2.2.3 A identificação da demanda a partir da teoria da lide
2.2.3.1 As objeções à teoria da lide como elemento essencial da demanda
Dentre as críticas que se seguiram à obra de Carnelutti, duas delas logram por ganhar
primazia no combate à ideia de lide como polo do objeto do processo. A primeira foi
capitaneada por Piero Calamandrei.
539Em obra que se dedicou a estudar o pensamento de
Carnelutti, Calamandrei negou que a lide pudesse erigir-se como o objeto do processo porque,
sendo possível que apenas parcela dela fosse introduzida no processo – material exclusivo
sobre o qual o juiz deveria se debruçar –, o mais correto seria dizer que àquele conceito
fossem vinculadas apenas as questões da lide.
540Dando desenvolvimento a sua crítica, observou que a lide, enquanto fenômeno
sociológico, tem existência destacada do processo, existindo fora e até mesmo antes dele.
Deste modo, observa que Carnelutti se equivocara ao situar a lide nos três elementos que
argumentava existirem para individualizar a pretensão, pois, estando o processo situado no
mundo jurídico – e não no plano sociológico –, nem sempre haveria correspondência entre a
lide existente no processo e aquela que, podendo ser eventualmente maior, estaria situada fora
538
E explica mediante a exposição de um exemplo: “(...) la ragine di diritto limita l’area della quaestio solo in quanto ne risulti la natura o la misura della pretesa: così se l’attore qualifica giuridicamente la sua pretesa con il diritto di usufruto, tal qualificazione impedisce al giudice di riconscergli la proprietà del bene contesto, perchè l’usufrutto garantisce un godimento temporâneo e la proprietà il godimento perpetuo di un bene; ma il giudice sarebbe libero di accogliere la domanda per una ragione di diritto diversa da quella dedotta dall’attore se com ciò no si altera la natura o la misura dell’interesse fatto valere con la pretesa”. (CARNELUTTI, op. cit., loc. cit.).
539 Segundo narra Cândido Rangel Dinamarco, o debate entre Carnelutti e Calamandrei foi travado em tom
suave, fugindo assim à tônica da polêmica personalidade do primeiro: “Polemizou [referindo a Carnelutti] ainda com Calamandrei sobre o conceito de lide que ocupa posição central em seu sistema e a cuja utilidade sistemática o processualista florentino opunha uma série de reservas. Com este, porém, que era de sua mesma geração, Carnelutti manteve uma linguagem mais elevada e cordial até, sem descer aos ataques pessoais”. (Polêmicas do processo civil. In: ______. Fundamentos do processo civil moderno. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 118).
540 “Se il compito di ‘portare la lite al cospetto del giudice à adempiuto dalla parte mediante la domanda, è certo
che il giudice si trova in cospeto non direttamente della lite quale è fuori del processo, ma solo di quella porzione di lite che si trova messa in evidenza”. (Il concetto di ‘lite’ nel pensiero di Francesco Carnelutti. In: Opere Giuridiche, Napoli: Morano, vol. 1, 1976, p. 222).
da apreciação do juiz.
541Daí o reforço à compreensão de que o verdadeiro objeto do processo,
na lição de Carnelutti, seriam em realidade as questões propostas na demanda.
542Carnelutti retorquiu à opinião de Calamandrei, negando a crítica de que sua teoria
elegera, em realidade, não a lide, mas as questões da lide como o objeto do processo,
afirmando para tanto que, em realidade, seria através da demanda que o juiz é confrontado
com a lide.
543A argumentação de Carnelutti, se por um lado revela uma face ideal do
processo – pelo qual seria da maior conveniência que o instrumento pudesse resolver a lide
por inteira –, não foi capaz de explicar a existência do processo parcial e, principalmente, uma
harmoniosa convivência entre a sentença e a parcela da lide posta de fora do processo.
Ao que parece, tendo o processo, como se disse, uma compreensão estritamente
jurídica – que assim contaminaria, com a mesma natureza, a lide no momento em que nele
ingressasse – não parece haver sentido em diferenciar os processos em “totais” e “parciais”,
porque todos, segundo essa compreensão, teriam feição completa.
544Também Enrico Tullio Liebman, reconhecido processualista italiano com vasta
influência no Brasil, aderiu à crítica direcionada à doutrina da lide construída por Carnelutti,
conquanto tenha reconhecido que o trabalho de seu conterrâneo se constituiu no “mais ousado
esfôrço (sic) feito até hoje para procurar identificar o conteúdo material do processo”
545.
Afirmando que o mérito da causa é o objeto do processo – e que, naquele conceito, o
pedido formulado pelo autor teria a sua pedra de toque –
546, disse Liebman que só em parte a
definição de lide como o mérito da causa formulada por Carnelutti poderia ser aceita.
547Ao
541 Il concetto di ‘lite’ nel pensiero di Francesco Carnelutti. In: Opere Giuridiche, Napoli: Morano, vol. 1, 1976,
p. 221.
542 “I termini del problema che il giudice deve resolver si trovano tutti e soltanto nella domanda, senza bisogno di
andare al di là: quello che c’è al di là delle domanda delle parti, cioè – per restar nell’ordine di idee del Carnelutti – quella porzione di lite che resta nell’ombra perchè non compressa nelle questioni poste dalle parti al giudice, non entra nel processo ed è quindi irrilevante per il diritto processuale”. (ibid., loc. cit.).
543 Lite e processo. In: Rivista di Diritto Processuale Civile, vol. 5, n. 1, 1928, p. 102.
544 “Questa distinzione può avere significato soltanto se si pone il processo in relazione alla lite considerata nel
suo aspetto sociologico o economico o psicologico; ma se si resta nel campo giuridico mi sembra che tutti processi si possano chiamare integrali (...)”. (Il concetto di ‘lite’ nel pensiero di Francesco Carnelutti. In: Opere Giuridiche, Napoli: Morano, vol. 1, 1976, p. 221).
545 O despacho saneador e o julgamento de mérito. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 767, set./1999, p.
5. Disponível em: <http://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid= i0ad6adc500000161d61eda41440bc7de&docguid=I5d370e50f25711dfab6f010000000000&hitguid=I5d370 e50f25711dfab6f010000000000&spos=1&epos=1&td=1&context=93&crumb-action=append&crumb-
label=Documento&isDocFG= false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em: 16 dez. 2017).
546
Ibid., p. 6-12.
547 Ibid., loc. cit. É curioso perceber, no entanto, que em obra diversa, produzida já quando de seu retorno à
Itália, Liebman se afastara dessa definição. Ao dizer que o conhecimento do juiz é conduzido com o objetivo de aferir se o pedido formulado pelo autor é procedente ou não, e que para isso teria ele de analisar todas as questões cuja resolução poderia, direta ou indiretamente, influir em tal decisão, Liebman definiu que o complexo
anuir à objeção lançada por Calamandrei, Liebman afirmou que, como as partes são soberanas
na decisão submeter ao julgamento do juiz os conflitos de interesses surgidos,
548teriam eles,
por maior razão, o poder de trazer ao processo apenas parcela da lide, que, nesta perspectiva,
tornar-se-ia a totalidade do objeto do processo.
549Deste modo, o mérito da causa não poderia assumir a dimensão idealizada por
Carnelutti, mas a exata medida correspondente àquela parte do conflito de interesses a
respeito da qual as partes pediram uma decisão. Como assinalou, para o processo interessa o
que nele for deduzido, e não outros fatos que poderiam ocorrer pelo mundo afora, o que
levaria à conclusão de que o processo e a lide teriam sempre medidas que se corresponderiam
e se sobreporiam exatamente.
550Pode-se concluir, finalmente, em abono às críticas que lhe foram dirigidas, que a
doutrina de Carnelutti apresentou defeitos que o jurista, a despeito do recorrente esforço em
contorná-los, não foi capaz de suficientemente explicar. Seria uma injustiça afirmar, no
entanto, sobretudo à luz do sistema processual brasileiro, que a dogmatização realizada a
partir da noção de lide sociológica e lide jurídica – lapidada pela colaboração de seus
adversários – fosse destituída de valor pragmático.
Ver-se-á, em capítulo específico, que o pensamento de Carnelutti, ainda que não
idealizado para essa finalidade particular, teve um papel importante para a construção do
processo como mecanismo manipresto à resolução integral da lide, conforme a compreensão
de eficácia preclusiva de coisa julgada que esse trabalho reputa por adequada.
Se a crítica de Liebman procede quando refere que o autor é soberano na tarefa de
determinar a parcela da lide que deve ser no processo – a pautar, pela congruência, a função
do juiz na sua resolução –, não é menos verdadeiro que essa escolha ontológica projeta efeitos
importantes não só para a exata compreensão da demanda, mas, sobretudo, para a extensão
dos limites objetivos da coisa julgada.
de questões seria o real mérito da causa. (Manuale di diritto processuale civile. 4. ed. Milão. Giuffrè, 1980, p. 152). Sobre essa questão, que será retomada mais à frente, Araken de Assis reconheceu que o CPC de 1973, ao atribuir ao pedido a condição de mérito e, em vários de seus dispositivos, de objeto do processo, acabara por se afastar da renovada definição de mérito que o mestre italiano proclamara. (Reflexões sobre a eficácia preclusiva da coisa julgada. In: Revista da AJURIS, Porto Alegre, n. 44, nov. 1988, p. 33).
548 Consideração, aliás, que é partilhada por Luigi Paolo Comoglio, Corrado Ferri e MicheleTaruffo, para quem a
decisão de promover o processo é um monopólio, como monopolístico também seria o poder de definir o objeto do processo, ao qual o juiz estaria adstrito. (Lezioni sul processo civile. 2. ed. Bologna: Il Mulino, 1998, p. 237).
549
LIEBMAN, op. cit., p. 5.