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CAPÍTULO 1 – O ENSINO SUPERIOR

1.4. A função docente no ensino superior

As instituições de ensino superior são supostamente as estruturas onde mais conhecimento se cria, dado que uma das funções do ensino superior é a investigação. É também o local por excelência para formar profissionais altamente qualificados e onde se encontram concentrados “(…) o conjunto de las funciones tradicionales asociadas al progreso y a la transmisión del saber” (Garcia & Garcia, 2003, p. 8). Dada a importância destas instituições é curioso constatar que são relativamente poucos os

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trabalhos de investigação que procuram observar por dentro a instituição universitária, o seu funcionamento, os seus atores.

Um dos atores-chave nas instituições de ensino é o docente. Também aqui nos surpreende o facto de ser relativamente fácil encontrar publicações sobre a profissão docente nos níveis anteriores ao Superior, sobre as suas funções, sobre a sua formação e desenvolvimento profissional. Até mesmo para as questões da avaliação de desempenho docente, encontramos bibliografia editada em Portugal (cf. Simões, 2000; Curado, 2000) e, no entanto, o mesmo já não acontece relativamente à docência no ensino superior. Não querendo assumir que se trata de uma dificuldade de autorreflexão e/ou de autocrítica seria, no entanto, interessante perceber as razões de tal desinteresse apesar de não ser esse o objetivo deste estudo.

A função docente no ensino superior é distinta da que se realiza noutros níveis de ensino? Ser professor no ensino superior atualmente será diferente do que era há vinte anos atrás? Quais são as funções específicas destes profissionais? Quais são os seus desafios concretos? Quais são as exigências de acesso à profissão e estarão estas adequadas ao que é exigido do docente? Como são preparados (ou como é que se preparam) para esta profissão?

Neste contexto surge como pertinente debruçarmo-nos sobre a profissionalidade dos docentes do ensino superior dado que ao fazê-lo nos estamos a indagar sobre “(…) o perfil de uma profissão, o seu conteúdo identitário, a sua autonomia e o seu estatuto” (Monteiro, 2010, p. 9). Para este autor no conteúdo identitário incluem-se os valores, saberes e qualidades que tornam singular uma determinada profissão, distinguindo-a assim das restantes; a autonomia profissional tem ver com o nível de independência quer individual quer coletiva com que a profissão pode ser exercida e, como tal, tem implicações no nível de responsabilidade da mesma; e o estatuto social relaciona-se com o valor público da profissão e que se traduz em termos de rendimentos, de poder, influência e prestígio. Já Tardif & Faucher (2010) consideram as competências profissionais, a apropriação de uma cultura profissional e a construção de uma identidade profissional, como os três componentes da profissionalidade. Temos,

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portanto, em comum, nestas duas perspetivas a questão da identifidade profissional como algo central. Apesar de qualquer um dos aspetos relativos à profissionalidade do docente do ensino superior ser pertinente é fundamentalmente no primeiro – o conteúdo identitário – que incide a nossa reflexão. Tradicionalmente, as publicações sobre as funções do ensino superior enfatizam três aspetos básicos: a investigação, o ensino e o serviço (ou a ligação à comunidade como é referido por Conceição et al., 1998). O Estatuto da Carreira Docente Universitária (Decreto-Lei 206/2009 de 31 de Agosto de 2009) enuncia, para além das três funções já referidas, a função de participar na gestão das instituições. Assim sendo, assumimos que os docentes estão em sintonia com estas mesmas funções, já que são os protagonistas de todas elas. Não obstante esta função tripartida (ou quadripartida), é um facto que ser docente, e ser docente no ensino superior, é a profissão que contém e consolida estas funções, no entanto, é reconhecido que os professores no ensino superior sentem a sua identidade mais ligada à sua formação disciplinar do que à de professor, ou seja, a sua identidade profissional está intimamente ligada à área de especialidade em que se formaram (Theall & Arreola, 2001). Dito de outra forma, os docentes do ensino superior formados na área da Psicologia, apesar de serem professores, identificam-se mais como psicólogos, os que ensinam Tecnologia dos Alimentos mais como engenheiros alimentares e os que ensinam Anatomia mais como médicos. Procuram formação adicional e investigam nas suas áreas disciplinares e filiam-se em associações profissionais das áreas em que se especializaram. Tal como referem Theall & Arreola (2001) “But the meta-profession of college teaching makes demands beyond the discipline and it is generally acknowledged that one’s status within the discipline is more weighty and meaningful than one’s status within the teaching profession” (p.6). O conceito de meta-profissão desenvolvido por estes autores é fundamental para se entender, na sua extensão e complexidade, a profissão de docente no ensino superior. Arreola, Aleamoni & Theall (2001) defendem que:

All college faculty are drawn from a pool of professionals prepared to practice and/or conduct research in a specific content area. When an individual is hired as a faculty member for the first time they come to the position with what may be called their base profession’s skills and knowledge. (…) Although the skills and knowledge associated with a faculty member’s base profession are necessary for effective college teaching

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they are insufficient. In its full professional expression college teaching has been found to require at least three different, thought related, professional dimensions: Base Professional Skills and Knowledge (especially Content Expertise); Instructional Design Skills and Knowledge; Instructional Delivery Skills and Knowledge. (p. 1)

Constatamos assim que a profissão docente no ensino superior é uma meta- profissão porque envolve muito mais competências do que aquelas para as quais estes profissionais foram treinados na sua profissão de base. Apesar de considerarmos essencial que os professores do ensino superior, que lecionam uma determinada área científica, tenham a preparação científica que o seu percurso académico e/ou profissional certifica, a profissão de docente envolve mais competências do que as específicas da sua profissão de base, no entanto, muitos dos docentes são contratados com base nessas competências sem qualquer preocupação ou indicação do seu possível desempenho como docentes. De acordo com os autores citados (op. cit.) as Instructional

Design Skills dizem respeito às competências técnicas “(...) in designing, sequencing,

and presenting experiences which induce learning; and… those skills in developing and using tools and procedures for assessing student learning (i.e. testing and grading)” (p. 3) Entre as várias áreas de competência podemos referir, a título de exemplo, a construção e análise de testes, a psicologia da aprendizagem, a preparação de objetivos de aprendizagem, a avaliação da aprendizagem dos alunos, a utilização de dados com objetivos sumativos e formativos. Já os Instructional Delivery Skills consistem em “(...) human interactive skills which promote or facilitate learning including the ability to motivate students, generate enthusiasm and communicate effectively in all forms of instructional environments” (Idem, Ibidem, p.3). São exemplo destas competências aspetos que se prendem com a apresentação oral dos conteúdos, como seja o domínio da aula magistral, do trabalho de grupo, o recurso à tecnologia para apresentação dos conteúdos, como o retroprojetor, videoprojector, a Internet, entre outros. Os autores referem ainda uma competência adicional, que se refere à capacidade de liderança, já que muitas vezes os docentes são chamados a ocupar posições/funções de liderança como coordenadores/diretores de cursos, presidentes nos diversos conselhos existentes (científico, pedagógico, consultivo), ou outras, e devem assim dominar aspetos relativos à gestão do conflito, ao planeamento estratégico, à definição de metas e aos processos de grupo, apenas para referir alguns.

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Não obstante a importância de todos os aspetos focados por Arreola, Aleamoni & Theall (2001), por uma questão pragmática e, por opção de fundo, neste trabalho pretende-se explorar fundamentalmente as competências relativas ao instructional

design e ao instructional delivery porque são estas que se prendem de forma mais

próxima com a componente pedagógica e didática do ensino.

Para muitos é um dado adquirido que para se ensinar basta conhecer-se relativamente bem o conteúdo que se ensina, isto é, os bons professores seriam aqueles que dominam a sua área disciplinar e, como tal, quem sabe bastante sobre um assunto é capaz de o ensinar. Felizmente nem todos assim pensam e, à semelhança de Reimão (2001), consideramos que:

Torna-se, portanto, urgente a necessidade de pensar a Pedagogia no Ensino Superior, apesar de alguns a combaterem, afirmando que o fim essencial deste subsistema de ensino é produzir saberes; a sua difusão coloca poucos problemas porque se processa numa relação de adultos.(p. 26)

Retomando ainda a clássica função tripartida dos docentes no ensino superior – ensino, investigação e serviço - é a vertente de ensino e em particular os aspetos referidos como instructional design e instructional delivery que nos interessam neste trabalho, uma vez que é um facto que atualmente o mestrado e o doutoramento são exigências absolutas do percurso de um docente no ensino superior e, como tal, parece comprovada a competência dos mesmos para realizar investigação. Também parece evidente que é esta uma das funções mais valorizadas neste nível de ensino, nomeadamente porque se concretiza em publicações e têm vindo a ser estas, à semelhança do que acontece em muitos países anglo-saxónicos, a determinar o “valor” do docente, a definir a sua progressão na carreira e a prestigiar a instituição.

Até recentemente, em Portugal, para se ingressar na profissão docente universitária, como assistente estagiário, não era exigida formação para a docência. No entanto, para se poder concorrer ao lugar de assistente, não tendo obtido o grau de mestre, prestar “provas de aptidão pedagógica e capacidade científica”. As provas de

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aptidão pedagógica consistiam na apresentação, fundamentação e discussão pública do “relatório de uma aula prática ou teórico-prática”. No quadro do atual Estatuto da Carreira Docente Universitária, com a entrada em vigor da exigência do grau de doutor para recrutamento no ensino superior a ausência de preparação nesse domínio “sobe de nível” (Nogueira & Rodrigues, 2009). Não deixa de ser paradoxal que a atividade para a qual os docentes são contratados e a que mais tempo devotam – o ensino – não seja tão ou mais valorizada que a investigação; dito de outra forma, os docentes são contratados como professores mas são valorizados como investigadores. Theall & Arreola (2001) citam Barzum que de forma irónica refere o seguinte: “College and university teaching is thus the only profession (except the proverbially oldest in the world) for which no training is given or required. It is supposed to be ‘picked up’.” (p. 2) Também aqui se poderá questionar a preparação na área pedagógica anterior à entrada na profissão e aquela que é proporcionada após a entrada na mesma. Existirá alguma fase de indução? Existe acompanhamento, formação ou qualquer outra modalidade que permita ao docente que ingressou recentemente na profissão desenvolver as competências que referimos?

A terceira função – serviço ou ligação à comunidade – não será abordada neste trabalho.

Retomamos assim a necessidade, defendida por Arreola et al. (2001), de que os docentes possuam competências a nível do design e implementação do processo de ensino-aprendizagem (de pedagogia e didática), dado que estas são fundamentais para se ser um professor e para que se cumpra a “(…) finalidad última de toda intervención de carácter pedagógico [que] es desarrollar en el alumno la capacidad de generar aprendizajes significativos y con sentido” (Acevedo, 2002, p. 29).

Recentemente, um novo paradigma tem vindo a emergir e que nos leva a repensar a forma de ensinar e de aprender no ensino superior: o Paradigma da Aprendizagem por oposição ao Paradigma do Ensino. O surgimento deste paradigma leva-nos a questionar a/s razão/ões de existência do ensino superior e das suas funções. “A college is an institution that exists to provide instruction. Subtly but profoundly we

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are shifting to a new paradigm: A college is an institution that exists to produce learning. This shift changes everything” (Barr & Tagg, 1995). Dentro deste novo paradigma a preocupação não está naquilo que o professor ensina mas sim naquilo que o estudante aprende.

No contexto deste novo paradigma Ramos (2010, p. 61) há indícios de uma nova profissionalidade na docência universitária:

Uma emergente reconceitualização da docência universitária no limiar do século XXI, ao explicitar a responsabilidade desta no processo de aprendizagem do estudante, indicia uma outra profissionalidade que, para dar conta de tal função, reconhece existir um conhecimento específico para este exercício, fato que promete delinear um lugar para o conhecimento pedagógico-didático na docência universitária.

O já referido Processo de Bolonha vem dar voz a este novo paradigma ao enfatizar a necessidade de se efetuar uma mudança de um modelo passivo para um modelo que prevê o desenvolvimento de competências. Também de acordo com o relatório da OCDE (2007), relativo à avaliação do sistema de ensino superior em Portugal:

The predominant Portuguese approach to teaching as telling, and learning as passive reception of knowledge, rather than interaction, questioning and practical experience, is a principal reason for low rates of educational participation and success. The culture and practice of failing large proportions of students at various stages of the education process, and the inordinate repetition rates, reflects the dominance of a curriculum approach using norm-referenced assessment. The Bologna reforms envisage a competence approach using criterion-referenced assessment, along with learning modes that engage students actively, maintain their interests and widen their mental horizons. This far-reaching change in the educational mind-set, with all of the changes to culture, procedure and skill that it entails throughout the schools, polytechnics and universities, is fundamental to increase learner participation, progression and success. (p. 83)

A abordagem tradicional do ensino e a cultura que promove a reprovação de elevado número de estudantes, referidas pelo relatório, são condições que exigem

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mudanças, mudanças até de tipo cultural e, consequentemente, uma nova forma de ensinar e de aprender no ensino superior. Parece ser essencial que exista uma mudança profunda na forma como o ensino se processava até ao momento nas nossas instituições de ensino superior e, obviamente, essa mudança terá que passar pela formação pedagógico-didática dos docentes para responderem a este desafio de forma positiva. É assim fundamental que possamos confirmar que as competências a adquirir foram de facto adquiridas e não apenas que a informação sobre determinado conteúdo foi transmitida.

Será que os nossos docentes estão aptos a criar ambientes e experiências que levem os estudantes a descobrir e a construir conhecimento por si mesmos, que consigam integrá-los em comunidades de aprendizagem onde efetuem descobertas e resolvam problemas (Barr & Tagg, 1995)? Um ensino baseado quase exclusivamente no método magistral, expositivo, permite a descoberta, a construção do conhecimento e o desenvolvimento da capacidade de resolução de problemas? Finkel (2008) defende extamente a ideia de que não só é possível como desejável ensinar sem falar, ou na expressão que utlizou na sua obra “dar clase com la boca cerrada”.

Por outro lado, um desafio adicional se coloca aos docentes neste momento, com o forte desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação, ao qual não podem estar alheios. Muitos dos membros do corpo docente no ensino superior não estão familiarizados com estas tecnologias, ao contrário dos seus alunos, que convivem com as mesmas desde a infância. O desafio é colocado assim por Arreola (2000a): “The profession of college teacher is changing dramatically. It is no longer simply a matter of knowing your material and lecturing on it. Now we must use sophisticated techniques and technologies to deliver instruction”. (p. 1)

Realçamos aqui este aspeto, não porque não esteja incluído nas competências essenciais já referidas anteriormente, mas pela sua importância na atualidade e até pelo ritmo a que aconteceram e se desenvolvem. Outra razão adicional será a de que o recurso à tecnologia resulta numa forte motivação do aluno, já que apela aos diferentes sentidos, implicando-o desse modo, de uma forma mais profunda nos conteúdos

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apresentados; o recurso à tecnologia implica o uso interativo dos diferentes discursos –

scripto; o áudio, o vídeo e o informo.

We need to overcome higher education’s tradition of slow, deliberate, incremental changes and somehow develop ways to respond more rapidly. If we are in a profession that deals with knowledge, information, and tools that affect the delivery of instruction, then we need to be sophisticated in the use of those tools (Arreola, 2000a, p. 3).

Se esta fosse de facto a única diferença significativa entre o que era o desafio de um docente no ensino superior há, digamos, vinte anos atrás e atualmente, não teríamos razão para nos inquietarmos, mas outros desafios se apresentam ao ensino superior e aos docentes. Não queremos deixar de realçar aqui um aspeto fundamental que se prende com a massificação (ou democratização) da população estudantil. No ensino superior deixámos de ter apenas uma elite de estudantes para termos alunos cujas origens socioeconómicas e culturais são as mais diversas possíveis. Associado a este aspeto temos ainda a diversidade psicológica e cognitiva às quais os docentes devem responder de forma diferenciada. Temos também que aprender a lidar com esta diversidade, se ainda não o fizemos.

Como verificámos ao longo deste capítulo, as mudanças no ensino superior têm vindo a suceder-se, com maior ou menor velocidade ou com maior e menor impacto. Mais recentemente, a criação do EEES vem trazer consigo mudanças ainda mais profundas com implicações significativas nas funções docentes tradicionais. Fará, portanto, sentido verificar em que medida os docentes estão preparados para enfrentar os desafios das mudanças, em particular no que se refere à componente pedagógico- didática que como sabemos não é exigência formal para se ingressar ou manter na profissão.

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CAPÍTULO 2 – PEDAGOGIA E DIDÁTICA NO ENSINO