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Jornalismo e democracia

No documento Jornalismo e Mercado (páginas 70-74)

Habermas estabelece uma interligação entre Esfera Pública e democracia, atri- buindo aos meios de comunicação um papel determinante na concretização dessa associação: “Os jornais, os periódicos, a rádio e a televisão são os media da Esfera Pública”. Os media permitem a um público alargado “publicitar”3 livremente as suas opiniões. Esse papel dos media adquire especial relevo numa Esfera Pública política “onde as discussões públicas versam assuntos relacionados com a ação do Estado”. A publicidade, promovida pelos meios de comunicação social, permite ao público formar uma opinião pública com poderes de fiscalização e “controlo democrático da ação do Estado” (2009: 45 e 46). Brian McNair e James Carey colocam a questão nos mesmos termos, na relação entre o jornalismo, a democracia e o público:

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in JJ, Abril/Junho, 2000.

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O conceito de publicidade, neste contexto, surge associado à razão: “assume o sentido de publicitação, ato de tornar público (opiniões, conhecimentos, experiências, as próprias pessoas, etc.)” (Esteves, 2003: 35).

“As ações do governo e do Estado, e os esforços dos partidos (...) para exercerem o poder político devem ser sustentados e legitimados pelo escrutínio crítico e pelo debate promovido pelos media” (McNair, 2004: 1).

“As origens do jornalismo são as mesmas da democracia – sem jor- nalismo não existe democracia. Mas é igualmente verdade que sem democracia também não existe jornalismo. O destino do jornalismo, do Estado-Nação, e da Esfera Pública está intimamente ligado e não pode, facilmente, ser separado” (Carey, 2007: 13).

Carey considera, aliás, que essa simbiose entre o jornalismo e a democra- cia não estabelece quaisquer margens para cedência por parte dos jornalistas:

“Quando em causa está a defesa da democracia e das instituições de- mocráticas, os jornalistas não podem ser indiferentes, devem ser parti- dários e evitar a objetividade (...) porque se o edifício da democracia desabar, os jornalistas ficam reduzidos ao papel de propagandistas ou entertainers. A paixão pela democracia é o laço que os jornalistas de- vem ter com o público” (2007: 13).

Sem colocarem em causa o compromisso com a objetividade, Bill Kovach e Tom Rosenstiel aproximam-se, todavia, da visão de Carey:

“Chega a ser difícil separar o conceito de jornalismo do conceito de criação da comunidade e, posteriormente, de democracia (...) O jorna- lismo é tão indispensável à prossecução dessa finalidade, que as soci- edades que pretendam suprimir a liberdade têm, primeiro, de suprimir a imprensa (...) O jornalismo contribuiu com algo de único para uma cultura – informação independente, fiável, rigorosa e abrangente, ne- cessária para a liberdade dos cidadãos. Se o jornalismo é solicitado a fornecer algo que desrespeite estas qualidades, estamos perante uma perversão da cultura democrática”. (2001: 8, 16)4.

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A troca de informações, motivada pelo instinto (fome) de conhecimento, promove a for- mação de uma comunidade de interesses, uma comunidade de partilha. Robert Boure e Alain Lefebvre definem a comunidade como o “lugar específico que se distingue dos outros lugares pelas singularidades ligadas à sua origem, à sua construção, mas também à sua localização no

Bonnie Anderson recorda que essa interdependência entre o jornalismo e a democracia está legalmente legitimada na Primeira Emenda da Constitui- ção americana5, que “estabelece especial proteção aos jornalistas”, no sentido em que afirma a imprensa livre como “o cerne de uma verdadeira sociedade democrática” (2004: XI, XVII).

A associação entre jornalismo e democracia é transversal a este capítulo porque o fortalecimento das democracias também depende da forma como os mediaatuam, da liberdade que conquistam e promovem, das discussões que alimentam.

Michael Schudson subscreve a importância da sociedade em geral, e dos jornalistas, em particular, assumirem como linha condutora a interdependên- cia entre jornalismo e democracia, todavia, o autor limita a dimensão da res- ponsabilidade dos meios de comunicação social e do jornalismo:

“É frequente a retórica dos jornalistas e académicos ao falarem de jorna- lismo pressupor que os meios de comunicação social informam as pes- soas e estas depois decidem (...) As democracias contemporâneas são democracias representativas, e as decisões que os eleitores tomam são decisões sobre a eleição de representantes (...) A meu ver, os meios de comunicação social americanos comportam-se com demasiada frequên- cia como se vivêssemos numa verdadeira democracia maioritária, onde os desejos dos cidadãos são, ou devem ser, traduzidos diretamente em políticas públicas” (2008: 40).

Este apontamento de Schudson demonstra que a democracia representa- tiva, e a vastidão de entidades e organismos que dão forma ao Estado democrá- tico, jamais permitiria que o jornalismo monitorizasse sozinho a democracia, protegendo-a, qual herói dos tempos modernos, das ameaças que, potencial- mente, a limitam. O jornalismo é um agente dessa fiscalização, mas não é o único. Essa fiscalização deve ser exercida, desde logo, por uma cidadania

espaço”. Este lugar, como assinalam os autores, não é um “gueto”, pelo contrário, “é aberto so- bre os outros lugares e sobre aquilo que muitos consideram ser o espaço-mundo” (2000: 270). É um lugar de interação, de ação comunicativa, entre os elementos que o integram e entre eles e todos os outros, de todos os lugares.

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“A imprensa livre é uma instituição independente... a imprensa deve servir os governados e não os governantes... O jornalismo não existe num vácuo; é um ponto-chave no exercício de fiscalização e equilíbrios de uma democracia saudável” (Anderson, 2004: XI, XVII).

ativa, que cabe ao jornalismo potenciar, mas que pode, cada vez mais, ser exer- cida sem essa intermediação. Schudson defende, por isso, que seja claramente definido o papel do jornalismo na democracia, integrando-o “numa ecologia informativa mais vasta” (idem, ibidem: 42), que associe outros organismos e entidades.

Colocar sobre os ombros de um jornalismo, limitado pelo mercado, a ta- refa de monitorizar sozinho a democracia constituiria uma ameaça à própria democracia. Como assinala Dewey, a democracia é um processo em perma- nente construção, não é algo que nos seja oferecido pronto a servir (1936, apudShenton 2009: 5); como tal precisa do alimento da cidadania (participa- ção cívica dos cidadãos) para não colapsar.

De facto, o esforço de procurar nos media a chave da consolidação da democracia esbarra com os constrangimentos que hoje influenciam o jorna- lismo. Kovach, Rosenstiel e Carey associam o reforço do peso desses cons- trangimentos à quebra do contrato entre o jornalista e a defesa da democracia. A democracia acaba, assim, por servir de capa à progressão de interesses que atuam em nome dela e do jornalismo. Carey alerta-nos para a existência de sociedades onde alguns se “autointitulam repórteres, mas cujo papel consiste, exclusivamente, em serem veículos de propaganda ao serviço de interesses oficiais” (2007: 13). Kovach e Rosenstiel constatam que as notícias se estão a transformar “em entretenimento e o entretenimento” assume “um carácter de notícia” (2001: 7).

Neste contexto, onde a realidade social dos media se apresenta transfigu- rada, principalmente, pelas influências da lógica do mercado, e onde abundam as teses que interpretam criticamente os exemplos que resultam dessa conta- minação, McNair descobre, nessa deriva do jornalismo, elementos que, pelo menos, questionam a dimensão da crítica:

“Rejeito a assunção de que popular significa irracional e tabloidização lixo; rejeito, igualmente, que o entretenimento não possa significar in- formação ou que as notícias sérias não possam, ao mesmo tempo, ter interesse humano (...) Uma audiência mais esclarecida, com melhor formação, semiologicamente mais informada (...) do que em épocas anteriores, é uma audiência ativa” (idem, ibidem: 3).

Como tal, Brian McNair considera a audiência ativa o ponto de arranque de uma reinterpretação mais positiva do papel dos media. Retomaremos essa

linha de argumentação no próximo capítulo; porque uma audiência que parti- cipa pode influenciar o trajeto dos media, do jornalismo e, como consequência direta, da democracia. Por isso, a mera descrição da realidade, com a ênfase colocada na crise que atravessa o jornalismo, limita-nos em termos analíti- cos. O jornalismo resistirá reconfigurado, mais comprometido com o público. Ainda estaremos longe do fim da história. O mercado, de facto, aprisionou o jornalismo mas, como sustentam Jane Chapman e Nick Nuttall, “o casamento da democracia com o jornalismo é mais antigo do que aquele que o jornalismo estabeleceu com o mercado” (2011: 15), seria, pois, precipitado declarar o fim de tão longa união.

No documento Jornalismo e Mercado (páginas 70-74)