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3. A CAUSA DE PEDIR NO DIREITO PROCESSUAL BRASILEIRO

3.1 A RELEVÂNCIA DA CAUSA PETENDI NO DISCURSO JURÍDICO-PROCESSUAL

3.2.1 A identificação da demanda e de seu conteúdo segundo o Direito material

Conquanto não se negue que a pretensão à tutela jurídica ostente natureza processual,

é preciso não olvidar que a tarefa desenvolvida pelos juízes e tribunais se estabelece mediante

uma alegada relação de Direito material.

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Assim, sob pena de se constituir em atividade apartada da realidade, que efetivamente

atinge as pessoas em suas múltiplas e variadas relações, a atividade jurisdicional deve

encontrar no processo um instrumento apto a levar em consideração essa realidade, no

pressuposto de conferir real efetividade. Como oportunamente afirmou Carnelutti, já aqui

citado, entre o processo e o Direito material há uma relação circular, pela qual o direito serve

ao processo e, ao mesmo tempo, é por ele servido.

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Neste passo, uma vez que a demanda

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no Estado Constitucional tem por escopo

fundamental a tutela dos direitos – assentada a ideia de que o processo existe em função do

Direito material –

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, porque nítida a influência sobre o processo

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, não é possível imaginar

uma metodologia que desconsidere essa forma de organização que inspira, aliás, toda a

sequência procedimental.

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É em função do Direito material deduzido – in status assertionis, evidentemente – que

o processo deve ser encarado como mecanismo de alteração da realidade.

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Isso, por óbvio,

não implica reconhecer a ocorrência de um déficit de autonomia ao direito processual, uma

vez que a íntima relação com o Direito material pressupõe a necessária processualização a que

deve passar o reconhecimento e a realização do direito material.

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Consoante advertência de Lent, já aqui referida, é desarrazoado imaginar – embora isso por vezes possa ocorrer – que alguém vá a juiz postular por tutela jurisdicional sem alegar a titularidade de uma situação material de vantagem. (Contributo alla dottrina dell’oggetto del proceso. Trad. C. Mandriolli. In: Rivista di Scienze Giuridiche, Napoli: JUS, vol. 4, 1953, p. 434).

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Profilo dei rapporti tra diritto e processo. In: Rivista di diritto processuale, Padova: Cedam, vol. 15, 1960, p. 544.

607 Demanda aqui empregada como ato de ir a juízo provocar a atividade jurisdicional, em oposição à

compreensão de “demanda-conteúdo”. Assim, Fredie Didier Júnior (Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17. ed. vol. 1. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015, p. 286).

608 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Teoria e prática da tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Forense,

2008, p. 94.

609 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e processo. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2011, p. 16.

610 FAZZALARI, Elio. Note in tema di diritto e processo. Milano: Giuffrè, 1957, p. 109.

611 MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A ‘causa petendi’ nas ações reivindicatórias. In: Revista da Ajuris,

Porto Alegre, n. 20, 1980, p. 176.

Deve-se concluir, assim, que a demanda pressupõe a existência da afirmação feita pelo

autor em relação a um direito substancial, revelando-se, por consequência, no atto in cui il

diritto sostanziale è affermato.

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Destituída desse conteúdo, a demanda representaria um

nada jurídico, um elemento desprovido de conteúdo, ou, como refere Fredie Didier Júnior, um

recipiente vazio.

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Para o Direito processual nacional, portanto, não tem qualquer aplicação e valia a

teoria de Schwab

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que, ao atrelar à noção de pretensão processual um componente desligado

de uma situação jurídica concreta, promove uma completa e inoportuna cisão entre processo e

Direito material.

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Essa compreensão traz subjacente a ideia de que ao autor incumbe, na

petição inicial, apenas a tarefa de descrever os elementos de fato para que o juiz possa, então,

a partir deles, compreender o pedido formulado.

Deste modo, não parece adequado o pensamento de Liebman quando, negando à

relação jurídica controversa o cerne do objeto do processo, afirmou que a demanda careceria

de objeto quando o juiz reconhecesse, na sentença, a inexistência da relação afirmada.

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A

mesma glosa pode ser atribuída a quem enxerga inexistência de objeto litigioso, segundo esta

perspectiva, na ação declaratória negativa.

A questão aqui impõe uma mudança de visão quanto ao Direito ou à situação

substancial que se imagina ser tutelada. Uma vez que a lei brasileira, como de resto a maioria

dos ordenamentos processuais, antevê a possibilidade de o juiz se pronunciar, em ação

declaratória, sobre a existência ou inexistência ou modo de ser de uma relação jurídica, a

pretensão processual – dotada, pois de objeto –, só pode ser constituída pela declaração de

uma relação de Direito material que, controvertida, alega-se inexistente.

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Por outra, o que se pretende, em hipóteses que tais, é o reconhecimento de inexistência

de uma relação jurídica que outrem, ao contrário, alega existir, não, evidentemente, a

613 MANDRIOLI, Crisanto. Riflessioni in tema di petitum e di causa petendi. In: Rivista di diritto processuale,

Padova: Cedam, vol. 3, 1984, p. 470.

614 Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de

conhecimento. 17. ed. vol. 1. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015, p. 286.

615 Assim também entende Araken de Assis, uma vez que aquela teoria “(...) se mostra inconciliável, totalmente,

à disciplina legal vigente no direito brasileiro, face aos termos do art. 301, § 2º [agora art. 337, § 2º, do CPC/15]”. (Cumulação de ações. 4. ed., rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 117).

616 CANOVA, Augusto Cerino. La domanda giudiziale ed il suo contenuto. Torino: UTET, 1980, p. 131. 617 O despacho saneador e o julgamento de mérito. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 767, set./1999, p.

6. Disponível em: <http://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid= i0ad6adc500000161d61eda41440bc7de&docguid=I5d370e50f25711dfab6f010000000000&hitguid=I5d370 e50f25711dfab6f010000000000&spos=1&epos=1&td=1&context=93&crumb-action=append&crumb-label= Documento&isDocFG= false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em: 16 dez. 2017).

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Neste sentido, Alfredo Buzaid. Da ação declaratória no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 147.

ocorrência de fatos, revelando-se correta, por consequência, a lição de Alfredo Buzaid

quando, citando Rosenberg, asseverara que o objeto da ação e da sentença declaratória é um

direito ou uma relação jurídica.

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A partir disso, isto é, da afirmação do objeto litigioso do processo como relação

jurídica meramente afirmada, não pode haver dúvidas, à luz do princípio dispositivo, de que

as partes têm o monopólio do poder de trazer ao processo a totalidade desta mesma relação

jurídica que o juiz deverá resolver segundo as alegações suscitadas pelos sujeitos

processuais.

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A parcela da realidade, ou, para usar de um pensamento carneluttiano, da lide, que

ficara de fora do processo não importa ao juiz ou às partes, uma vez que o desenvolvimento

da relação processual, segundo as alegações e defesas colhidas por elas será guiada,

exclusivamente, pelo material introduzido pela e na demanda.

É, pois, a alteração de um ou de alguns dos elementos trazidos à realidade processual

que implicará a alteração da demanda, ou autorizará, em reverso, que outra demanda seja

proposta em paralelo, sem que se possa alegar, com validade, a exceptio res iudicata.

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Deste modo, o cerne da demanda se concentra na afirmação de uma situação jurídica

deduzida pelo ato introdutório da demanda, cuja dimensão corresponderá, excluída toda a

parcela de controvérsia deixada de fora do processo, ao próprio conteúdo da ação.

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Da ação declaratória no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 147.

620 Segundo Augusto Cerino Canova, a demanda distancia “una delle situazioni che ricompongono il rapporto, la

astrae dalle altre per farne l’oggetto del processo e segna con questo i contorni della attuale controvérsia (...) ciò che viene fato valere in giudizio sono una o più tra le situazioni elementar in cui si fraziona il complessivo rapporto tra le parti, poichè ciascuna situazione forma il contenuto minimo del processo”. (La domanda giudiziale ed il suo contenuto. Torino: UTET, 1980, p. 138).

621 Na visão de Araken de Assis, “(...) a par da dimensão subjetiva, o objeto do processo se forma através do

pedido e da causa de pedir. (...) o efeito principal exsurge do fato de que a alteração de qualquer elemento distinguirá, de uma vez por todas, uma ação da outra; e, destarte, duplicando uma desses elementos, dentro do mesmo processo, haverá cúmulo de ações”. (Cumulação de ações. 4. ed., rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 124-125).

622 É importante ressaltar, uma vez mais, que a compreensão acima deduzida não tem aplicabilidade, como temos

defendido, à eficácia preclusiva da coisa julgada. A compreensão de uma eficácia preclusiva da coisa julgada em perspectiva elástica – a única que a nós parece consentânea à dignidade constitucional conferida à coisa julgada – tem aptidão de consumir, após o trânsito em julgado, todas as causas de pedir não deduzidas na demanda originária, Essa conclusão está em consonância com entendimento de Araken de Assis, segundo quem “(...) o vão intento de empregar o processo uma única vez, embora a lide pré-processual não seja integralmente reproduzida pelo pedido, extinguindo de vez o conflito entre as partes, resultou no art. 474 [correspondente ao artigo 508 do CPC/15]. Este dispositivo conferiu uma eficácia preclusiva à coisa julgada que, abrangendo causas de pedir omitidas – além de exceções, que competem ao réu –, atingirá inclusive as ações não propostas pelo autor”. (ibid., p. 126).

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Ainda segundo Crisanto Mandrioli: “(...) ci accorgiamo che il problema centrale dell’individuazione dell’azione o dell’oggetto del processo consiste nell’esaminare quale parte, quale setore della complessa e multiforme realtà giuridica sostanziale che è il diritto che si fa valere è entrato nel processo attraverso il filtro della domanda per adattarsi allo schema giuridico che ispira e qualifica la domanda stessa”. (Riflessioni in tema di petitum e di causa petendi. In: Rivista di diritto processuale, Padova: Cedam, vol. 3, 1984, p. 468).

A tarefa de bem identificar a ação, contudo, não prescinde de uma exata verificação a

respeito do conteúdo da causa de pedir, e do enlace que os elementos fáticos e jurídicos

representam para a sua dimensão. Como já mencionado, dessa tarefa decorrem consequências

cruciais para uma série de institutos processuais.