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3. A CAUSA DE PEDIR NO DIREITO PROCESSUAL BRASILEIRO

3.4 O CONTEÚDO DA CAUSA DE PEDIR OS COMPONENTES FÁTICO E JURÍDICO

3.4.2 A relevância dos fundamentos jurídicos para o mesmo fim

3.4.2.1 A qualificação jurídica e a (i) relevância dos fundamentos legais

Segundo remansosa doutrina, a qualificação jurídica que o ordenamento impõe ao

autor deduzir na petição inicial não se confunde, em absoluto, com o fundamento legal que o

enquadramento fático-normativo por ele descrito encontra no direito positivo.

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Se assim ocorre – e parece repousar justamente aí o núcleo de aplicação do iura novit

curia – nem sempre é suave e singela uma exata distinção de fronteiras entre ambos os

conceitos,

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o que torna duvidosa a afirmação de que “la calificación jurídica no es

competencia del actor sino del Juez, y si el actor la realiza, no es determinante”

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.

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Cumulação de ações. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 150. Novamente é crucial aqui a referência de que tal conclusão, segundo as premissas deste trabalho, não alcança a eficácia preclusiva da coisa julgada, dada a sua aptidão de consumir causas de pedir e ações autônomas.

747 Segundo assevera José Rogério Cruz e Tucci: “Embora o nomen iuris e/ou a fundamento legal porventura

invocado pelo autor possa influenciar o raciocínio do julgador, não há qualquer impedimento, dada a incidência do aforismo iura novit curia, a que este requalifique juridicamente a demanda, emoldurando-a em outro dispositivo de lei: o juiz goza de absoluta liberdade, dentro dos limites fáticos aportados no processo, na aplicação do direito, sob o enquadramento jurídico que entender pertinente (...)”. (A causa petendi no processo civil. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 160-161).

748 Como adverte José Roberto dos Santos Bedaque: “É extremamente complexa a exata configuração da causa

de pedir, visto que difícil a separação entre matéria fática e jurídica. Na verdade, a regra legal acaba sendo critério de seleção dos fatos pertinentes ao caso, pois apenas os que compõem a descrição abstrata do legislador integrarão a causa de pedir. Esse seleção já implica valoração jurídica e resultará na qualificação jurídica dos fatos. Se a valoração ou qualificação jurídica da matéria fática importa subsunção desta à norma, como distinguir fundamento jurídico e legal? Ao formular o pedido de tutela jurisdicional, ao autor atribui aos fatos por ele narrados a aptidão para produzir determinada consequência jurídica. Desde que se atenha a esse limites objetivos, ou seja, os fatos e os efeitos jurídicos pretendidos, o juiz pode aplicar regra diversa da invocada. Fundamento jurídico seria, portanto, a atribuição aos fatos da vida de determinada consequência estabelecida no

Essa última asserção revela uma indevida confusão de conceitos, em grande parte

movida pela noção, ainda hoje corrente, de que à caracterização da causa de pedir revelar-se-

ia indispensável apenas o enquadramento fático relatado pelo autor.

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Pode-se perceber que

essa postura hermenêutica adota uma tomada de posição explícita por um radicalismo em prol

da substanciação, para quem a causa de pedir deveria explicações unicamente ao pedido

formulado.

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Se há, de fato – e quanto a isso não existem maiores controvérsias – um específico

campo à incidência do iura novit curia, por certo ele não se revela assim tão amplo, a ponto

de deixar ao juiz o controle integral de todas as questões jurídicas introjetadas no processo.

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ordenamento. Aos descrever o fato e pleitear o efeito jurídico a ele inerente, já estaria o autor deduzindo o fundamento jurídico. Pelo que se vê, não é tão clara a distinção entre fato, fundamento jurídico e fundamento”. (Os elementos objetivos da demanda examinados à luz do contraditório. In: TUCCI, José Rogério Cruz e; ______. Causa de pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p, 32-33). Parecendo-nos correto o ensinamento do processualista paulista, não pode ser aceita, evidentemente, a assertiva de Renato Montans de Sá, quando alude que “o cuidado do magistrado em modificar a causa petendi próxima repousa na margem de liberdade dada ao julgador para alterá-la sem prejuízo ao processo e ao princípio da adstrição”. (Eficácia preclusiva da coisa julgada. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 109). Repousa aí, na nossa visão, respeitosamente, uma clara contradição. Se os fundamentos legais não integram a causa de pedir, seria inapropriado cogitar-se, por lógica, que a sua alteração pudesse resultar na alteração da própria causa de pedir.

749 FRANCOS, Maria Victoria Berzosa. Demanda, causa petendi y objeto del processo. Cordoba: Almendro,

1984, p. 48.

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Daí a lição de Cassio Scapinella Bueno – com a qual, respeitosamente, não concordamos – quando afirma que “(...) não é necessário que o autro qualifique juridicamente seu pedido, bastando fornecer, com a maior exatidão possível, a origem dos fatos que dão fundamento a seu pedido. (...) Eventuais qualificações jurídicas constantes da petição inicial dever ser, para o nosso sistema, entendidas como meras propostas de qualificação. Não são essenciais e, de resto, não são vinculativas para o magistrado. O réu deve se defender dos fatos constitutivos do direito do autor”. (Curso sistematizado de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 380). É preciso que se recorde que nem mesmo os mais declarados inimigos da teoria da individuação, como Zanzucchi e Gianozzi, reconheciam uma irrestrita possibilidade de o juiz alterar as considerações jurídicas articuladas pelo autor na peça inicial. Este último, em conhecida passagem, fez clara diferenciação entre aquilo que nominou de nomen iuris em sentido estrito e “individualização jurídica da demanda”, negando ser este último conceito “(...) mera qualificazione del fatto costitutivo, ma contenuto essenziale dei petitum, cui il giudice resta vincolato per la regola ne eat judex ultra petita partium”. (La modificazione della domanda nel processo civile. Milano: Giuffrè, 1958, p. 42).

751 HEINITZ, Ernesto. I limiti oggettivi della cosa giudicata. Padova: Cedam, 1937, p. 159.

752 Como lucidamente reconhece Otávio Domit, “(...) há que se definir (...) de modo razoavelmente satisfatório,

um campo de atuação da máxima iura novit curia, estabelecendo, em contrapartida, limites para a sua aplicação. Não apenas, é preciso que seja prescrito um método de aplicação da regra enunciada pelo brocardo, prescrevendo-se forma de exercício desse poder reconhecido ao órgão judicial e estabelecendo-se determinadas condições procedimentais para a sua utilização”. E, à frente, expõe qual seria esse campo limítrofe: “O órgão judicial, na aplicação da máxima iura novit curia, não pode interferir na identificação da situação jurídica para a qual o autor solicita proteção, mesmo que, apreciando o caso, visualize outra situação jurídica potencialmente tutelável, mas não deduzida (afirmada) pela parte demandante. (...) Se a proteção de determinada situação jurídica não foi requerida pelo seu titular, não cumpre ao órgão judicial tomar essa iniciativa. Se o fizer, haverá infração aos arts. 2º. 141 e 492 do Código de Processo Civil, que são o esteio normativo do princípio da demanda no âmbito da legislação brasileira, e será nula a decisão prolatada, por incongruência. (...) Delineado desse modo o problema, tem-se plena possibilidade de perceber que o princípio da demanda é, realmente, um dos mais importantes limites existentes, no direito brasileiro, à aplicação da máxima iura novit curia pelo órgão jurisdicional para alterar a fundamentação jurídica estampada na demanda. Com efeito, quando a modificação da fundação jurídica puder afetar a indicação da situação jurídica tutelável afirmada pelo demandante, fazendo o

Se a causa de pedir é composta pelos fatos e pelo enquadramento jurídico que, na

visão do autor, constitui a consequência jurídica pretendida – dando ensejo, assim, a uma

específica relação jurídica –, nela não se insere o fundamento legal que o demandante entende

incidente à caracterização desta mesmíssima relação jurídica.

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É dizer: se a relação jurídica deduzida pelo autor – e para a qual postula proteção –

está articulada em sua integralidade em artigo de lei diverso daquele apontado na petição

inicial, nada há que se objetar quando o juiz acolhe o pedido deduzido amparando seu

raciocínio em artigo ou mesmo em lei diversa. Desta forma, e somente desta, é que pode ser

validamente compreendida a ideia de que a eventualidade não atinge a fundamentação

jurídica.

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Tal conclusão impõe-se porque, reitere-se, os fundamentos legais não integram a causa

de pedir.

3.5 A ESTABILIDADE OBJETIVA DA DEMANDA, A SUPERVENIÊNCIA DE CAUSAS

JURIDICAMENTE RELEVANTES E A REGRA DA EVENTUALIDADE

Assentada até aqui a premissa de que a causa de pedir integra o objeto litigioso do

processo,

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é natural imaginar, à luz do reflexo que essa circunstância projeta no

ordenamento processual positivo, que algum tipo de freio ao impulso inovador que

normalmente move as partes fosse forjado pelo sistema. Aliás, é corrente a afirmação de que,

processo redirecionar suas atenções para situação jurídica que, embora potencialmente passível de proteção a partir dos fatos narrados, extrapola o objeto da demanda, não será possível ao órgão judicial alçar mão da máxima iura novit curia para acolher o pedido formulado por fundamentos jurídicos não articulados”. (Iura novit cúria e a causa de pedir: o juiz e a qualificação jurídica dos fatos no processo civil brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 286-290).

753 É neste sentido, pois, que há ser interpretada a assertiva de Araken de Assis quando alude que o brocardo iura

novit curia “(...) atribui exclusivamente ao órgão jurisdicional o dever de joeirar os fatos e encontrar a regra

jurídica na qual, supostamente, incidam”. Logo na sequência, lançando luz a esta dedução, afirma que “(...) nessas condições, pondera Arruda Alvim, se mostra lícito ao autor alterar, a qualquer momento, na pendência da demanda, o artigo de lei declinado na inicial, ou, mesmo, ao juiz, acolher a ação se apoiando em lei diversa”. (Cumulação de ações. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 140).

754 Por essa razão, parece-nos mais adequada a lição de José Rogério Cruz e Tucci, sobretudo pela compreensão

a respeito do conceito de fato constitutivo, quando assevera: “Conclui-se, assim, que a mutação da causa petendi admitida ao autor, pelo transcrito art. 264, refere-se, apenas, ao fato particular (fato do réu contrário ao direito afirmado pelo autor), mantido necessariamente inalterado o fato constitutivo, uma vez que este corresponde à gênese do fundamento da demanda, a qual se afigura desnaturada com a descaracterização daqueles”. (A causa petendi no processo civil. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 150).

conforme sejam mais ou menos incidentes estes meios de controle, estaria determinado sitema

processual inclinado a uma maior ou menor rigidez quanto à estrutura procedimental.

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Desta forma, a necessidade de se pensar o procedimento em fases distintas, cada qual

imbuída de objetivos particulares, visa à obtenção de resultados adequados e tempestivos que

encontram na regra da estabilidade da demanda um instrumento poderoso. A experiência

brasileira sempre esteve aberta a essa influência limitativa, uma vez que aqui sempre

encontrou trânsito livre a regra da eventualidade, que impunha às partes, ali e acolá com

alguma variação, a necessidade de concentração das alegações de ataque e defesa já no início

do procedimento.

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Essa contingência, de outro turno, se sempre esteve historicamente vinculada a um

receio de perpetuação do processo, de outro também se mostrou estar em harmonia com a

necessidade de salvaguardar a justiça das decisões, traduzida na previsão pontual de admissão

tardia de alegações pelas partes.

Certamente, uma absoluta e intransigente impossibilidade de os demandantes

complementarem a narrativa processual – prejudicada, por vezes, pela exiguidade temporal e

pela incompletude da própria compreensão do fenômeno material quando do ingresso da

demanda – comprometeria desmedidamente esse ideal de justiça.

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Sem desconsiderar a realidade dinâmica da demanda, alimentada pelo exercício de

poderes e faculdades pelas partes – que o juiz deve controlar no propósito de evitar abusos –,

não se ignora a dimensão diretamente proporcional que o ordenamento processual brasileiro

confere à preclusão.

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756 PINTO, Junior Alexandre Moreira. Sistemas rígidos e flexíveis: a questão da estabilidade da demanda. In:

TUCCI, José Rogério Cruz; BEDAQUE, José Roberto dos Santos (coord.). Causa de pedir e pedido no processo civil: questões polêmicas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 53).

757 TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2002, p. 148.

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Daí, pois, a preocupação de Corrado Ferri: “Ora, se è vero che la speditezza dei procedimenti non può considerarsi, a priori, un bene, poichè diverso può essere al riguardo l’interesse dei litigante, si può tuttavia osservare che dal carattere pubblicistico della funzione giurisdizionale, diretta alla efficace tutela delle posizioni giuridiche lese, sempre discendere, inevitabilmente, l’esigenza di assicurare non solo con giustizia, ma anche com rapidità, la composizione giudiziale di ogni tipo di controversia. Ciò premesso, appare evidente la difficoltà di attuare il principio di concentrazione, cui sopra si è accennato, e di garantire un processo célere, se si ammete, in via generale, l’esercizio del potere delle parti di modificare le proprie domande nuove nel cordo del processo”. (Struttura del processo e modificazione della domanda. Padova: Cedam, 1975, p. 5).

759 Segundo Liebman, em observação à obra de Chiovenda, “(...) no processo brasileiro a preclusão recebe

aplicação ainda maior que no processo italiano, por ser o meio que serve a garantir a observância de dois princípios que herdou do processo comum medieval: o de uma ordem legal necessária das atividades processuais, como uma sucessão de estádios ou fases diversas, nitidamente separadas entre si (...); e o princípio da eventualidade, que obriga as partes a propor ao mesmo tempo os meios de ataque ou de defesa, ainda que contraditórios entre si”. (Instituições de direito processual civil. 2. ed. vol. 3. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 158).

Uma vez que esse instituto de natureza processual está vinculado à regra da

eventualidade,

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que de uma maneira mais ou menos intensa grava a atividade de demandar e

de defender – impondo, pois, um ônus de concentração quanto às matérias de ataque e defesa

– ,

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convém observar de que maneira é tomada em consideração a possibilidade de o juiz

admitir a modificação da causa de pedir no curso do processo.

A fim de se evitar uma artificialidade quanto à resolução do conflito – inviável sem a

previsão de mecanismos de adaptação do procedimento a considerações não só de ordem

processual –, é natural a abertura do sistema à ponderação de circunstâncias fáticas e jurídicas

supervenientes. Ver-se-á, na sequência, como compatibilizar essa imposição com os demais

princípios que inspiram o processo.