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2.2.2 A identificação da demanda segundo a teoria da ação

2.2.2.2 A doutrina pós Chiovenda

2.2.2.2.1 A contribuição e Liebman e o problema das ações concorrentes

Desta contenda tomou parte Enrico Tullio Liebman, dileto discípulo de Chiovenda.

440

Anuindo à ideia matriz de seu mestre, Liebman partilhara a noção de que é a ação que

configura e fixa o objeto do processo.

441

Na mesma toada, seguira a compreensão de

438

Segundo compreende, com razão, Giancarlo Gianozzi, a disputa em relação à definição de fato jurídico a partir destes dois critérios – em realidade um método inaugurado por Chiovenda – representou em solo italiano a disputa que, na Alemanha, inspirara o forjamento das teorias das substanciação e da individualização em relação à causa de pedir. Segundo o processualista: “Tutte le dispute insorte sui concetti di ‘fatto’ e di ‘rapporto giuridico’, traggono origine dalle tradizionali teorie create dalla scienza processualistica tedesca, conosciute sotto il nome di ‘teoria della sostantazione’ e ‘teoria della individuazione’”. (ibid., p. 35).

439 CANOVA, Augusto Cerino. La domanda giudiziale ed il suo contenuto. Torino: UTET, 1980, p. 35. 440 Sobre passagem do processualista italiano pelo Brasil e a influência de seu pensamento para a construção da

moldura processual brasileira, são particularmente expressivas as narrativas de Cândido Rangel Dinamarco (100 anos de Liebman. In: ______. Fundamentos do processo civil moderno. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 33-64).

441 É bem dever, no entanto, que quando Liebman fala em fixação do objeto do processo pela ação, não quer ele

dizer que ela própria, a ação, seja o objeto do processo. Em artigo no qual critica a teoria de Carnelutti segundo a qual a lide seria este objeto, Liebman asseverou ser o pedido o seu móvel: “(...) A afirmação corrente, segundo a qual objeto do processo seria a relação jurídica controversa, evidentemente não satisfaz, porque é o processo que deve averiguar se essa relação existe ou não: ela pode não existir; onde está então o objeto (...). As observações que fizemos acima indicam o papel decisivo que desempenha o pedido do autor na determinação do objeto do processo. A razão é fácil de explicar: o pedido do autor é o objeto do processo. É ele manifestação da vontade dirigida à autoridade judiciária requerendo desta uma atividade de determinado conteúdo. Todo o desenvolvimento do processo consiste em dar a tal pedido o devido seguimento, de conformidade com a lei, e o órgão público se desincumbe de sua função ao proferir os atos com que atende ao mencionado pedido”. (O despacho saneador e o julgamento de mérito. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 767, set./1999, p. 6. Disponível em: <http://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid= i0ad6adc500000161d61eda41440bc7de&docguid=I5d370e50f25711dfab6f010000000000&hitguid=I5d370e50 f25711dfab6f010000000000&spos=1&epos=1&td=1&context=93&crumb-action=append&crumb-label=Docu mento&isDocFG= false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em: 16 dez. 2017). O

Chiovenda de que as ações se identificam em face da existência dos três aedem.

442

Ao

vislumbrar uma necessidade de imposição de limites ao exercício do poder jurisdicional,

pareceu-lhe adequada a análise da questão da identificação da ação, em última análise, para

que se pudesse definir, à luz de uma série de repercussões, qual o material submetido à

cognição do juiz.

Em oposição direta a Francesco Carnelutti, Liebman vislumbrou no pedido o objeto do

processo, negando que a lide, ao menos na compreensão desenvolvida pelo primeiro – o

conflito de interesses qualificado pela pretensão de um dos interessados e pela resistência do

outro –,

443

pudesse presidir a identificação do núcleo do processo porque, assumindo aquela

categoria uma conotação meramente jurídica e não sociológica, ambos teriam “sempre

medidas que se correspondem e sobrepõem exatamente”.

444

Reconhecendo e enaltecendo a limitação do juiz às alegações suscitadas pelas partes, a

conformação do processo, na sua visão, dar-se-ia em conformidade à descrição feita pelo

raciocínio desenvolvido por Liebman parece padecer de um mal irremediável. Quando o processualista afirma que a relação jurídica não pode ser compreendida como o objeto do processo porque é o processo que dirá se ela efetivamente existe ou não, não foi ele capaz de explicar, no entanto, qual o objeto do processo quando o próprio pedido é tido por improcedente. Se a relação jurídica não reúne condições de erigir-se como o objeto do processo por conta desse componente condicional, o mesmo raciocínio haveria de ser empreendido em relação ao pedido, que, enquanto reflexo de um direito, ingressa no processo como mera expectativa. Ao negar a natureza meramente hipotética da relação jurídica – cuja aptidão para figurar como o objeto do processo não é aqui questionada – o processualista italiano distanciou-se da doutrina de Chiovenda, que compreendia a questão em termos estritamente processuais, isto é, compreendendo relação jurídica como mera afirmação, independentemente de sua real existência.

442 LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. 2. ed. Trad. Cândido Rangel Dinamarco. Rio

de Janeiro: Forense, 1985, p. 193.

443 Sistema di diritto processuale civile. vol. 1. Padova: Cedam, 1936, p. 40. 444

Bem vista a questão, percebe-se que a doutrina de Liebman não representou, como se disse, uma negação total de valor ao conceito de lide. A bem da verdade, Liebman não chega a negar que a lide possa assumir a condição de mérito da demanda, mas faz uma ressalva: entende que esta categoria só assume algum valor se compreendida como a porção do conflito que as partes, e particularmente o autor, resolveram trazer ao processo: “Observamos já que o pedido que forma objeto dum processo de cognição admite necessàriamente, pela própria essência de sua estrutura lógica, a possibilidade de dois resultados opostos. O Juiz pode declarar procedente o pedido, dando ganho de causa ao autor; e pode, também, declará-lo improcedente, dando assim vitória ao réu. Tudo depende dos resultados do estudo e do exame da causa. Naturalmente a improcedência do pedido do autor equivale à procedência da contestação do réu, que pediu a rejeição da ação proposta. Pedido e contestação representam dois pedidos em conflito e a função do Juiz consiste, justamente, em julgar qual dos dois é conforme ao direito, concedendo ou negando, em consequência, a medida requerida pelo autor. Êste conflito de pedidos forma a matéria lógica do processo e o elemento formal de seu objeto, ao passo que o conflito de interêsses, na medida em que foi deduzido em juízo, representa seu substrato material. Êste conflito de interesses, qualificado pelos pedidos correspondentes, representa a lide, ou seja o mérito da causa. A lide é aquêle conflito, depois de moldado pelas partes, e vazado nos pedidos formulados ao Juiz”. (O despacho saneador e o julgamento de mérito. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 767, set./1999, p. 6. Disponível em: <http://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid= i0ad6adc500000161d61eda41440bc7de&docguid=I5d370e50f25711dfab6f010000000000&hitguid=I5d370 e50f25711dfab6f010000000000&spos=1&epos=1&td=1&context=93&crumb-action=append&crumb-

label=Documento&isDocFG= false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em: 16 dez. 2017).

autor da situação que, encarada como ilícita, fosse capaz de ser removida pelo

pronunciamento postulado. Neste contexto, situou a causa de pedir como “o fato jurídico que

o autor coloca como fundamento do seu pedido”, ou o “título da ação”, sempre sujeito a

variações segundo as diversas categorias de direitos e ações.

445

Ao dar seguimento ao pensamento que Chiovenda, conceituou os fatos jurídicos –

aptos a substanciar a causa de pedir – como os fatos aos quais o direito associa a constituição,

modificação ou extinção de uma relação ou estado jurídicos, categorizando-os, assim, em

constitutivos, modificativos, extintivos e impeditivos.

446

Para o professor de Milão, em

referência à identificação da ação, era absolutamente necessário que o autor deduzisse todas

as circunstâncias fáticas do caso, não, particularmente, como uma finalidade em si, mas à

vista de uma correta qualificação do fato jurídico que, enquanto categoria una, deveria

constituir-se por inteiro.

Já de volta à Itália, Liebman vivenciou ativamente a mudança de rumos que a

codificação processual civil daquele país sofrera com a alteração operada pela Lei 581, de

1950.

447

Ao amenizar a prevalência da substanciação, a modificação legislativa incentivou uma

parcela importante da doutrina, adeptos da individuação, a voltar a defender que a alteração

dos fatos no curso do processo não ensejava a alteração da demanda.

448

É bem verdade,

contudo, que esse posicionamento não pareceu ter encontrado, naquele momento, eco no

direito legislado, porquanto o próprio artigo 183 do Codice Procedura Civile, já após a

referida alteração, reconhecera expressamente que a modificação dos elementos objetivos da

ação implicava, justamente, a variação da demanda.

Pareceu correta a Liebman, neste contexto, a posição defendida por Salvatore Satta, de

resto anteriormente já consagrada por Chiovenda, segundo a qual a causa de pedir é de

importância capital para individualizar a ação fundada em direito relativo, não aquela

445

LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. 2. ed. Trad. Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 193-196.

446 Ibid., p. 165.

447 Como chama a atenção Giancarlo Giannozzi, o Codice di Procedura Civile de 1942 havia introduzido no

sistema processual italiano a regra da eventualidade, marcada por um forte sistema de preclusões que, a despeito, não chegou a contar com a simpatia de quase ninguém, especialmente da doutrina. Mais de uma década depois, a reforma da código restaurou uma orientação mais afeita à individuação, restabelecendo a possibilidade de as partes alterarem a causa de pedir até a primeira audiência di trattazione. A alteração de sentido ocorreu pela mudança de redação do artigo 183, que ganhara a seguinte redação: “Nella prima udienza di trattazione le parti possono precisare e, quando ocorre, modificar ele domande, accezioni e conclusioni formulate nell’atto di citazione e nella comparsa di risposta”. (La modificazione della domanda nel processo civile. Milano: Giuffrè, 1958, p. 36).

448

COSTA, Sergio. Domanda giudiziale. In: Novissimo digesto italiano, Torino: UTET, 3. ed. vol. 6, 1957, p. 167.

ancorada em direito absoluto, particularmente as controvérsias envolvendo direitos reais, uma

vez que “ogni altro fatto costitutivo (compravendita, successione, ecc) è irrilevante perché à

vano sostanzialmente”.

449

Foram raras até aqui, como se percebe, discórdias conceituais em relação ao

pensamento de seu mestre Chiovenda. A despeito disso, também Liebman parece ter vacilado

em torno da compreensão do conceito de “fato jurídico”, nem sempre presente em sua obra

como uma categoria ligada a uma fattispecie. Essa circunstância fica particularmente clara

quando Liebman aborda o assunto do concurso de ações, em síntese, um tema que deveria ser

analisado, sob sua ótica, no plano do direito material.

450

A concorrência de direitos acarretava, em seu pensamento, uma relação de

dependência e subordinação entre as posições jurídicas, não um reflexo de hierarquização em

que, eventualmente, um pudesse assumir em relação ao outro, mas de autentica

funcionalidade em prol do alcance de resultados práticos. Neste aspecto, diz Liebman, a

satisfação de um dos direitos acabaria por extinguir o outro, porque seria absolutamente

ilógico e inútil valer-se de outra demanda para a mesma finalidade já alcançada.

451

Há aqui, pode-se ver, um corte distintivo importante em relação à obra de Chiovenda.

Enquanto para este a situação acima descrita ensejaria, como seu viu, uma situação de

concurso de normas, Liebman voltou a questão para campo do direito substancial,

reconhecendo que a concorrência de direitos daria ensejo a uma pluralidade de ações, cada

qual autônoma e tutelável separadamente.

452

Ao reconhecer uma dessemelhança em relação

ao sistema romano, que fazia coincidir o direito à ação, disse que, da mesma forma com que

aconteceu com os direitos concorrentes – que se extinguem à medida que um deles logra

alcançar o resultado único pretendido –, também as ações, nesta hipótese, sofreriam o destino

dos direitos a que correspondem.

453

449 SATTA, Salvatore. Domanda giudiziale: diritto processuale divile. In: Enciclopedia del diritto, Milano:

Giuffrè, vol. 13, 1964, p. 824. O próprio Liebman foi expresso neste sentido, ao afirmar que nesta espécie de ação “(...) basta indicar o direito que se afirma existente”. Por outro lado, nas ações envolvendo direitos relativos, “é necessário indicar o fato constitutivo do qual se pretende deduzir a existência da relação jurídica a que ela se refere”. (Manual de direito processual civil. 2. ed. Trad. Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 193-194).

450 Azioni concorrenti. In: Problemi del processo civile, Napoli: Morano, 1962, p. 57.

451 “A identidade de uma certo resultado prático, que se tem o direito de conseguir, corresponde uma pluralidade

de razões para pretendê-lo, as quais, todavia, embora permaneçam autônomas e tuteláveis separadamente, não permitem que se obtenha aquele resultado prático mais de uma vez”. (Manual de direito processual civil. 2. ed. Trad. Cândido Rangel Dinamarco. Rio de Janeiro: Forense, 1985, p. 199).

452 Ibid., loc. cit.

453 É interessante perceber no pensamento de Liebman a viva intenção de reconhecer, mesmo diante da

inutilidade no ingresso das ações concorrentes quando já alcançado o direito perseguido, a independência de cada uma delas, diante mesmo da diversidade dos elementos que a compõem, em particular da causa de pedir.

Como de resto já observara a esmagadora maioria da doutrina italiana, também

Liebman não empreendia valor substancial à mera qualificação atribuída ao fato jurídico,

conquanto reconhecesse admissível a formação de concurso de ações e, por consequência, de

direitos, oriunda de uma fattispecie complexa. Neste caso, tal como a situação anterior, à cada

elemento individual da fattispecie que impusesse à parte uma certa lesão haveria de existir

uma correspondente ação.

454

Ao laborar nestes moldes, também Liebman parecer ter incidido na mesma imprecisão

a que incorrera Chiovenda, ora variando a noção de “fato jurídico” como acontecimento

histórico posto em relação ao pedido formulado pelo autor, ora atribuindo-lhe juridicidade em

função da correspondência a uma determinada fattispecie.

Embora seu pensamento tenha se distanciado do mestre pela predileção, quanto ao

conteúdo da causa de pedir, a um componente mais próximo ao Direito material, é certo que

esse traço assistemático tornou por comprometer a aceitação de sua doutrina.

2.2.2.2.2 A pertinência dos fatos para a caracterização da causa de pedir e, particularmente,