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O quadro de valores do jornalismo

No documento Jornalismo e Mercado (páginas 79-82)

O jornalismo, enquanto instrumento promotor da Esfera Pública, no sentido em que lhe está atribuída a missão de dotar os públicos da informação que lhes permita participar no processo de discussão pública, reage às dinâmicas dessa esfera de mediação entre o Estado e a Sociedade, reage, enfim, às dinâmicas desse lugar simbólico onde o público se forma.

O jornalismo cumpre essa sua finalidade através dos meios de comunica- ção social.

As influências que o jornalismo, e os meios de comunicação social, rece- bem da Esfera Pública definem-lhes a identidade. Esse lugar ambíguo que o jornalismo ocupa na Esfera Pública é fruto, como referia Patrick Champagne, da intersecção entre vários campos. Ora esse posicionamento molda a de- riva do jornalismo, mas também, a sua capacidade de resistência ao quadro de influências negativas que o aprisiona.

Peter Anderson e Geoff Ward argumentam que as interseções que mol- dam o campo jornalístico enfatizam a permanente crise de identidade que o caracteriza:

“Nos últimos 20 anos, mudanças socioeconómicas e socioculturais, combinadas com o desenvolvimento tecnológico, impuseram novas al- terações na profissão e forçaram os que a praticam a reexaminarem o

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Larry King apresentou um programa diário de entrevistas na CNN até Dezembro de 2010, mantendo, até 2012, uma colaboração pontual na cadeia de televisão norte-americana. Nesse ano transferiu o formato para a televisão digital, em três canais: Hora TV, Hulu e RT. Jon Stewart é o premiado apresentador do Daily Show, um programa de humor e crítica política e social, emitido no canal de cabo americano Comedy Central.

seu papel de jornalistas (...) As funções tradicionais do jornalismo, e a relação deste com a democracia, sofreram uma redefinição - assumindo um trajeto que frequentemente afasta o jornalismo do interesse do pú- blico” (2007:17).

James Carey assume, por isso, a necessidade de fazer regressar o jorna- lismo a esse trilho desenhado pelo interesse do público, resgatando-o do uni- verso amplo da comunicação11 onde se instalou (apud Kovach e Rosenstiel, 2001: 8). Subsiste, porém, um quadro de valores, uma espécie de escudo pro- tetor do jornalismo, que vai resistindo a todas as influências. A filosofia do jornalismo, a constância admirável de que nos falavam Bill Kovach e Tom Rosenstiel no capítulo um, é inquestionável e emerge da missão que lhe está destinada na sociedade; a concretização dessa missão será possível enquanto o quadro de valores do jornalismo permanecer inviolável.

Charlie Beckett acredita, igualmente, nessa constância dos valores do jor- nalismo que resiste aos desvios, argumentando que a necessidade de se ques- tionar o jornalismo no século XXI não advém do seu quadro de valores, mas

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Ao longo desta investigação, diversos autores, Carey, Medsger, Neveau, Ramonet, Rebelo, entre outros, atribuem à expressão universo da comunicação e ao próprio conceito de comuni- cação um sentido negativo, associando-o ao entretenimento, à persuasão, assumindo-o, neste contexto, fator de contaminação da ação jornalística. A este propósito, James Carey afirma que “mergulhar o jornalismo na comunicação causou enorme estrago ao ofício e, mais recen- temente, à democracia” (2000: 21). Este autor defende, todavia, o que poderíamos classificar como uma dimensão comunicacional do jornalismo, no sentido em que reclama uma maior aproximação do jornalismo ao público que serve, assumindo que o jornalismo deve promover um diálogo com o público. Voltaremos a este tópico no capítulo três. Já Ignacio Ramonet sintetiza a posição dos restantes quatro autores citados, considerando que o mundo da comuni- cação “consiste na difusão de mensagens complacentes e laudatórias em função das empresas que as transmitem” (2011: 36). Esteves, Reese, Rodrigues, Zelizer, atribuem à comunicação um outro papel. Adriano Duarte Rodrigues considera que a comunicação consiste na partilha de saberes comuns através da qual se estabelecem laços entre os diferentes membros de uma comunidade ou sociedade (1999: 35). João Pissarra Esteves elege-a motor da reconstrução do espaço púbico. Stephen Reese e Barbie Zelizer consideram a comunicação a “casa natural” do jornalismo na academia. Na nossa investigação, como veremos, atribuímos à comunicação idêntica missão, de acolhimento do jornalismo, pelo que, a nossa interpretação do conceito aproxima-se da dos quatro últimos autores citados. A forma como os diferentes autores inter- pretam o conceito de comunicação está muito relacionada com o seu lugar de presença (Zelizer, 2004: 29). Barbie Zelizer assinala, a este propósito, que os jornalistas convivem mal com o rótulo de comunicadores, por assumirem que o conceito pressupõe que qualquer um pode ser jornalista (idem, ibidem: 28).

sim da “dificuldade que o jornalismo está a demonstrar em se adaptar às ne- cessidades dos novos tempos” (2008:41). Para que se concretize esse processo de adaptação, Beckett propõe a aplicação do conceito de Networked Journa- lism:“o contacto direto do jornalismo com o mundo que fica fora da redação; o jornalismo que ouve as pessoas e que lhes dá voz” (idem, ibidem: 43). O conceito será aprofundado e problematizado no próximo capítulo.

O quadro de valores que o molda define a função social do jornalismo na Esfera Pública.

Bill Kovach e Tom Rosenstiel apresentam-nos os 10 mandamentos do jor- nalismo, já aqui identificados, como o caminho que conduz o jornalismo ao cumprimento dessa sua finalidade de alimentar a necessidade de informação, que cada um de nós revela para viver, ser livre, e poder tomar decisões.

Seis anos antes, já Blumler e Gurevitch tinham identificado nos media, e no jornalismo, o quadro de funções que haveria de lhes permitir cumprir essa finalidade. Os autores destacavam a “vigilância” permanente do “ambiente sociopolítico”; a “definição dos assuntos centrais do dia” e do “caminho para a sua solução”; a responsabilidade de assumirem uma função didática capaz de “iluminar” os políticos na ação política, os porta-vozes de diferentes cau- sas e os grupos de interesse; a promoção do diálogo entre os públicos com opinião e a massa, anulando o fosso que os separa; a definição, e consequente aplicação, de mecanismos de controlo do poder das elites; a criação de formas que possibilitem a participação dos cidadãos no processo político e que pro- movam a sua aprendizagem da política; a capacidade de resistirem a todas as forças exteriores que queiram pôr em causa a sua independência; o respeito pela audiência, possibilitando-lhe um melhor conhecimento da política (1995: 97).

A correspondência entre as duas abordagens, apresentadas em períodos diferentes da história do jornalismo12, contribui para o reforço da conclusão que serve de mote a esta constatação – de que o quadro de valores do jorna-

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Blumler e Gurevitch definem o quadro em 1995, numa altura em que o jornalismo já começa a sentir os efeitos da transnacionalidade dos media e em que os canais televisivos de notícias 24 horas já estavam consolidados, mas ainda antes do advento da Internet. Os elemen- tos de Bill Kovach e Tom Rosenstiel, apresentados em 2001, já refletem os efeitos da Internet. Em 2007, os elementos são revistos pelos autores, mas nenhum deles é suprimido, apenas é acrescentado um décimo, que reflete os direitos e os deveres dos cidadãos num processo pro- dutivo de notícias, em que estes assumem um papel cada vez mais relevante.

lismo, que lhe permite cumprir a sua finalidade, sobrevive às gerações e às influências da sociedade, que vão moldando a forma do conceito e a aplicação prática do mesmo.

Peter Anderson propõe-nos um quadro de funções do jornalismo que man- tém, no essencial13, as duas anteriores classificações, mas que acrescenta um dado relativo ao papel do Estado na fiscalização da ação jornalística, com o propósito de proteger a democracia: “O Estado deve zelar, pela via da legis- lação ou de subsídios anónimos, para garantir que os media dão voz a uma diversidade de opiniões e ideologias” (2007: 40). Esta ação reguladora do Estado não significa, propriamente, a apologia de um protecionismo. Ander- son defende que deve ser o mercado dos media a tomar decisões, mas alerta para a necessidade de existir um serviço público de produção de notícias “im- parcial”, “de características semelhantes à BBC”, que funcione como modelo (idem, ibidem).

Paul Starr destaca, igualmente, a monitorização permanente do jorna- lismo, através de uma ação fiscalizadora responsável,14 ao exercício do po-

der e ao desempenho de todos os seus agentes. Starr considera essa a missão pública por excelência do jornalismo, por contribuir diretamente para o bom funcionamento da sociedade (2009: 9 e 10). A concretização desse objetivo do jornalismo, reconhece o Professor americano, pressupõe que as notícias continuem a ser distribuídas sem os custos associados a outros produtos, por- que só o livre acesso à informação permite ao jornalismo disseminar os efeitos positivos da sua ação. A tendência para uma informação de acesso livre sai reforçada com o advento da Internet. Das consequências dessa “liberdade” de acesso trataremos no próximo capítulo.

No documento Jornalismo e Mercado (páginas 79-82)