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3. A CAUSA DE PEDIR NO DIREITO PROCESSUAL BRASILEIRO

3.3 AS TEORIAS QUE PRETENDEM EXPLICAR A CAUSA DE PEDIR

3.3.1 A teoria da individuação e o problema das demandas autodeterminadas e

Inspirada por um sentido que, como se afirmou, teve na Alemanha seus mais

ardorosos defensores, a causa de pedir, segundo a teoria da individuação, seria formada pela

dedução, na petição inicial, da relação jurídica que apoia a pretensão do autor.

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Segundo premissa elementar, em abono à noção de que os fatos teriam uma

importância diminuta nesta empreitada, a causa de pedir demandaria a indicação, como

fundamento jurídico, da relação constitutiva de Direito da qual o autor extrai a consequência

jurídica pretendida,

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ou, melhor dizendo, de uma mera exposição, in status assertionis, desta

relação jurídica.

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635 Que, nada obstante, não são capazes de explicar adequadamente todos os fenômenos em torno do problema,

conforme acentua Juan Monteiro Aroca: “Para explicar la causa de pedir suelle atenderse a las teorias de la individualización y de la substanciación, si bien la poca utilidade de las mismas se evidencia cuando se advierte que ninguna de ellas sirve para explicar todos los supuestos”. (El nuevo proceso civil: Ley 1/2000. Valencia: Tirant lo Blanc, 2000, p. 196).

636 VESCOVI, Enrique. La modificación de la demanda. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, vol. 30, abr./

jun. 1983, p. 209.

637 ASSIS, Araken. Cumulação de ações. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.

136.

638 Segundo Gian Franco Ricci: “Come bem si as, la teoria dell’individuazione encentra l’oggetto de processo sul

diritto fato valere (...)”. (“Individuazione” o “sostanziazone” nella reforma de del processo civile. In: Rivista Trimestrale di diritto e procedura civile, Milano: Giuffrè, vol. 4, 1995, p. 1.228). Também neste sentido, Enrique Vescovi: “En cambio la teoría de la individualización entende que la fundamentación (e identificación)

Daí que, inalterada a relação afirmada pelo autor, não implicava alteração da causa de

pedir – e, portanto, da ação – a modificação dos fatos constitutivos indicados na petição

inicial,

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uma vez que a sentença que compusesse aquela relação estender-se-ia seus efeitos

sobre todos os fatos que, em seu apoio, poderiam ter sido alegados.

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Costuma-se afirmar, desta forma, que os fatos jurídicos, antes de servirem como

critério para caracterizar a causa de pedir, mais auxiliariam, em realidade, a prova do direito

alegado em juízo.

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É bem de ver, no entanto, que a contraposição entre o ponto de vista defendido pela

individuação e aquele segundo o qual os fatos teriam importância decisiva para a formação da

causa de pedir, teve seu âmbito de abrangência limitado a uma categoria própria de ações.

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Bem verificadas as concepções em confronto, não é difícil perceber que ambas apresentam

pontos de contato, mas divergem, precisamente, naquilo que se deve compreender como causa

de la demanda se limita sólo a la exposición de la relación jurídica en la que se apoya la pretensión (divorcio que se solicita, rescisón contractual, daños y perjuicios)”. (La modificación de la demanda. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, vol. 30, abr./ jun. 1983, p. 209).

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Modificação esta que – permitida em razão da menor relevância dada aos fatos, e da ausência de critérios preclusivos rígidos pela revelia à eventualidade – sempre foi vista como obstáculo à célere resolução dos conflitos. Neste sentido, Nicola Picardi chega em falar, até mesmo, em “lides imortais”. (Processo civile: diritto moderno. In: Enciclopedia del diritto, Milano: Giuffrè, vol. 13, 1987, p. 113). Ainda aqui, assevera José Rogério Cruz e Tucci, ao ressaltar a preocupação por celeridade nos ordenamentos em que vigora a máxima da eventualidade: “Os prosélitos da orientação segundo a qual, independentemente da natureza da ação aforada, fazia-se necessária a precisa indicação, na petição inicial, da causa petendi remota e da causa petendi proxima, partiam da idéia de que a demanda judicial deveria ser iniciada contendo toda a matéria litigiosa. (...) toda a matéria de ataque e todas as exceções, processuais ou substanciais, e a indicação dos meios de prova devem ser formulas de uma só vez, sob pena de preclusão. Fica, assim, claro que a estrutura de um procedimento informado pela Eventualmaxime é caracterizada pela exigência de celeridade processual. Com efeito, influenciada pelo sistema processual romano-canônico, a estrutura do processo germânico que vigorou até meados do século passado era marcada por fases preclusivas (Präklusivstadien) bem nítidas, resultando na exigência de serem fixados, já na fase introdutória do litígio, todos os pontos sobre os quais deveria ser produzida a prova”. (A causa petendi no processo civil. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 88- 89). Ainda neste mesmo ponto, Ricardo de Barros Leonel (Causa de pedir e pedido: o direito superveniente. São Paulo: Método, 2006, p. 88).

640 MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A ‘causa petendi’ nas ações reivindicatórias. In: Revista da Ajuris,

Porto Alegre, n. 20, 1980, p. 169-170.

641 TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi na ação de usucapião extraordinária: processo civil,

evolução, 20 anos de vigência. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 160.

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Como refere Augusto Cerino Canova, esta intuição já havia movido Adolf Wach, adepto confesso da individuação, a compreender, já após a entrada em vigor da ZPO, que o contraste entre tais teorias estaria limita ao âmbito das demandas envolvendo direitos reais. (La domanda giudiziale ed il suo contenuto. Torino: UTET, 1980, p. 49). Em sentido contrário, Marco Tullio Zanzucchi (Nuove domande, nuove eccezioni e nuove prove in appello (art. 490-491 CPC). Milano: Società Editrice Libraria, 1916).

de pedir nas ações que envolvem direitos absolutos

643

, chamadas, pois, de demandadas

autodetermiandas.

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Nestas específicas situações, em que a existência de direitos, pelo seu conteúdo, não

poderia subsistir mais de uma vez entre as mesmas partes, a demanda judicial seria

identificada pelo próprio direito feito valer em juízo, não tendo qualquer relevância a

referência ao seu título de aquisição.

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Além dos direitos reais de gozo, estariam

contemplados nesta categoria jurídica os direitos afetos ao status de família e os direitos de

personalidade.

646

A distinção a sugerir tamanha dissimilitude de tratamentos repousaria, segundo Pontes

de Miranda, na carga eficacial do direito subjetivo feito valer, variando conforme a eficácia

desse direito se estendesse a uma pluralidade de pessoas – por vezes totalmente indefinida –

ou a uma única pessoa, geralmente titular de alguma posição jurídica específica.

647

Concentrando atenção na controvérsia a ser resolvida, a coisa julgada, segundo a teoria

da individuação, teria seus limites objetivos alargados ao ponto de acolher todos os fatos

constitutivos aptos, em tese, a gerar a consequência almejada pelo autor, ainda que não

introjetados para debate no processo.

648

Deste modo, v.g., em uma demanda em que se

discutisse a propriedade de determinado bem, a coisa julgada resolveria, em termos

definitivos, toda e qualquer questão referente ao domínio.

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José Ignácio Botelho de Mesquita, embora compreenda que a lei nacional tenha

adotada uma posição temperada entre individuação e substanciação, negou pelo modo mais

coerente e enfático a assertiva habitual de que neste tipo de demanda a causa de pedir

dispensaria a declinação dos fatos constitutivos.

643 Aqueles, na visão de Ricardo de Barros Leonel, que possuem eficácia universal, importando sujeição de todas

as demais pessoas em relação ao respectivo titular. (Causa de pedir e pedido: o direito superveniente. São Paulo: Método, 2006, p. 93).

644 MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A ‘causa petendi’ nas ações reivindicatórias. In: Revista da Ajuris,

Porto Alegre, n. 20, 1980, p. 173.

645 CANOVA, Augusto Cerino. La domanda giudiziale ed il suo contenuto. Torino: UTET, 1980, p. 177. 646

TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi na ação de usucapião extraordinária: processo civil, evolução, 20 anos de vigência. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 117-118.

647 Comentários ao Código de Processo Civil. vol. 4. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 17.

648 RICCI, Gian Franco. “Individuazione” o “sostanziazone” nella reforma de del processo civile. In: Rivista

Trimestrale di diritto e procedura civile, Milano: Giuffrè, vol. 4, 1995, p. 1.229-1.230.

649

DOMIT, Otávio Augusto Dal Molin. Iura novit cúria e a causa de pedir: o juiz e a qualificação jurídica dos fatos no processo civil brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 114. Valendo-se de situação semelhante, também Araken de Assis: “(...) na ação reivindicatória, basta o autor alegar o domínio, pouco importando sua fonte, originária (usucapião) ou derivada (compra e venda)” (Cumulação de ações. 4. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002).

Ao reconhecer – referindo-se particularmente ao domínio – que sob o ângulo do

Direito material um mesmo bem, de fato, não poderia estar subordinado a mais de uma só

relação de propriedade, reconheceu que no campo do direito processual, onde as situações são

tidas, ab initio, em hipótese, a coisa se passa de modo diverso.

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E o fez no pressuposto ideal de que, tendo o direito de ação natureza abstrata, seria de

admitir-se que duas ações podem ser intentadas entre as mesmas partes, fundadas no mesmo

direito de propriedade e visando ao mesmo objeto, de sorte que uma pode, porque realmente

fundada, ser julgada procedente, enquanto outra, pela razão inversa, ser tida por

improcedente.

651

Desta forma, nem as partes, tampouco a relação jurídica ou o pedido, erguer-se-iam

como elementos identificadores completamente hábeis, uma vez que absolutamente idênticos

em ambas as ações. Por isso mesmo, a esses elementos seriam acrescidas, necessariamente, a

afirmação do fato constitutivo da propriedade e a indicação do título de domínio,

constituindo-se, assim, em uma pretensão processual única.

652

Concordando com Heinitz, quando este afirmara que a cada pretensão em sentido

substancial correspondia uma única pretensão em sentido processual, Botelho de Mesquita

negou, contudo, fosse o título de aquisição da propriedade mero meio de prova das razões

alegadas. Para tanto, definiu, com absoluta pertinência, que o fato constitutivo – enquanto

dado a ser confirmado pelas provas produzidas no processo – não pode ser equiparado a um

dado concreto, resultado daquela prévia investigação. Daí, pois, sua aptidão para

individualizar a pretensão da parte.

653

650

“Feita esta distinção, não me parece difícil de se entender que o direito de propriedade, enquanto efetivamente existente, não poder, incidir, a um só tempo, mais que uma única vez sobre a mesma coisa; mas a afirmação da propriedade em juízo, por parte do interessado no reconhecimento de seu direito sobre determinada coisa, essa pode dar-se tantas vezes quantas se queira” (A ‘causa petendi’ nas ações reivindicatórias. In: Revista da Ajuris, Porto Alegre, n. 20, 1980, p. 176).

651 Ibid., p. 177.

652 Consoante assevera José Ignácio Botelho de Mesquita: “A sentença que decidir sobre tal pretensão, a tornará

improponível para o futuro, deixando, porém, em aberto, o caminho para a propositura de nova ação fundada em fato constitutivo não alegado na primeira. Pela mesma razão, a mudança de um fato constitutivo por outro acarretará, necessariamente, a mudança do pedido, que só poderá ser tolerada com o concurso da vontade do réu”. (ibid., loc. cit.).

653 Disse o processualista: “Ninguém porá em dúvida que a prova das afirmações (de fato e de direito) do autor é

indispensável ao julgamento favorável da ação. Mas não se deve confundir a prova do direito alegado, com o fato constitutivo, enquanto meramente afirmado pelo autor”. (ibid., p. 178).

Com a ressalva da tese sustentada por Botelho de Mesquita, procedente em grande

extensão, poderia parecer preferível, sob um ponto de vista processual inspirado em critérios

de certeza e segurança jurídica,

654

uma predileção pela adoção da teoria da individuação.

A tese, no entanto, é refutada por José Maria Rosa Tesheiner, que, revelando simpatia

à teoria da substanciação, reconhece na tese oposta um manifesto componente de

insegurança.

655

Para o processualista gaúcho, essa compreensão passa, em grande medida, por

um distanciamento – quiçá demasiado – do processo em relação ao Direito material, uma vez

que a pretensão deduzida – a res in iudicium deducta – deveria ser avaliada levando-se em

conta apenas o pedido formulado na demanda, à luz dos fatos articulados na petição inicial,

sem qualquer reverência ao componente jurídico, que, assim, poderia ser apreciado e valorado

livremente pelo juiz.

656

Seja como for, é inquestionável a verificação de que também para a teoria da

individuação os fatos teriam influência para a caracterização da causa de pedir nas ações que

tratam de direitos relativos.

657

Ainda que não se possa, à vista do ordenamento processual

vigente, aceitar uma concepção pura da individuação – mesmo que circunscrita às ações reais

658

, é claro que até mesmo seus partidários concordam que os fatos constitutivos são

importantes para a determinação do direito feito valer em juízo.

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654 JARDIM, Augusto Tanger. A causa de pedir no direito processual civil. Porto alegre: Livraria do

Advogado Editora, 2008, p. 79.

655 Também Comoglio, Ferrri e Taruffo, para quem a inconveniência de uma identificação abstrata dos direitos

impunha uma tendência a admitir que o julgador levasse em conta, no momento da decisão, a existência de fatos não deduzidos no processo comprometeria, irremediavelmente, a garantia de defesa. (Lezioni sul processo civile. 2. ed. Bologna: Il Mulino, 1995, p. 255).

656 Três ordens de considerações levariam, segundo o jurista, a essa conclusão: “Criticou-se esse posicionamento,

primeiro, por exigir do autor um conhecimento preciso do direito objetivo, o que a lei não exige; segundo, porque a indicação do autor não tem relevância, já que o juiz incumbe a qualificação jurídica dos fatos; terceiro, por não se lograr identificar a ação, já que da mesma relação podem-se deduzir múltiplas pretensões (...)”. (Eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 44).

657

Definidos por Francesco Santoro Passarelli como aqueles que gozam de uma eficácia irradiante sobre uma ou mais pessoas determinadas, que se acham comprimidos a fazer ou deixa de fazer alguma coisa. (Diritti soggettivi: diritti assoluti e relativi. In: Enciclopedia del diritto, Milano: Giuffrè, vol. 12, 1964, p. 748).

658 Porque, como refere José Rogério Cruz e Tucci, ainda que neste tipo de demanda a causa de pedir emerja

mais tênue se comparada com a complexidade fática que exorna a fundamentação das ações pessoais, nem por isso a afirmação da relação jurídica em torno do título aquisitivo dispensa qualquer referência aos fatos constitutivos. (TUCCI, José Rogério Cruz e. A causa petendi no processo civil. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 247).

659 MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A ‘causa petendi’ nas ações reivindicatórias. In: Revista da Ajuris,

Porto Alegre, n. 20, 1980. Também neste sentido Gian Franco Ricci: “Ed è ancora sul diritto, independentemente dal fato costitutivo invocato, che si forma la cosa giudicata i cui limiti oggettivi assumono pertanto un ambito estremamente ampio, tanto da assorbire qualsiasi ulteriore fato constitutivo non dedotto idoneo a fare sorgere quello stesso diritto”. (“Individuazione” o “sostanziazone” nella reforma de del processo civile. In: Rivista Trimestrale di diritto e procedura civile, Milano: Giuffrè, vol. 4, 1995, p. 1.230).

Em face disso, são corretas as considerações de Heinitz no sentido de que o que

distingue, em verdade, a individuação da concepção oposta repousa menos na valoração dos

elementos de fato e de direito, do que na magnitude com que essa teoria vislumbra a relação

entre Direito material e processo, e, por consequência, os papéis conferidos ao juiz e às partes

no processo.

660

Ver-se-á, na sequência, que esse distanciamento é o que denota personalidade à teoria

da substanciação.