• Nenhum resultado encontrado

A Circular Fundadora da Sociedade Nacional de História

CAPÍTULO III – Apontamentos sobre a Sociedade Nacional de História: Instituição Criadora da Revista de História

3.1. A Circular Fundadora da Sociedade Nacional de História

Em 1911, personalidades tão diversas como: Cristóvão Aires de Magalhães Sepúlveda, então secretário de segunda classe da Academia de Ciências de Lisboa e professor de História da escola do exército; David Lopes, professor da Faculdade de Letras de Lisboa e sócio correspondente da referida Academia; José Leite de Vasconcelos, sócio efectivo da agremiação das ciências supra- citada e director do Museu Etnológico Português, juntaram-se na redacção, subscrição e publicação de uma circular destinada aos profissionais de História de todo o país com o intuito de, através dela, lançar e divulgar as bases de uma instituição denominada Sociedade Nacional de História. Um breve relance sobre o perfil profissional de cada um dos envolvidos permitiu a Luís Reis Torgal afirmar que Fidelino de Figueiredo é essencialmente um poligrafo, enquanto as restantes personalidades se dedicam a áreas mais circunscritas do saber: «Todavia, Fidelino de Figueiredo não foi propriamente um historiador, entendendo a História no sentido estruturado e duro do ofício. Foi sim um intelectual polimorfo: um romancista, um crítico literário, um ensaísta, um filósofo e um teórico da História, um intérprete da realidade presente, mas também um historiador da literatura, área em que se iniciou muito jovem. [Sobre Cristóvão Aires, David Lopes e Leite de Vasconcelos, Torgal diz o seguinte, agregando-os] (…) Eram três intelectuais com tendência para a especialização, mas que ao mesmo tempo viam a História numa perspectiva filosófica, tendendo para as grandes sínteses e para a interdisciplinaridade»222

A circular que deu origem à Sociedade Nacional de História defende a ciência de Clio como a conjugação da crítica e interpretação da realidade fidelinianas com a construção de um sentido filosófico e de sínteses, sendo encarado o documento fundador enquanto instrumento indispensável da consciência individual e colectiva. Veremos se estas características estão presentes na prática da agremiação, revelando, em caso afirmativo, a relação de forças existente. Torna-se curioso verificar que todos os autores citados, com a excepção de Fidelino de Figueiredo, pertenciam, à data de realização da circular, à Academia das Ciências de Lisboa, alguns em posição de destaque. Talvez por

222 Luís Reis Torgal – Sob o signo da Reconstrução Nacional, Fidelino de Figueiredo e a Sociedade Nacional de

História. In Luís Reis Torgal e José Maria Amado Mendes e Fernando Catroga (org.) – História da História em

isso, e para não duplicar instituições e evitar concorrência ou redundância de propósitos e objectivos, resolveram criar uma sociedade, de modo a contornar colisões de interesses e melindres pessoais. Note-se que a secção de letras da Academia de Ciências também se dedicava à História, mas numa linha enciclopédica e omnívora, confundindo-a com a memorialistica, a literatura, a filosofia, numa perspectiva humanista em sentido amplo, daí que convinha respeitar os respectivos trabalhos de inventariação e catalogação do património documental e histórico, compaginando essa experiência acumulada com um entendimento da História como disciplina autónoma, portadora de temas menos amplos, objectos mais circunscritos e métodos próprios, distintos dos praticados nas ciências naturais e centrais face aos das outras ciências que se pretendiam humanas.

O debate da Historiografia actual em torno da História como disciplina e profissão é bastante elucidativo, dado que alguns historiadores defendem que, nalguns países da Europa, como a França, foram as academias que, a partir do século XVII, encetaram, aceleraram e consolidaram o processo de legitimação, institucionalização e certificação de saberes, nomeadamente historiográficos. Outros sustentam que, embora aquelas tenham funcionado como catalisadores da

cientificação, a profissionalização, que conferiu estatuto de cientistas aos

historiadores, deu-se através das universidades, com frequência e intensidade a partir de meados/finais do século XIX. Pelo meio, e por isso tendencialmente híbridas, surgiram, desde os inícios do século, as Sociedades Nacionais. Tendemos a conciliar ambas as leituras, dado que pretendemos confirmar se a Sociedade Nacional de História portuguesa partilha ou enferma de certo hibridismo referido, sendo difícil defini-la.

A circular em vertente análise parece solidária de uma transição entre as Academias e as Universidades. Blandine Barret-Kriegel, defensora da primeira hipótese de institucionalização da História, radicando-a nas academias beneditinas do século XVII, de Saint-Maür, reconhece: «Les héritiers de l’histoire savante aux XIXe et XXe siècles, en avouant la dette qu’ils ont contactée avec elle, definisssent son innovation comme un processus de production des archives»223.

Esta herança não se encontra explícita no documento em questão, mas nele defende-se o respeito escrupuloso pela exegese documental como uma das vertentes centrais no ofício de historiador. Contudo, os proponentes do documento, pelo simples facto de o fazerem, incorporam essa linhagem cultural

da Academia de Ciências de Lisboa, sem a mimetizá-la. Curioso o silêncio e a

ausência de qualquer referência à Academia Real da História Portuguesa, fundada por D. João V.

O documento fundador da Sociedade Nacional de História foi publicado em Abril de 1911, no número quatro da vigésima nona série do Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa. A fonte em vertente análise evidencia, pela sua natureza, dado que se trata de uma circular, a necessidade de se constituir como um meio de comunicação rápido e abrangente, de forma a contribuir para a transmissão e disseminação eficaz da mensagem, cujo núcleo se situa na resposta institucional ao isolamento e à dispersão dos historiadores, acrisolados nos esforços individuais relativos à consolidação da respectiva erudição, sem terem oportunidade de dar a conhecer, num espectro alargado, os respectivos trabalhos e não dispondo também de uma instância reguladora da qualidade científica das investigações e promotora de debate e troca de impressões entre intelectuais. A criação da Sociedade Nacional de História pretende colmatar essas lacunas, ou pelo menos atenuá-las, uma vez que materializa o espaço público de convívio e intercâmbio entre os seus futuros membros e o meio social mais amplo a que estes pertençam, influenciando-o e sendo por ele condicionados ou afectados. A Sociedade Nacional de História efectua um esforço de constituição de um meio científico que congregue os cultores de Clio e faça deles uma comunidade, de modo a enfrentar e reverter o seguinte quadro: «Dispersos por vários pontos do país ou recolhidos em isolamento (…), existem varios profissionaes de sciencias historicas; sem o favor do publico, sem a discussão, portanto construindo benedictinamente obras que quasi passam sem exercerem acção social e sem contribuirem para o progresso dessas sciencias, como lhes cumpria»224

Estas palavras inauguram o documento fundador da Sociedade Nacional de História e constituem uma declaração de intenções, pelo tom assertivo e pela concepção de História veiculada na mensagem, segundo a qual a erudição, desvinculada de um meio social, cultural e científico envolvente, se encontra incompleta e amputada. O estrito investimento na acumulação de saberes, e na cognição histórica obtida por essa via, resulta, alegadamente, estéril.

224 Cristóvão Aires [et al] – Sociedade Nacional de História. In Boletim da Academia de Sciencias de Lisboa, 29.ª

Série, n.º 4,Lisboa, 1911, p. 120.