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3. A CAUSA DE PEDIR NO DIREITO PROCESSUAL BRASILEIRO

3.4 O CONTEÚDO DA CAUSA DE PEDIR OS COMPONENTES FÁTICO E JURÍDICO

3.5.2 Causas supervenientes: o elemento temporal da causa petendi

Se é correta a compreensão de que, por meio da preclusão, o processo se desenvolve

regularmente dentro da marcha imposta pela disciplina processual, no intuito de evitar

retrocessos

770

e permitir uma linha exegética racional,

771

não é menos verdade que uma

interpretação essencialmente formalística, própria de uma rigidez procedimental absoluta,

tende a enfraquecer o componente idealístico do processo como instrumento voltado à

resolução justa dos litígios.

772

A partir daí, se por um lado não se pode prescindir de balizas mínimas – no

pressuposto de se resguardar as posições processuais que as partes vão galgando ao longo do

procedimento –, é preciso admitir que os institutos processuais que cuidam da estabilidade de

tais posições, como a preclusão e a eventualidade, não podem ser considerados fins em si

mesmos.

773

Se por um lado a ideia de que a preclusão labora para evitar a demora e garantir a

racionalidade dentro do processo, é preciso admitir, por outro lado, que uma relativa abertura

à inclusão de novo material fático-jurídico – sobretudo quando intentado de boa-fé e mediante

revista pelo contraditório

774

– contribui decisivamente para que o processo resolva, na maior

extensão possível, a lide enquanto fenômeno sociológico. Evita-se, com isso, a volta das

partes a juízo para o equacionamento de questões que do processo permaneceram alheias.

775

770 Nesse sentido, Fabio Marelli: “I frequenti ritorni del processo sui propi passi, per effeto di nuove allegazioni e

delle richiesta di nuove prove, magari solo all’udienza fissata per la precisazione delle conclusioni, hanno contributito a determinar ela sempre maggiore dilatazione dei tempi necessari per addivenire all’emanazione della sentenza di mérito”. (La trattazione della causa nel regime delle preclusione. Padova: Cedam, 1996, p. 2).

771 GRASSO, Eduardo. Interpretazione della preclusione e nuovo processo civile in primo grado. In: Rivista di

Diritto Processuale, Padova: Cedam, n.° 3, 1993, p. 639).

772 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 13 ed. rev. e atual. São Paulo:

Malheiros, 2008, p. 265.

773 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo: influência do direito material sobre o processo.

São Paulo: Malheiros, 1995, p. 15.

774

QUIJANO, Jairo Parra. El futuro del proceso civil. In: XV Jornadas Iberoamericanas de derecho procesal. Bogotá: Departamento de Publicacione de la Universidad Extremado de Colombia, set. 1996, p. 462.

775 Com ressalvas a respeito da extensão da eficácia preclusiva da coisa julgada, é correta a lição de Vincenzo

Mariconda: “Un sistema di preclusioni quale quello ipotizzato finirà col divenire un moltiplicatore di processi perchè tutte le modificazioni non consentite nel corso del medesimo processo potranno essere proposte in u

Vê-se, daí, a imperiosa necessidade de adequadamente equilibrar tais interesses em

conflito,

776

realidade que no Brasil, diante de um sistema expresso que bem ou mal equaciona

a questão,

777

serve ao menos de sugestão de lege ferenda. Assim, de ordinário, consolidada a

causa de pedir na fase postulatória, a tentativa de alterar o núcleo fático e jurídico da demanda

implica, mais uma vez, o exercício do poder de ação,

778

com prejuízos diretos à consolidação

do thema dedidendum e, por via reflexa, ao contraditório.

779

Assim não se passa em relação à chamada causa superveniens,

780

contudo.

781

A

exceção está contida no artigo 493 do Código de Processo Civil,

782

que a autoriza o juiz a

sucessivo procedimento (altrimenti vi sarebbe seria lesione dei diritti di defesa)”. (La preclusioni (de) qualificante: la riforma de processo civile. Padova: Cedam, 1992, p. 153).

776 Como lembra Giannozzi, esse processo se fez sentir com bastante intensidade na Itália, particularmente pela

reforma ocorrida no ano de 1950 (Lei 581, de 1950), que alterara o rígido sistema de preclusões inaugurado com o Codice de Procedura Civile que entrou em vigor naquele país em 1942. A alteração implicou na possibilidade, à luz da nova redação conferida ao artigo 183, de as partes modificarem tanto o pedido quanto a causa de pedir, desde que não suplantada la prima udienza de trattazione. (La modificazione della domanda nel processo civile. Milano: Giuffrè, 1958, p. 36). É bem verdade, no entanto, que uma nova alteração viria a correr no sistema processual peninsular por conta da constatação de que a reforma anterior, ao atenuar o prévio regime preclusivo, havia ido longe demais. Conforme informa Fabio Marelli. “Nel disegno della novela del 1990, le preclusioni dovrebbero imprimere maggiore speditezza alle svolgimento del processo, inducendo le parti a formulare tutte le proprie allegazioni di merito e deduzioni istrutorie negli atti introduttivi e ne corso di una fase preliminare a quella della tratazzione del merito, che dovrebbe tendenzialmente esaurirsi nel corso di poche udienze. Il legislatore parrebbe dunque essersi ispirato ad un modelo di trattazione concentrata della causa, al fine di pervenire alla fissazione definitiva delle domande ed eccezioni sottoposte al giudice e dei mezzi di prova offerti dalle parti, prima che abbia inizio la fase nel corso della quale sono assunte le prove costituende e la causa sai sucessivamente rimessa in decisione”. (La trattazione della causa nel regime delle preclusione. Padova: Cedam, 1996, p. 01).

777 Com longa tradição, como se disse, de homenagens à preclusão, que se revelou ainda mais exasperada ao

tempo do Código de Processo Civil de 1939. Neste sentido, Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. Tomo 2. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 401). Basta recordar, por exemplo, que caso o autor descuidasse de formular na petição determinado pedido, não lhe era franqueada qualquer possibilidade de aditá-lo ao processo, restando-lhe apenas o ingresso de nova demanda. Eis a redação do artigo 157 daquele vetusto diploma processual: “Quando o autor houver omitido, na petição inicial, pedido que lhe era lícito fazer, só em ação distinta poderá formulá-lo” (BRASIL. Decreto-Lei n. 1.608, de 18 de setembro de 1939. Código de Processo Civil. CLBR. Rio de Janeiro, set. 1939. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/1937-1946/Del 1608.htm>. Acesso em: 02/02/2018).

778 FERRI, Corrado. Struttura del processo e modificazione della domanda. Padova: Cedam, 1975, p. 117. 779 TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2002, p. 192.

780 Ou, como prefere Ricardo de Barros Leonel, “direito superveniente”, que envolveria a “(...) a compreensão

indissociável (conjunta) de fatos e direitos que sobrevenham (ou sejam invocados) no curso da demanda já proposta, sempre que, com relação a esta, forem aptos a gerar a já referida ‘eficácia jurídica superveniente’” (Causa de pedir e pedido: o direito superveniente. São Paulo: Método, 2006, p. 231).

781 Daí a lição de Pontes de Miranda, no sentido de que a inclusão de uma causa superveniente no curso da

demanda não implica alteração do pedido ou da causa de pedir formulados, já que “(...) a afirmação do fato, como presente, vale para o fato em curso, ou para o fato continuativo, ou para as reiterações do mesmo fato”. (Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo 4. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 16).

782

Em molde aperfeiçoado, transcrição quase que literal do artigo 462 do CPC/73: “Se depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento da lide, caberá ao juiz toma-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a sentença”. E, sob ângulo diverso, também no artigo 342, inciso I, segundo o qual “depois da contestação, só é lícito ao réu deduzir novas alegações quando: I – relativas a direito superveniente (...)” (BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de

levar em consideração, de ofício ou requerimento da parte, no momento da prolação da

decisão, a existência de fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito deduzido no

processo.

Naturalmente, essa válvula de escape prevista pelo sistema leva em consideração a

natureza dinâmica do processo, que nunca, ou muito raramente, acompanha a realidade fática

que presencia a realidade dos litigantes fora do processo.

783

Uma vez que a decisão judicial

deve refletir o estado de coisas conhecido no momento de prestação jurisdicional, a submissão

pelo juiz dessa causa superveniente não deve ser motivo de surpresa.

A existência de limites a essa possibilidade pressuposta também se erige evidente.

Como refere Chiovenda, se não há impossibilidade de a causa superveniente ser tomada em

consideração, é necessário que haja entre essa circunstância e a causa afirmada no processo

um nexo de similitude, porque uma coisa seria a dedução em hipótese de uma causa de pedir,

outra, bem diversa, a sua existência efetiva.

784

Dito de outro modo, há de existir entre a causa superveniente e a causa apontada como

o fundamento da demanda um vínculo assaz estreito que, incidindo, seja capaz de constituí-lo,

modificá-lo ou extingui-lo, pois, do contrário, de outra demanda se cogitaria.

785

A consideração de uma causa superveniente, de outro turno, demandaria reverência ao

contraditório. Ainda que a sentença, reitere-se, deva levar em consideração a situação

efetivamente existente no momento em que proferida, isso não implica reconhecer que o juiz

possa, mesmo admitido a tomá-la de ofício, exercer um juízo di terza via.

786

É dizer, para que

possa tomar em consideração, no momento da decisão, a circunstância superveniente, deve o

juiz proporcionar às partes a possibilidade de sobre ela se manifestarem, a fim de que, em

colaboração, possam influenciar sua convicção, e desta forma concorrerem para a exata

compreensão de seu conteúdo.

2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União. Brasília, DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/-lei/13105.htm>. Acesso em: 13/01/2018).

783 TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2002, p. 176.

784

Instituições de Direito Processual Civil. 3. ed. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 359.

785 Neste sentido, Milton Paulo de Carvalho (Do pedido no processo civil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris

Editor, 1992, p. 158) e José Rogério Cruz e Tucci (op. cit., p. 177).

786 A compreensão de que ao juiz só é lícito decidir quando proporciona previamente às partes o direito de se

manifestarem com influência está positivado, agora, no artigo 10 do Código de Processo Civil, que tem a seguinte redação: “O juiz não poderá decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trata de matéria sobre a qual deve decidir de ofício”. (BRASIL. op. cit.). Sobre o tema, conferir o instigante artigo de Sergio Chiarloni (Questioni rilevabili d’ufficio, diritto di defesa e “formalismo delle garanzie”. In: Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, Milano: Giuffrè, 1987).

Impõe-se neste campo, assim, obediência ao contraditório em sua matriz material,

alinhada não mais ao binômio informação-reação, mas à compreensão de que um processo

verdadeiramente democrático exige, durante todo o iter processual, constante debate

institucional para a boa qualidade da prestação jurisdicional.

787

Isto tudo, por óbvio, impõe a compreensão de que o contraditório, nessa

contemporânea linha interpretativa, esteja vivamente atrelada a um dever de lealdade a

observado pelos sujeitos processuais. Dito de outro modo, o contraditório impõe que entre o

juiz e as partes – e entre elas próprias – viceje um autêntico dever recíproco de eticidade,

sobretudo para que o processo, enquanto instrumento de natureza pública, seja apto a conduzir

a resultados legítimos.

788

À base disso, não pode o processo servir de apetrecho à malícia, ficando à mercê das

partes para a obtenção de resultados que, revestidos de aparente legalidade, carreguem

consigo imanente componente antiético. A regra da eventualidade – atenuada pelo

reconhecimento da existência de causas supervenientes – há de ser especulada, também, sob

este prisma moral, pois, como bem adverte José Frederico Marques, a partir dele são extraídos

“ônus para as partes, com reflexos na fixação da res in judicium deducta e das questões

controversas que devem ser solucionadas na decisão do litígio”

789

.

787 Como bem assevera Carlos Alberto Alvaro de Oliveira: “A faculdade concedida aos litigantes de pronunciar-

se e intervir ativamente no processo impede, outrossim, sujeitem-se passivamente à definição jurídica ou fáctica da causa efetuada pelo órgão judicial. E exclui, por outro lado, o tratamento da parte como simples ‘objeto’ de pronunciamento judicial, garantindo o seu direito de atuar de modo crítico e construtivo sobre o andamento do processo e seu resultado, desenvolvendo antes da decisão a defesa das suas razões. A matéria vincula-se ao próprio respeito à dignidade humana e aos valores intrínsecos da democracia, adquirindo sua melhor expressão e referencial, no âmbito processual, no princípio do contraditório, compreendido de maneira renovada, e cuja efetividade não significa apenas debate das questões entre as partes, mas concreto exercício do direito de defesa para fins de formação do convencimento do juiz, atuando, como anteparo à lacunosidade ou insuficiência da sua cognição”. (A garantia do contraditório. In: Revista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vol. 15, 1998, p. 6).

788

Segundo atinada liação de Antônio do Passo Cabral: “O contraditório não pode ser exercido ilimitadamente. O Estado tem, portanto, o direito de exigir das partes retidão no manuseio do processo – instrumento público –, ao qual está relacionado o dever de atuação ética, de colaboração para a decisão final. (...) Atualmente, ganha vigor a tese de que é dever do magistrado a condução do processo para um palco de discussão e interação constantes. O contraditório é o elemento que fornece ao processo este aspecto discursivo, por força de uma mandamento constitucional do diálogo judicial (Verfassungsgebotzum Rechtsgespräch) entre partes e órgão julgador para a formação do juízo do magistrado”. (O contraditório como dever e a boa-fé processual objetiva. In: Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 126, ago. 2005, p. 3. Disponível em: http://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6adc600000161d62e8 631cf2a9d11&docguid=Ib08d6550f25611dfab6f010000000000&hitguid=Ib08d6550f25611dfab6f01000000000 0&spos=1&epos=1&td=1&context=224&crumb-action=append&crumb-label=Documento&isDocFG= false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1. Acesso em: 15 dez. 2017).

789

MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. 4. ed. vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 1972, p. 164.

Na função de condutor do processo, deve o magistrado censurar com veemência o

exercício incorreto e desviado de uma situação processual,

790

mormente se preordenado a

assegurar, camuflado por estratégias ardilosas, a perpetuação do litígio.

791

Isso explica por que

a regra da eventualidade deve admitir mitigação, nos termos da lei, às reais situações

ocorridas após a dedução da situação jurídica deduzida na petição inicial.

Ainda que cada litigante tenha, por óbvio, interesses contrapostos, há de ser sepultada

qualquer interpretação que encare o processo como um jogo que se opera mediante estratégia.

A tática de guardar “cartas na manga” não se afeiçoa a este componente ético.

Bem visto que, por força de imperativo constitucional – e refletido agora na legislação

processual vigente –, todos têm o direito a resolução dos conflitos em tempo razoável (artigo

4º do CPC), impondo-se também às partes o dever de cooperar para que se alcance esse ideal

(art. 6º do CPC), é no mínimo duvidoso reconhecer que a elas se resguarde o direito de voltar

a juízo para postular – sob fundamento diverso já existente e conhecido ao tempo do ingresso

da demanda primitiva – aquilo que anteriormente lhe fora negado.

Inequívoco, pois, o vínculo estabelecido entre a eventualidade (e sua face preclusiva),

a determinação da res in iudicium deducta e a eficácia preclusiva da coisa julgada. Reserva-se

ao último capítulo deste trabalho a tentativa de articular uma base hermenêutica segura em

torno dessa relação, que leve em consideração, de um só turno, o dever de boa-fé que grava as

partes, a liberdade que lhes é conferida e, finalmente, a necessidade de se pensar o processo

como um instrumento democrático de produção de resultado efetivos.