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3. A CAUSA DE PEDIR NO DIREITO PROCESSUAL BRASILEIRO

3.1 A RELEVÂNCIA DA CAUSA PETENDI NO DISCURSO JURÍDICO-PROCESSUAL

3.2.2 A causa de pedir e o relacionamento necessário entre Direito e processo

A necessidade de o autor declinar a causa de pedir, no ato introdutório da demanda, é

providência antiga no processo civil brasileiro. Segundo recorda Daniel Mitidiero, antes

mesmo de o legislador pátrio passar a tratar, em termos positivos, a realidade processual por

aqui, a imposição de a petição inicial vir substanciada por alegações fáticas e jurídicas já se

revelava uma premência.

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É interessante perceber, neste sentido, que durante o período que ficou conhecido por

“dualidade processual”, alguns códigos de processo estaduais, aperfeiçoando disposições

pertinentes já expressas nas Ordenações Filipinas e no Regulamento 737, de 1850, acabaram

por estabelecer com bastante clareza os elementos objetivos da demanda e, em particular, a

causa de pedir.

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No Código de Processo Civil de 1939, a exigência vinha contida no artigo

158, inciso III, pela qual o autor tinha o ônus de indicar os fatos e fundamentos jurídicos do

pedido. O diploma processual de 1973, por seu turno, dispunha que a petição inicial deveria

indicar o fato e os fundamentos jurídicos do pedido, redação repetida na íntegra no Código de

Processo Civil de 2015 (art. 319, inciso III).

À luz destas diversas disposições legislativas, a doutrina processual sempre defendeu

que nossa tradição, em consequência da constante referência a fatos, partilhara da simpatia

pela adoção da teoria da substanciação.

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Expoente dessa diretriz, Pontes de Miranda

624 Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo 3. São Paulo: Memória Jurídica, 2006, p. 153.

625 José Rogério Cruz e Tucci, fazendo alusão aos códigos de São Paulo, Santa Catarina e Pernambuco, mostrou

ser uma constante a referência, na petição inicial, da necessidade de dedução de fatos e alegações de Direito. (A causa petendi no processo civil. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 143).

626

LEONEL, Ricardo de Barros. Causa de pedir e pedido: o direito superveniente. São Paulo: Método, 2006, p. 90. Araken de Assis, ao referir que no Brasil reina total harmonia em torno dessa constatação, alega, com razão, ser indevida a referência feita a Liebman como defensor desta teoria, pois – seguindo orientação recorrente na doutrina italiana – inclinara-se, em verdade, por uma posição menos radical, nos termos daquela apoiada por Proto Pisani. (Cumulação de ações. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 138).

empregou, a despeito de reconhecer a necessidade do componente jurídico, maior prevalência

ao aspecto de fato.

627

Em que pese a autoridade dos prosélitos da substanciação, não parece correta essa

conclusão. Melhor seria, quando muito, dizer que a tradição brasileira adotou uma posição

intermediária entre substanciação e individuação, em primeiro lugar porque, como seu viu, ao

longo de nossa experiência, a referência ao componente jurídico também se revelou um

imperativo à determinação da causa de pedir.

Entender o contrário seria anuir à compreensão de que um dos elementos referidos

pela norma pudesse assumir algum tipo de prevalência.

628

Isso, em uma primeira análise, não

parece real, porque a definição da causa de pedir reclama, para a boa definição da res in

iudicium deducta, uma confluente e amalgamada correlação dos elementos fáticos em

consideração à relação jurídica que se afirma existente.

629

A definição da causa de pedir à vista da importância exclusiva dos fatos tem o

inconveniente de ocasionar um nocivo distanciamento do processo em relação ao Direito

material. A opção por uma vertente mais afeiçoada à substanciação ou à individuação,

segundo a citada teoria de Heinitz, perpassa justamente por averiguar como a causa de pedir

se relaciona com o componente jurídico que a integra, sobretudo pela definição que se dá ao

conceito de fato jurídico.

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Para os adeptos da substanciação, a narração fática encontraria correspondência

exclusivamente no pedido formulado pelo demandante, sendo de todo irrelevantes as

627 Segundo o mestre: “A lei acolheu a teoria da substanciação do pedido, que exige mais do que a simples

alegação de existir a relação jurídica (teoria da individualização): a parte tem de expor os fatos (da mihi factum!)”. (Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo 4. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 17).

628 LEONEL, Ricardo de Barros. Causa de pedir e pedido: o direito superveniente. São Paulo: Método, 2006, p.

91.

629

Parece irretorquível, por isso, a lição de José Ignácio Botelho de Mesquita: “É bem verdade que a nossa lei processual [referindo-se ao Código de Processo Civil de 1939] exige que conste da petição inicial a indicação dos fatos constitutivos mas isto, a meu ver, não leva à conclusão de que tenhamos aderido àquela corrente doutrinária [a teoria da substanciação]. Com efeito, a nossa lei exige igualmente que se indiquem na petição inicial os fundamentos jurídicos do pedido. Estes, evidentemente, pelas razões já expostas, não são nem a norma da lei, nem tampouco as deduções jurídicas, salvo quando, excepcionalmente, a norma legal sirva, à falta de outros elementos, para individuar o direito particular feito valer pelo autor no processo. Parece-me que se deva entender por ‘fundamentos jurídicos do pedido’ a relação jurídica controvertida e o direito particular dela decorrente. E não vejo nisto filiação à teoria da substanciação, mas, diversamente, entendo que a lei processual brasileira adotou uma posição de grande equilíbrio entre ambas as correntes conflitantes, dando importância tanto aos fatos constitutivos, como aos elementos de direito, na medida em que sirvam para individuar a pretensão do autor (...)”. (A ‘causa petendi’ nas ações reivindicatórias. In: Revista da Ajuris, Porto Alegre, n. 20, 1980, p. 179-180).

variáveis jurídicas materiais que os fatos pudessem encontrar na constelação jurídica, e que

autor, por descuido, ou mesmo por vontade, deixara de aduzir em juízo.

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Olvidando por completo das diversas situações jurídicas que os fatos podem promover

segundo o Direito material, a teoria da substanciação promove uma indevida hipertrofia do

componente fático, autorizando o juiz, amparado pelo iura novit curia, a analisar o pedido

segundo uma perigosa discricionariedade a respeito da avaliação do anteparo jurídico.

632

Bem interpretada essa situação, chegar-se-ia ao ponto de autorizar o juiz – não sem

risco direto à segurança jurídica – a modificar a qualificação jurídica da demanda e, portanto,

em última análise, da própria ação, impondo ao réu um ônus demasiadamente pesado que o

princípio dispositivo parece não admitir. Com efeito, se não há obstáculo a que o magistrado

corrija o nome que a parte, a partir dos fatos que foram alegados no processo, atribuiu

equivocadamente à relação jurídica, coisa bem diversa é autorizá-lo a alterar a própria relação

material.

633

A partir daí, recusando-se posições extremadas de uma ou outra vertente, é

conveniente asseverar que as doutrinas da substanciação e da individuação não se excluem

mutuamente, embora, para cada uma, a necessária particularização do objeto do processo se

dê por métodos diversos.

634

Assim, a análise da causa de pedir no direito brasileiro, à luz destas premissas, não

demanda importância apenas aos fatos – a sugerir uma incidência pura da teoria da

substanciação –, mas também requer um olhar especial ao componente jurídico, à revelia da

qual a situação jurídica a merecer tutela não poderia ser completamente identificada. Para que

isso fique mais claro, é imprescindível verificar como, no direito brasileiro, as teorias da

substanciação e da individuação assentam suas premissas elementares.

631 Essa circunstância fica bastante clara na obra de José Carlos Barbosa Moreira, escrita ainda sob a vigência do

CPC/73: “Não há alteração da causa petendi, nem portanto necessidade de observar essas restrições [aludindo aos artigos 264 e 321 do CPC/73], quando o autor, sem modificar a substância do fato ou conjunto de fatos, naquilo que bastaria para produzir o efeito jurídico pretendido (...) passa a atribuir ao fato ou conjunto de fatos qualificação jurídica diferente da originalmente atribuída – v.g., chamando de ‘dolo’ ao que antes denominara ‘erro’(haveria, ao contrário, alteração da causa petendi se o autor passasse a narrar outro fato, quer continuasse, quer não, a atribuir-lhe a mesma qualificação jurídica”. (O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento. 25 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 18).

632

HEINITZ, op. cit., p. 161.

633 Neste sentido, Milton Paulo de Carvalho. Do pedido no processo civil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris

Editor, 1992, p. 84.

634

GUILLÉN, Víctor Fairen. La transformación de la demanda en el processo civil. Santiago de Compostela: Porto, 1949, p. 71.