lhes restringe a autonomia mas, como Montalbán, destaca a margem de manobra que está reservada aos jornalistas (“participan- tes ativos”) na definição e na construção das notícias e, como consequência, da própria realidade (2002: 14). Como vimos no primeiro capítulo, o grau de participação de cada membro da tribo está, todavia, muito longe de ser idêntico, porque a autonomia de cada um está muito ligada ao estatuto e ao laço/vinculo que mantém com a entidade patronal.

Ainda assim, Peter Anderson destaca, igualmente, a margem de manobra a cargo das empresas e dos jornalistas:

“Com os constrangimentos do mundo real, uma relativa independência face às influências negativas é o máximo que poderemos esperar. En- quanto as empresas de media informativos procurarem alcançar, com credibilidade, essa relativa liberdade poderão reclamar legitimidade” (2007: 46).

É no equilíbrio complexo, e por vezes frágil, entre a ética – promotora da missão de serviço público associada ao jornalismo – e a necessidade de financiar a ação jornalística promotora dessa nobre missão, que se avoluma a tensão: abrindo-se um espaço de dúvida, que, desde os primórdios, vai cerce- ando o jornalismo:

“Os jornalistas situam-se (...) na interseção entre o valor comercial e o valor cultural. Encontram-se numa posição ambígua de funcionários de uma indústria que procura o lucro económico e de funcionários da humanidade” (Garcia, 2009: 86).

Nenhuma definição de jornalismo conseguirá, como reconhece Barbie Ze- lizer, “abarcar tudo o que é preciso saber sobre jornalismo” (2004: 43), mas, porque corremos o risco de, nesse equilíbrio imperfeito entre a ética e a função comercial, vermos o jornalismo diluir-se no vasto campo da comunicação, há fronteiras que, desde logo, qualquer definição deve assumir. Como assinala Jorge Pedro Sousa, “embora o jornalismo seja comunicação, nem toda a co- municação é jornalismo” (2000, 2004: 3).

A clarificação dessas fronteiras não deve, contudo, impedir-nos de pro- mover a integração das duas dimensões conflituantes, mas fundamentais, no

jornalismo. De facto, a tensão entre a ética e o mercado é permanente e o jornalismo deve saber viver com ela. Erguer um muro entre ambas as compo- nentes significa, desde logo, assumirmos a impossibilidade de ultrapassar os constrangimentos impostos pelo mercado. Philip Meyer defende o conheci- mento profundo, por parte dos jornalistas, dessa componente económica que alimenta o jornalismo:

“Muitas vezes os editores acreditam que a ignorância, relativamente a essa área do negócio, os protege (...) estou convencido que esse muro de separação apenas limita o poder dos editores. O sucesso dos jor- nais da época de ouro (meados do século XX, após a Segunda Guerra Mundial) está associado ao facto dos decisores editoriais terem de ul- trapassar os conflitos impostos pela necessidade de gerar receitas, tendo assim controlo direto sobre ambos os lados do muro. Nos dias de hoje, os decisores perderam esse grau de autonomia” (2004: 206 e 207).

Mesmo quando o poder efetivo dos jornais, na denominada época de ouro, se prestava a utilizações menos nobres, como a exploração comercial das his- tórias de interesse humano, é um facto histórico comprovado que, nessa época, os responsáveis editoriais tinham também o poder de controlar a estrutura fi- nanceira das publicações, para a colocarem ao serviço do jornalismo.

Ainda que Portugal fosse controlado por uma ditadura, a imprensa da época revela algumas semelhanças com esta descrição de Meyer. Baptista Bastos, jornalista desde 1952, recorda esses tempos com alguma nostalgia. Apesar do fosso intelectual e ideológico que o separava de alguns empresá- rios de jornalismo, a “relação estreita” entre “patrão e jornalista” não impedia que, cada um, expressasse o seu ponto de vista:

“Podia haver contradições, mas essas dinastias de família cultivavam uma dignidade de porte e um apego à imagem do seu jornal, que as levava a arriscar a fortuna pessoal” (Rodrigues, 2011: 221 e 222).

Com o controlo das receitas na dependência direta das administrações, ou das direções comerciais, dos meios de comunicação social, o jornalismo perde a marca distintiva e a matéria editorial fica sujeita a compromissos financeiros. Paul Starr considera que a imprensa tem sido, apesar das imperfeições que possam ser-lhe apontadas, “uma instituição charneira na preservação dos va- lores profissionais do jornalismo”. O professor americano conclui, por isso,

que “uma imprensa financeiramente comprometida torna-se eticamente com- prometida” (2009: 2 e 3).

A separação dos conteúdos comerciais e jornalísticos no campo das no- tícias é salvaguarda do jornalismo, mas este desiderato não será alcançado esboçando um mero quadro de intenções.

Philip Meyer conclui que só a consciencialização do papel dessa dimensão económica no jornalismo poderá resgatar o jornalismo do lado mais perverso do mercado: “Os que queiram preservar as melhores tradições do jornalismo, devem assumir que o jornalismo é um negócio” (2004: 205).

A associação do jornalismo à ideia de negócio presta-se, contudo, a um conjunto de imprecisões que convém identificar. Se, por um lado, o controlo da máquina financeira das empresas pode permitir aos responsáveis editoriais ensaiarem um esforço de limitação do controlo que essa máquina terá tendên- cia a impor, por outro, o poder desses responsáveis editoriais, como assinalá- mos, dilui-se na necessidade de se gerarem receitas.

A quebra de fronteiras entre as dimensões comercial e jornalística, a que assistimos, traduz-se na crescente incorporação dos objetivos económicos e financeiros das empresas no trabalho editorial das chefias de redação, os que, de facto, tomam decisões: “As pessoas com poder e autoridade reais são os responsáveis executivos, são eles que definem as prioridades e decidem que direção tomar” (Anderson, 2004: 22 e 23).

A caracterização que iremos fazer da interseção do jornalismo com o mer- cado traduzirá um cenário de absoluta dependência do jornalismo, mas, uma vez mais, a história não acaba aqui.

2.2

Jornalismo e mercado. Os anos 80 do século pas-

No documento Jornalismo e Mercado (páginas 92-95)