• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 5 – O PORTEFÓLIO COMO DISPOSITIVO DE AVALIAÇÃO E DE

5.1. A avaliação do ensino pelos pares e a indagação da pedagogia

A maior parte das instituições de ensino superior recorre à opinião dos alunos, quase exclusivamente, como forma de avaliar a eficácia do professor. Estes questionários utilizados de forma generalizada em grande parte das instituições de ensino superior, para avaliar a qualidade do ensino, proporcionam apenas “uma” visão da qualidade do ensino, sendo necessário que outros elementos se adicionem para que se possa ter uma visão mais global e documentada. Surge assim a ideia de que os docentes estariam mais qualificados para avaliar a prestação de um determinado colega do que os estudantes, ainda que estes últimos também tenham uma palavra a dizer. Desta forma, abrem-se as salas de aula à visita de outros docentes que, muitas vezes, depois de uma hora de observação emitem um relatório sobre o que presenciaram, o qual poderá ser incluído no processo de avaliação desse docente (Bernstein, 2008). Apesar de por vezes se ter a ideia que um processo deste tipo envolve a revisão por pares, esta situação seria equivalente, num contexto de investigação, a uma observação de uma ou duas horas do trabalho de investigação de alguém e, com base nessa observação, formular um juízo sobre a qualidade da mesma (Bernstein, Burnett, Goodburn, & Savory, 2006). Não obstante a importância da observação de aulas esta proporciona uma informação muito limitada sobre a aprendizagem dos estudantes e de todo o processo de ensino- aprendizagem. Consequentemente, a revisão por pares, ideia fundamental quando se avalia a qualidade da investigação, poderia ser vertida para o ensino:

16

113

Peer review involves having an individual with some measure of specialization or expertise provide substantive feedback on the quality of intellectual or creative work. We advocate peer review as a means to examine teaching because it holds a sacred place in academics – the opinion of peers is often viewed as the ultimate measure of quality and merit. (Bernstein et al., 2006, pp. 5-6)

Desta maneira, a opinião dos pares sobre o trabalho inteletual associado ao ensino poderia ser o caminho para a “medida” da qualidade deste. Boyer (1990) num relatório paradigmático realizado para a Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, intitulado “Scholarship reconsidered: Priorities of the professoriate” refere-se a quatro tipos de “scholarship”: descoberta, integração, aplicação e ensino, as quais fariam parte integrante do trabalho do docente e que se sobreporiam. Dada a dificuldade da tradução do termo em português será importante perceber o que se entende por “scholar” ou “scholarship”. As expressões remetem para a ideia de erudição, ciência, saber, sendo o “scholar” a pessoa que possuir as referidas características e a “scholarship” a condição propriamente dita. Esta noção ficou (e permanece) associada à ideia de alguém que faz um tipo de trabalho inteletual que geralmente é conotado com investigação. Hatch, White, Raley, Capitelli, & Faigenbaum (2006) referem que é partir do surgimento nos E.U.A. da universidade de investigação, no século XX, que a expressão “scholarship” ficou com a referida conotação. Boyer caracteriza então, no referido relatório, em que consiste cada uma das diferentes “scholarships”. A “scholarship” da descoberta é aquela que associamos tradicionalmente ao trabalho de investigação. Quando nos reportamos à integração “(…) we mean making connections across the disciplines, placing the specialities in larger context, illuminating data in a revealing way, often educating nonspecialists, too.” (p. 18), ou seja, reportamo-nos ao trabalho multidisiciplinar e interdisciplinar que surge como cada vez mais necessário num mundo em que existe um elevado grau de especialização mas que para a compreensão de certos fenómenos é necessário ultrapassar as fronteiras das disciplinas científicas e incluir a investigação numa perspetiva mais integrada. Enquanto que as duas formas anteriormente mencionadas se referem ao trabalho de investigação tal como o conhecemos, a aplicação leva-nos a questionar o impacto do conhecimento desenvolvido por esse processo e a sua utilização para a resolução de problemas concretos. Por outro lado, também nos questiona sobre a potencial influência da

114

sociedade na agenda da investigação. Não se pretende com isto dizer que o conhecimento que deriva da investigação surge em primeiro lugar e a aplicação é o segundo momento deste processo; trata-se de um processo interativo podendo a aplicação do conhecimento contribuir para novas pistas de investigação e para novo conhecimento.

“(…) members of professions have to develop the capacity to learn not only from the academy but, even more importantly, from the experience and contemplation of their own practice. This is true not only for individual professionals, but equally for the entire community of practice. Lessons of practice must have a way of getting back to inform and to render problematic knowledge development in the academy itself.” (Shulman, 2004d, p. 15)

A última forma de “scholarship” reporta-se ao ensino e deve ter um espaço tão importante quanto as anteriores porque também através dela se adquire conhecimento. Os docentes, no âmbito da sua função, para além de dominarem a sua área científica devem dominar os processos pedagógicos. Se isto for realizado de forma séria a preocupação com o conteúdo deve equiparar-se à preocupação com a dimensão pedagógica. Os docentes deverão ser aprendentes. Ensinar é muito mais do que transmitir informação, implica transformar esse conhecimento e aumentá-lo.

Assim sendo, a função docente, tal como defende Boyer (1990) inclui as quatro formas de “scholarship” sendo o ensino uma de entre as quatro. McKinney (2006), no entanto, enfatiza, com propriedade, que no ensino também se inclui as “scholarship” da descoberta (investigação como é tradicionalmente entendida), a da integração e a da aplicação.

Shulman que sucede a Boyer na liderança da Carnegie Foundation for the

Advancement of Teaching, vai trazer uma nova perspetiva que apesar de parecer, à

primeira vista semelhante, à de Boyer, se apresenta deforma complementar. Boyer ao defender a existência de quatro tipos de scholarship pretendia que as universidades valorizassem a atividade docente para além da investigação, nomeadamente, nas quatro áreas por ele referidas; Shulman, por seu lado, surge preocupado com a melhoria do

115

ensino e com a expansão do conhecimento de base necessário para ensinar, bem como com a ideia de que a investigação tradicional é apenas uma das fontes de conhecimento possível sobre o ensino (Hatch et al., 2006). O ensino surge assim também como uma forma de “scholarship” à semelhança do que Boyer defendia, mas avança com a ideia de que “(…) the products and activities that help to articulate, review, and exchange the expertise of teachers are as important to our knowledge and understanding of teaching as traditional modes of research and scholarship” (Hatch et al., 2006, p. xxiii).

Desta forma, reforçamos esta ideia com dois conceitos que apesar de associados, se distinguem: o “bom ensino” (“good teaching”) e o ensino considerado como atividade intelectual e baseado em investigação (“scholarly teaching”). Quando nos referimos ao facto de existir um ensino “bom” ou de qualidade estamos a referir-nos ao ensino que promove a aprendizagem dos estudantes (McKinney, 2006) mas quando nos referimos ao ensino baseado na investigação estamos a referir-nos a um ensino que está sustentado no conhecimento científico e nos recursos da área em questão. É um ensino que resulta de um trabalho de integração de ideias, bem concebido em termos de estratégias de ensino-aprendizagem, de transmissão de informação, de interação e de avaliação (Shulman, 2004f). Semelhantemente, Kreber (2002) faz uma distinção entre ensino de excelência (“teaching excellence”) e ensino como especialidade (“expertise teaching”), noções que se aproximam da distinção feita por McKinney (2006) entre “bom ensino” e “ensino baseado em investigação”. Temos assim os professores excelentes como aqueles que “(…) know how to motivate their students, how to convey concepts, and how to help students overcome difficulty in their learning” (Kreber, 2002, p. 9), cujo desempenho resulta não só do domínio científico da sua área de ensino mas da experimentação e reflexão que efetuam de forma continuada. Esta reflexão, no entanto, dirige-se ao grupo no seu todo e não a aspetos específicos do ensino que seria necessário aprofundar. Em contrapartida, os professores que poderemos considerar como especialistas, para além de professores de excelência procuram na teoria educacional justificação para as suas opções e para a sua experiência. Portanto, o seu ensino está igualmente baseado na reflexão, não numa perspetiva genérica mas focalizada em problemas/situações concretas que pretendem resolver ou ultrapassar; serão assim capazes de autorregular a sua aprendizagem, automonitorizarem e

116

autoavaliarem o seu processo reflexivo. Desta forma, conseguem ao longo do tempo desenvolver estratégias mais eficazes e eficientes. A combinação entre o conhecimento disciplinar especializado e o conhecimento da forma de ensinar que deriva do estudo e da pesquisa na área da teoria educacional permite a construção do conhecimento de conteúdo pedagógico que Shulman (2004b) inclui no que considera os conhecimentos de base da profissão. Seriam assim, fundamentalmente, sete os tipos de conhecimento base da profissão docente:

i. Conhecimento relativo ao conteúdo; ii. Conhecimento pedagógico geral; iii. Conhecimento do currículo;

iv. Conhecimento dos aprendentes e das suas características; v. Conhecimento dos contextos educacionais;

vi. Conhecimento das finalidades educacionais, dos valores e das suas bases históricas e filosóficas;

vii. Conhecimento de conteúdo pedagógico que seria uma “amálgama” resultante do conhecimento relativo ao conteúdo e do conhecimento pedagógico que constituiria a forma particular de compreensão profissional do docente

Kreber (2002) avança então com uma terceira forma de envolvimento no ensino: a “scholarship of teaching” que distingue das duas anteriores formas dado que “(…) scholars of teaching share their knowledge and advance the knowledge of teaching and learning in the discipline in a way that can be peer-reviewed” (p.5). Estamos assim perante docentes que para além de serem bons professores ou professores excelente, são também professores especializados cujo trabalho é orientado pela investigação, mas que adicionalmente tornam público o que fazem disponibilizando o conhecimento que construiram à comunidade académica para que esta o reveja e avalie.

É portanto nesta senda que surge a “sholarship of teaching and learning” como forma de tornar visível e sujeito à análise dos pares o trabalho intelectual associado ao

117

processo de ensino-aprendizagem. McKinney (2006) refere que a “scholarship of teaching and learning” constitui um maravilhoso movimento social no ensino superior mas aponta estudos que referem que ainda não há um consenso total sobre o significado da expressão. No entanto, avança com a definição que considera mais ajustada, a saber: “The scholarship of teaching and learning involves systematic study of teaching and learning and the public sharing and review of such work through live or virtual presentations, performances, or publications (McKinney, 2006, p. 39). Estamos perante uma abordagem do trabalho do docente que envolve a visibilidade e o escrutínio público e que pode revestir diversas formas. Vieira (2009) prefere a expressão “scholarship of pedagogy” dado que na sua opinião o termo pedagogia integra a aprendizagem e o ensino e as atividades com estes relacionadas. Esta autora traduz a expressão para português como “indagação da pedagogia” (Vieira, Silva, & Almeida, 2010)17

.

Ao integrar esta questão neste tópico do trabalho fazemo-lo dado que consideramos que o portefólio é, por excelência, uma forma de tornar visível o processo de ensino-aprendizagem mediado pelo docente (Bernstein et al., 2006) apesar de não ser a única forma disso acontecer. O portefólio permite e promove qualquer um dos dois tipos de ensino referidos acima (o bom ensino e o ensino baseado na investigação) mas contribui adicionalmente para a a visibilidade e avaliação deste. É isso que se pretende com a “scholarship of teaching and learning”/indagação da pedagogia: a visibilidade e a avaliação pelos pares do trabalho intelectual associado ao ensino, o que não é muito diferente do que se passa com a publicação em ciência:

When we describe teaching as serious intellectual work or scholarship, we need to prove that the products of teaching can also be rigorously evaluated for excellence by a community of peers. (…) As in the review of a research or creative project, merely documenting good practice is not enough. Like research or art, teaching is judged in part based on its impact on the intended community. (Bernstein, 2008, p. 51)

17

A expressão “scholarship” não é de fácil tradução em português e para além da expressão “indagação” que nos parece que não traduz verdadeiramente a ideia de “scholarship”, surgem outras, como por exemplo, “investigação para o ensino e aprendizagem” (Kalish, 2008). No entanto, na ausência de uma solução ideal optamos por utilizar as duas formas: português e inglês, adoptando para o português a nomenclatura de Flávia Vieira.

118

Estamos assim perante um movimento que pretende dar ao trabalho intelectual associado ao ensino um estatuto próximo do da investigação, trazendo-o para a esfera pública, dando-lhe, portanto, visibilidade e sujeitando-o à avaliação dos seus pares. Contrariamente à investigação em que são os problemas que a conduzem e que a motivam, no ensino o “problema” é algo a evitar, algo que não está bem. Desta maneira, “Changing the status of the problem in teaching from terminal remediation to ongoing investigation is precisely what the movement of the scholarship of teaching is about” (Bass, 1999). O movimento da “scholarship of teaching and learning”/indagação da pedagogia pretende que os “problemas” no processo de ensino-aprendizagem sejam motivos para investigar formas de compreender e solucionar os desafios.

5.2. Portefólios e as suas diferentes modalidades no ensino