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Jornalismo, esfera pública e democracia

No documento Jornalismo e Mercado (páginas 68-70)

O conceito de Esfera Pública deve orientar-nos na definição da finalidade do jornalismo, ainda que o modelo ideal de Esfera Pública, como Jürgen Haber- mas originalmente o definiu, nunca tenha tido uma correspondência na socie- dade1. De facto, o Espaço Público da Esfera Pública Liberal já era pleno de desigualdades sociais; o debate e a discussão públicos – instrumentos promo- tores da racionalidade – eram exclusivo dos círculos letrados.

Se é verdade, como assinalámos no primeiro capítulo, que a fase industrial da imprensa veio tornar mais frágeis, e instáveis, as relações do leitor com os jornais, o facto é que ela também permitiu que a mercadoria impressa, a notícia, chegasse a públicos que, até então, não conseguiam aceder-lhe; o jornal democratizou-se, rompeu com a elite e chegou às camadas populares, mercê, também, da democratização do acesso à educação.

A Esfera Pública contemporânea é, pois, resultado de um aparente para- doxo: a democratização do acesso da informação publicada transporta, igual- mente, esse vírus que acentua as desigualdades e aumenta o fosso entre os mediae os recetores.

Um público, diluído numa massa sem rosto, distanciou-se da receção crí- tica, diminuindo, drasticamente, o grau de exigência. A Esfera Pública da era

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Na sua obra de referência sobre esta matéria, Habermas reconhece que uma esfera pú- blica de onde são excluídos certos grupos sociais “não é apenas incompleta, nem sequer é uma esfera pública” (1981: 107). Na revisão da sua tese, o filósofo alemão atribuiu um papel aos excluídos na progressão da Esfera Pública, assumindo que “ao lado da esfera pública burguesa, hegemónica, se apresentam outras esferas públicas subculturais (...).” A “exclusão das camadas inferiores, cultural e politicamente mobilizadas, provoca uma pluralização da esfera pública na sua fase de formação. Ao lado da esfera pública hegemónica, e nela entrelaçada, forma-se uma esfera pública plebeia” (1992: 165). Esse entrelaçamento e cruzamento de experiências é um sinal da vitalidade da Esfera Pública. Na revisão da tese de 1962, Habermas prolonga a longevidade da Esfera Pública, acreditando que o papel de intermediação entre o Estado e a Sociedade, que lhe está associado, pode resistir a alterações sociais que restrinjam as suas fun- ções. “O contraste entre a primeira forma de esfera pública política (que vigorou) até meados do século XIX, e a representativa das democracias de massa do Estado Social, pode, portanto, desta forma, atenuar a oposição entre um passado valorizado de forma idealista, e um presente deformado pela crítica da cultura” (idem, ibidem: 168).

industrial alargou-se à sociedade, tendo perdido o molde e a identidade, mas, no caso específico da imprensa, causa e efeito dessa Esfera Pública, não deixa de ser um fator positivo o percurso, sem barreiras, que a palavra impressa pôde trilhar, chegando a camadas mais vastas da população.

O período iluminista definiu as bases de um papel da imprensa que não conseguiu resistir às diferentes mutações, que têm promovido uma reconfigu- ração da Esfera Pública. A imprensa enquanto “guia da opinião pública” e veículo “promotor da discussão pública”, marca do Iluminismo, acabou, ela própria, por se deixar instrumentalizar pela dimensão comercial: os donos dos jornais transformaram-se em “negociantes da opinião pública”; a imprensa “haveria de transformar-se num meio da cultura de massas” (Habermas, 1973, 2009: 48 e 49).

O jornalismo é pois um produto da Esfera Pública. Os constrangimentos criados ao jornalismo, e ao cumprimento da sua missão original, são corolário da interseção direta entre jornalismo e Esfera Pública – que nunca chegou a atingir, como referimos, a idealização teórica que Jürgen Habermas preconi- zou, nos anos 60 do século passado.

Essa dimensão teórica permanece, todavia, como o padrão de referência onde assentam as bases da análise crítica do papel dos media e do jornalismo; o padrão permite assinalar e esclarecer os desvios.

Existe, aliás, como assinala James Carey, uma tentação, por parte do jor- nalismo e da academia que estuda o papel que ele desempenha na sociedade, de se encontrarem soluções para a crise do jornalismo nos valores iluministas:

“A imagem, os ideais, a linguagem do século XVIII, são o ponto de partida para todos os movimentos de reforma (...) Os jornalistas, como pombos domésticos, regressam a esse ponto de partida, à linguagem dos públicos e da democracia, para justificarem a reconfiguração da imprensa” (2007: 14).

O estudo do jornalismo, e do papel dos media nos sistemas democráticos, afirma-se, assim, muito dependente de duas visões opostas, como se não hou- vesse uma terceira via. Para Peter Anderson, o bloqueio, que nos impede de procurarmos essa terceira via, é resultado do conflito insanável entre o padrão e o desvio; emparedados entre opostos, sentimo-nos desobrigados de buscar soluções intermédias. Anderson situa o desvio na “visão pragmática”, orien- tada pelo mercado – “dar às pessoas as notícias que elas querem” –, e o padrão

na perspetiva teórica, que atribui ao jornalismo e aos media essa “função idea- lista” que lhes permite assumirem-se “força vital de promoção da participação e do reforço do poder de cada indivíduo no processo democrático” (2007: 39). No próximo capítulo analisaremos a possibilidade de uma terceira via, que abra caminho à reinterpretação do jornalismo, libertando-o do espartilho imposto pelo pragmatismo, de um lado, e, no outro extremo, pelo idealismo.

Anderson considera que o panorama massmediático britânico dispõe de exemplos que se aproximam de um e outro extremo. O autor conclui que a BBC é o meio que integra os sinais que configuram essa visão idealista. No outro lado do espetro, no topo da lista dos meios orientados pela lógica do mercado, Anderson coloca o diário The Sun.

De facto, a BBC é consensualmente encarada como o serviço público te- levisivo de referência na Europa. Elihu Katz classifica-a como a “grande in- venção social”: “uma televisão que pertence à Esfera Pública e não à admi- nistração ou ao meio empresarial”, por isso mesmo, uma entidade livre para “criticar a política, as empresas e as instituições sociais” (2000: 26)2.

No documento Jornalismo e Mercado (páginas 68-70)