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Da manipulação política à manipulação financeira

No documento Jornalismo e Mercado (páginas 114-119)

2.2 Jornalismo e mercado Os anos 80 do século passado e a mu-

2.2.10 Da manipulação política à manipulação financeira

Carlos Camponez observa que a desregulação dos media em Portugal e no resto da Europa tem, na sua base, a tentativa de fuga do Estado do peso finan- ceiro, social e político que os meios públicos representavam:

“Não deixou de ser uma resposta a uma crítica do público e das forças do mercado à manipulação política e ideológica dos órgãos do poder sobre a informação, em particular os media radiofónicos e televisivos, à forma burocrática da sua gestão e a uma tentativa de aliviar o pesado passivo entretanto acumulado” (2009: 349).

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A NBC e a CBS disputavam o primeiro lugar, a ABC era o distante terceiro. Mas, em conjunto, os três canais chegavam a 70 por cento do universo televisivo, mais do que um quarto do total da população (Kovach, Rosenstiel, 2010: 19). Os anos 60-70 do século passado ficaram conhecidos como os anos da confiança nas notícias (“trust me era of news”) e, por esses tempos, as sondagens classificavam Walter Cronkite “o homem mais fiável da América” (idem, ibidem: 33).

No período subsequente, todavia, assistimos aos efeitos da substituição da manipulação política pela manipulação financeira. E os resultados, na quali- dade do jornalismo, estão à vista de todos.

O aumento da concorrência, com o aparecimento de novos players no mercado, ao invés de aumentar a competitividade, e, como consequência, a diversidade da oferta e a qualidade da mesma, contribuiu para a sua degra- dação. A rentabilidade, obsessivamente perseguida, dinamitou o espaço me- diático: as fusões, aquisições, alianças estratégicas entre grupos, restringiram o mercado global a um conjunto restrito de conglomerados. Criou-se uma falsa ideia de concorrência. As grandes cadeias de televisão e rádio internaci- onais, os principais títulos impressos, as grandes produtoras de cinema, publi- cidade, editoras de livros, música, espetáculo, em suma, os principais agentes do mercado da comunicação ficaram sob a alçada de menos de uma dezena de grupos globais de media (AOL–Time Warner, Vivendi Universal, Viacom- CBS, Disney-ABC, Bertelsamnn, Mediaset e Fininvest – ambos propriedade de Berlusconi, News Corp.).

As comunicações globalizaram-se, ficando na dependência direta de um conjunto restrito de agentes:

“No início dos anos 80, os diferentes segmentos do campo dos media – jornais, televisões, livros, filmes, música – tinham diferentes proprietá- rios. No final dos anos 80, um único proprietário já acumulava todos os meios” (Wolff, 2010: 176).

Em parte, este fenómeno ficou a dever-se às necessidades de financia- mento de grandes empresários de jornais como Rupert Murdoch. Alargar o império dos jornais era o “ponto decisivo” para o empresário. Para ter di- nheiro para comprar jornais, Murdoch começou a diversificar a área de ne- gócio, apostando em aquisições de rentabilidade garantida, geradoras de lu- cros que pudessem ser investidos nos jornais. A “compulsão pela compra de jornais transformou-se numa compulsão para comprar qualquer outro meio” (idem, ibidem).

Este afunilamento da concorrência tem, desde logo, uma consequência, cujos efeitos não poderão ser eficazmente mensuráveis: o controlo “do am- plo espectro de produção e distribuição de ideias, no mundo contemporâneo” (Dizard Jr., 2000, apud Camponez, 2009: 352). Ou como, no auge da forma- ção dos grandes conglomerados de media assinalavam Morley e Robbins, foi

iniciada “uma conversa unilateral em que o ocidente fala e o resto escuta”. A agenda informativa mundial é “maioritariamente fornecida por um pequeno número de agências noticiosas, todas anglo-saxónicas” (1995: 126, 222).

Nos períodos subsequentes viríamos a assistir à alteração deste enquadra- mento social, que foi abrindo brechas nesse espaço compacto. Numa primeira fase, a entrada, no palco central da produção informativa, de agentes basea- dos em territórios de exclusão, como a Televisão Al Jazeera, do Qatar33, por exemplo e, posteriormente, a explosão da circulação de informação, potenci- ada pelo digital, coloca na rede visões oriundas das mais diversas fontes; são, também, novos sinais de esperança. A muralha ocidental ainda não terá sido integralmente quebrada, mas o mundo partilha, cada vez mais, das diversas visões alternativas.

John B. Thompson, deixando de lado a avaliação do impacto das redes alternativas, realça que o desequilíbrio persiste, assinalando que o desenho das estratégias dos conglomerados de media é, de facto, global, mas a mai- oria desses megagrupos emerge dos Estados Unidos da América, da Europa Ocidental, da Austrália ou do Japão; os países do terceiro mundo quase não têm expressão. As consequências dessa ocidentalização da produção de con- teúdos traduzem-se na “formação de redes de comunicação privadas, através das quais circula toda a informação e restantes conteúdos do campo da comu- nicação” (2009: 139). Thompson alerta, todavia, para a emergência de novas geografias que, não sendo centro da produção cultural, começam a afirmar-se na vertente económica:

“No domínio económico assistimos a um profundo processo de reestru- turação global que diluiu a posição privilegiada que os Estados Unidos ocupavam em matéria de poder industrial. A economia global tornou-se crescentemente multipolar; cada vez mais a Europa (sobretudo a Ale- manha), o Japão, e as novas potências industriais do sudoeste da Ásia assumem um papel de relevo (...) Mesmo se o domínio cultural – em termos de forma e de conteúdo dos produtos da área dos media – per- manece americano, a base do domínio económico internacionalizou- se”(idem: 143-146).

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As emissões nos Estados Unidos da América foram inauguradas em agosto de 2013, o que demonstra bem o peso conquistado pela cadeia de televisão do Qatar.

Esse capital sem pátria acaba assim por ter mais peso no monopólio da produção e distribuição das ideias do que o conteúdo das próprias ideias, porque a dimensão económica assume o poder de filtrar esses conteúdos, impondo-lhes a regência da batuta do mercado.

Manuel Castells considera que a lógica dessa globalização económica transborda para todas as atividades de negócio, desde o mundo da finança, à inovação tecnológica, à produção de componentes, aos media. A lógica que orienta todas essas áreas “trabalha em tempo real numa escala planetária”. O académico espanhol realça que essa globalização económica consegue alastrar influência a todo o planeta, mas não é verdadeiramente planetária, porque não inclui todo o planeta. De facto, exclui a maior parte da população do globo. Os que não colhem os louros desse capitalismo global integram aquilo que Castells classifica como “um quarto mundo de exclusão” que inclui “quase toda a África, a Ásia rural, a América Latina, mas também o Bronx” e outros bairros marginais de grandes cidades (1996, 2009: 154 e 155)34.

Em paralelo a esse movimento de ocidentalização da produção da mensa- gem, porporcionada pela transnacionalidade dos media, propriedade de gran- des conglomerados, fomos assistindo ao desinvestimento no papel social dos media. A transnacionalidade de raiz tecnológica, mas promovida pela eco- nomia, poderia ter estado na base da formação, e consolidação, de uma es- fera pública global, promotora da discussão de temas políticos internacionais, com reflexos diretos nos Estados-Nação. Se algo mais houvesse, plenamente consolidado, do que uma globalização económica, uma esfera pública global seria o patamar superior a que poderíamos aspirar. Todavia, “o supremo obje- tivo” da transnacionalização dos media consistiu, tão só, no auxilio que estes

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A terceira edição do relatório do European Publishers Council, 2014-2015, assinala o reforço da penetração da Internet em territórios, até então, considerados excluídos. De acordo com os dados do relatório, o ano de 2011 marca o início sustentado desse reforço. Algumas regiões da Ásia, de África e da América Latina representam novas geografias da rede onde o aumento, sobretudo na internet móvel, ultrapassa os 75%. Os índices globais de penetração permanecem, todavia, significativamente assimétricos. Enquanto os Emiratos Arábes Unidos, a Holanda, o Canadá, a Suécia, o Reino Unido, os Estados Unidos da América, a Austrália, a Coreia do Sul, França, Singapura, Alemanha e Taiwan apresentam índices de penetração superiores a 80 por cento da população, na Índia (inferior a 20 por cento), Tailândia, Indonésia, Turquia, México, Vietnam e China a penetração ainda é inferior a 50 por cento (EPC, 2014: 18, 81 e 82).

puderam prestar ao “desmantelamento das barreiras ao comércio” (Morley e Robbins, 1995: 11).

Neste contexto, o telespectador é, antes de mais, um consumidor num mercado global. A televisão sem fronteiras, o primeiro agente da globalização económica, afirmou-se, desde logo, como o ideal da nova ordem mediática, apostando numa lógica que desvaloriza a cidadania, avessa, por isso, à pro- moção da discussão racional de temas extranacionais, que consolidassem a formação de uma verdadeira esfera pública global.

Stig Hjarvard reconhece que a globalização introduz alterações na esfera pública, mas não cria, necessariamente, uma “entidade superior – mais abran- gente”:

“A discussão política na esfera pública é menos globalizada, quando comparada com as transformações operadas na indústria, na área finan- ceira, na governação, na cultura” (2009: 686, 678).

As alterações promovidas poderão influenciar a forma como se discutem determinadas matérias nacionais, mas os media, de facto, não aproveitaram o potencial tecnológico, que lhes permitiu transnacionalizarem-se, para promo- verem a discussão pública global.

As fusões e aquisições que estão na base da consolidação dos conglomera- dos de media não representam, apenas, a associação direta entre o campo das notícias e o campo do entretenimento, os dois campos tradicionais dos me- dia; o que está aqui em causa, verdadeiramente, é a integração do jornalismo numa área de negócio muito mais vasta, obedecendo o negócio do jornalismo à mesma lógica comercial das restantes áreas comerciais do grupo.

Bonnie Anderson alerta para as consequências dessa imersão do jorna- lismo nas lógicas do capitalismo global:

“Não é como vender motores de avião, ou bilhetes de cinema ou teatro (...) O valor de media livres não deve, por isso, ser medido em termos de ganhos financeiros ou pelas audiências alcançadas (...) esses não devem ser os parâmetros que devam medir a saúde e os valores do jornalismo atual” (2004: 9).

Charlie Beckett assinala que a tendência para o jornalismo deixar de estar no centro do negócio dos diversos grupos de media sofreu um agravamento substancial com o avanço do jornalismo multimedia.

“A maioria dos novos media são propriedade de empresas com interes- ses em áreas muito diferentes do jornalismo (...) as vendas a retalho, as redes sociais, a cultura, o desporto ou a pornografia” (2008: 16).

2.2.11 O papel de Rupert Murdoch na contaminação do jorna-

No documento Jornalismo e Mercado (páginas 114-119)