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Educação, cultura e meio sócio-cultural lisboeta durante a I República (1910-1926)

de História

Capítulo 1 − Enquadramento Histórico Nacional da Revista de História

1.2. A Primeira República (1910-1926)

1.2.6. Educação, cultura e meio sócio-cultural lisboeta durante a I República (1910-1926)

Desde o primeiro governo provisório, foram realizadas reformas relevantes nosso diversos graus de ensino. O infantil ganhou autonomia, enquanto o primário se tornou gratuito e obrigatório entre os 7 e os 10 anos, revelando a preocupação de se tornar acessível a todos e universal, massificando-se. O ensino Primário dividiu-se em elementar, complementar e superior, embora este último nunca se tenha generalizado,

120 Luís Farinha – Ditadura ou Revolução? A herança política e os caminhos incertos dos herdeiros da I Republica. In Comunicação e Cultura, n.º 8, Imagens da República. Lisboa: Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da

Universidade Católica, 2009, p.106.

evidenciando avanços e recuos, devido à escassez de meios materiais, generalizada a todo o projecto educacional que, embora nem sempre tenha conseguido a implantação almejada, registou progressos assinaláveis, mormente a nível da configuração legislativa inovadora. O ensino primário era descentralizado, cabendo aos municípios, concertados com os governos, a sua gestão e administração. O número de escolas e professores não deixou de aumentar ao longo de todo o período republicano. Ao nível da instrução secundária tentou-se aproveitar as infra-estruturas e o espírito da reforma de Jaime Moniz, levada a cabo entre 1894 e 1895, ainda durante a Monarquia Constitucional. O ensino Superior, por seu turno, sofreu um grande impulso. Foram criadas novas universidades em Lisboa e Porto, acabando assim o monopólio de Coimbra nesta matéria. Acresce que também se assistiu ao surgimento de diversas faculdades, nomeadamente as de Letras de Lisboa e Porto, aquela na sequência da extinção do Curso Superior de Letras que aí existira, onde Fidelino de Figueiredo e alguns colaboradores da Revista de História se formaram. Note-se que uma das primeiras notícias da Secção de Factos e Notas da Revista de História, no ano de estreia, respeita à criação recente das Faculdades de Letras, às quais são opostas resistências, subtis e discretas mas efectivas, colocando-se em causa a novidade constituída pelas escolas normais e a massificação no acesso ao processo de ensino - aprendizagem.

Num plano mais informal e menos institucionalizado, mas ainda na senda da contestada democratização cultural, convém assinalar a criação das Universidades Livres (1912) e Populares (1913). A publicação dirigida por Fidelino de Figueiredo regista, de modo fugaz, as primeiras, mas omite as segundas, por ser adversário da massificação.

Passamos agora a analisar sumariamente o meio sócio-cultural de Lisboa entre 1910 e 1926, muito concentrado em torno do Chiado e da Academia de Ciências de Lisboa, por onde tinham que passar aqueles que quisessem deter um poder cultural e político assente numa base literária. No entender de Luís Trindade, durante a década de 10, a «Coincidência entre o literário e o político deu à forma como o jovem Fidelino (de Figueiredo) entrou no campo (literário) uma posição (política) (…). Em 1910 publicara uma História da Crítica Literária em Portugal. Ainda durante esta década dirigiu a Revista de História (com especial atenção para a História literária) e publicou uma História da Literatura Realista em 1914 [fora do periódico mas nele publicitada], que completava a síntese geral, iniciada nos volumes anteriores. Como crítico ocupava um lugar influente na leitura e avaliação da realidade. Tanto mais que essa leitura literária implica (…) avaliações eminentemente políticas. A posição crítica face ao liberalismo deu-lhe um lugar no Sidonismo, por que se entusiasmou de forma muito

idêntica àquela que levou Agostinho [de Campos] a aproximar-se de João Franco. Fidelino, durante o consulado de Sidónio Pais dirigiu a Biblioteca Nacional, onde também procurou levar a cabo algumas reformas»122. Ora, pela análise dos índices,

percebe-se que a História e a Crítica Literária ocupam um lugar significativo na Revista

de História, mormente através da pena de Fidelino de Figueiredo123.

Quando afirmámos que Fidelino de Figueiredo não abordou o Sidonismo na

Revista de História estávamos a referir-nos ao assunto numa perspectiva histórica e

política, enquanto objecto de artigos científicos. Todavia, concordamos com Luís Trindade, dado que, ao escrever sobre História e Crítica Literária, Fidelino e os seus colegas estão a intervir politicamente, de modo subtil, indirecto, nas entrelinhas, mas não deixam de comentar o meio sócio-cultural ao qual pertencem, ou querem pertencer. A recusa aparente da política, num plano histórico, doutrinário ou panfletário, não deixa de ser uma forma activa de participação, encapsulada, insinuada e insinuante, mas efectiva. Esta ideia corresponde a uma hipótese a confirmar ao longo desta dissertação124. O periódico dirigido por Fidelino de Figueiredo

procura a proto-cientificação da História e da Literatura, sem perder de vista a política concreta. Se no caso do Sidonismo o faz de modo subreptìcio nas páginas da publicação, estas servirem para fazer pressão político-cultural relativamente explícita, ainda que sob a égide da erudição histórica, anteriormente, em 1915, quando aí publicou um artigo sobre a Academia de Sciências de Lisboa125.

Luís Trindade descreve o contexto da publicação deste artigo e ajuda a entender quanto nele se entrelaçam a política, a literatura, a cultura e a posição sócio- profissional do autor visado: «(…) 1915 foi ainda um ano importante para Fidelino de Figueiredo. Fidelino ainda não trabalhara com Dantas. Pelo contrário, Dantas apoiou, nesse momento, a entrada do director da Revista de História na Academia [de Ciências de Lisboa]. Menos de uma década depois da sua própria entrada jà estava em condições de desempenhar para os mais novos o papel que Lopes de Mendonça desempenhara para si. Em plena experiência ditatorial de Pimenta de Castro escreveu na sua revista um artigo sobre a História da Academia das ciências onde procurou associar essa curta experiência autoritária à libertação da instituição após meia década de perseguições republicanas. Dantas escreveu o parecer que transformava o crítico em académico. Parecer sóbrio, ao contrário do que era habitual. Ai elogiava a capacidade de trabalho, garantia um futuro de êxitos, mas marcava também algumas

122 Luís Trindade – O estranho caso do nacionalismo português, o salazarismo entre a literatura e a política. Lisboa:

Instituto de Ciências Sociais, Outubro de 2008.

123 No oitavo capítulo desta dissertação analisaremos a presença deste tipo de conteúdos no periódico. 124 Mormente nos capítulos destinados à análise de conteúdos da Revista de História e à sua caracterização.

125 Cfr. cap. seis desta dissertação. O artigo escrito por Fidelino de Figueiredo é, na aparência, essencialmente

distâncias quanto às suas posições e métodos. As distâncias começaram a acentuar- se pouco tempo depois»126.

O distanciamento progressivo entre Júlio Dantas e Fidelino de Figueiredo teve parcialmente lugar nas páginas da Revista de História, por parte do Director do periódico que, nos seus Estudos de Literatura Contemporânea, historia obras de Antero de Figueiredo e de Júlio Dantas, demonstrando aí reconhecer valor a ambos mas expressando maior afinidade com o estilo literário daquele. Na prática, não estão apenas, nem sobretudo, em jogo questões de História literária, embora sejam importantes. Estão em causa estratégias de ascensão no campo literário e cultural lisboeta. Fidelino de Figueiredo elogia Antero de Figueiredo, mas parece situar-se a meio de caminho entre o neo-Garrettismo deste – materializado no respectivo apego às tradições – e a mundanidade de Júlio Dantas, que parece querer disputar, sendo o órgão de Informação e Comunicação da Sociedade Nacional de História/ Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos um palco para essa disputa.

Conforme esclarece Luís Trindade: «Fidelino escreveu sobre os dois escritores que, em seu entender, eram mais influentes na literatura portuguesa de então: Antero e Dantas. Influentes, como ficava depois claro, por motivos antagónicos (…). Contra a tendência dominante da literatura nacional, ora excessivamente decadente, ora demasiado crua, Antero alcançava um equilíbrio onde aliava a capacidade de síntese própria do século XX a um espírito amoroso mais tradicional»127. Pelo contrário, na

perspectiva fidelinaina, Dantas exibiria superficialidade gentil, galanteria». Sublinhe-se que pretendemos testar, no presente trabalho, a tese segundo a qual Fidelino de Figueiredo distancia-se, na Revista de História, do estilo sedutor, imediatista, de Dantas. No entanto, ambos têm consciência de que o horror partilhado à massifcação incipiente dos públicos deve ser enfrentado, no caso do periódico através de uma linguagem sóbria, discreta, através da qual a elite se protege a si mesma, ancorando- se numa proto – cientificidade que impede a turba de a ela aceder, mas não nega a existência desta fora desse circuito fechado128. Essa negação era apanágio de Agostinho de Campos. Fidelino contrariava-a. No entanto, a sua contundência estava reservada para Júlio Dantas. Mas exibiu-a fora da Revista de História, condensando-a na obra Como Dirigi a Biblioteca Nacional. Este trabalho constitui uma defesa fideliniana do trabalho aí efectuado durante o consulado sidonista. Terá considerado que o espaço e a respiração de um livro são mais amplos de que os de um periódico

126 Luís Trindade – O estranho caso do nacionalismo português…, pp. 155-156. 127 Ibid., p.156.

128 Sobre este assunto ver o derradeiro capítulo desta dissertação, dedicado à caracterização da Revista de História,

que, pela sua natureza, era mais proto – científico do que lugar central de contundências.

Entre 1919 e 1926, assiste-se, no meio cultural constituído pelo Chiado lisboeta, a uma progressiva substituição da liderança de Júlio Dantas pela crescente influência do idealismo racionalista de António Sérgio e, noutro sentido, do Modernismo de António Ferro129. No entanto, este era olhado com desconfiança e

algum medo pelos cultores do neo Garrettismo, que até 1923 tinham bastante poder. Acontece que Sérgio começou a entrar no espaço cultural que lhe era hostil através de uma Revista que dirigiu, denominada Homens Livres, onde também colaboravam Integralistas. Entretanto, em 1924, Fidelino de Figueiredo dirigiu-se aos seus inimigos num romance autobiográfico, datado de 1925 no qual se faz passar por um alter-ego, Luís Cotter, e «procurava alcançar dois objectivos: situar-se numa genealogia e ajustar contas com os medíocres campos literário e político»130. Em finais de 1925, Fidelino de

figueiredo, em cumprimento de um cosmopolitismo que alguns lhe reconheciam, rumou à Universidade de Madrid, onde foi convidado para leccionar Literatura Portuguesa. Entretanto, tentou envolver-se em movimentos radicais de direita, arquitectando, uma ultrapassagem, pela Direita, do Golpe Militar liderado por Gomes da Costa em 28 de Maio de 1926. Essa ultrapassagem foi abortada, votando ao insucesso a revolta dos Fifis, tentada em parceria com Filomeno da Câmara. A Revista

de História não foi publicada em 1927, saindo no ano seguinte um número conjunto

correspondente àquele ano e ao de 1928, data do fim da publicação.

Entre 1926 e 1933, o Chiado já não era, definitivamente, controlado por Júlio Dantas: «O momento da transição política para o autoritarismo corresponde a uma profunda redefinição do campo literário. O universo da escrita estava, entretanto, já completamente autonomizado do político As novas arrumações deram-se no próprio Chiado. No essencial, a incorporação do nacionalismo literário pelos mecanismos vigentes da cultura de massas, sobretudo do jornalismo, implicou uma distinção «oficial» entre escritores e jornalistas. Significou isto, como procurei defender, que o nacionalismo foi o resultado visível do processo de transformação do campo literário, face à massificação do espaço público. A coincidência entre a inscrição social e política de uma ideia literária e a especialização profissional dos trabalhos de escrita indiciou esse alargamento. As lutas laborais dos jornalistas e outros profissionais da imprensa agudizaram-se»131.

A escrita na Revista de História parece ter tentado autonomizar-se do campo político imediato, sob a égide da proto-cientificidade, engendrando, na Secção de

129 Cfr. Luís Trindade – O estranho caso do nacionalismo português…, pp. 152-226. 130 Ibid., p. 38.

Artigos, uma intervenção política indirecta, através da cultura científica, longe da

cultura geral e da forma de jornalismo atenta ao fait divers, ainda que o quotidiano

científico compareça na Secção de Factos e Notas e o bibliográfico tenha lugar na de Bibliografia. Acresce que o periódico dirigido por Fidelino de Figueiredo parece não ter promovido extensamente o nacionalismo literário, para além dos limites já considerados, constituidos por estudos fidelinianos ou de Fernandes Costa (também membro da Academia de Ciências) sobre Antero de Figueiredo, ou os do director acerca de Júlio Dantas, sempre sob a égide da proto – cientificidade e da certificação científica, ficando a pura criação e inventividade literária longe das páginas da publicação, onde o nacionalismo é cultural e historicista, subordinando-se às codificações de uma incipiente certificação científica.

Contudo, através da História, da tradicional político-literária, à dos Descobrimentos, a Historiografia praticada no órgão de informação e comunicação da Sociedade Nacional de História/ Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos mantém certas ressonâncias do contacto com alguns dos ideais sócio - culturais presentes nalgumas correntes literárias neo-românticas vigentes entre 1910 e 1926, estudadas por José Carlos Seabra Pereira: «Ao arrepio da herança anteriana [De Antero de Quental] e da paideia sergiana, como Neo-Romantismo e as suas três correntes (vitalista, saudosista e lusitanista) − ora ideologicamente divergentes, ora politicamente conflituantes − atinge o auge a centralidade eufórica da «alma Nacional» e da representação de Portugal na semântica da criação literária. Essa imagem encontra aí prismática projecção: emancipalista, ao rés das formações sócio- económicas e dos institutos políticos, na primeira corrente; palingenésica na corrente saudosista, buscando o renascimento nacional pelo regresso à realidade essencial da

grei, em profundidade cultural e mitogenesia espiritual; restauracionista, pela

reanimação dos valores tradicionais religiosos e políticos, na terceira corrente»132. Na

Revista de História, o vitalismo e o saudosismo parecem estar ausentes, em favor do

restauracionismo lusitanista. Todavia, no caso do periódico, a alma nacional parece transmutar-se em História Nacional e a reanimação faz-se mais por via do estudo proto-científico do que do fervor patriótico puro e simples.

Seguidamente, apresentamos de modo apenas o indiciário os traços gerais do arranque da Ditadura Militar, até ao momento em que a Revista de História deixou de existir.

132 José Carlos Seabra Pereira – O Tempo Republicano da Literatura Portuguesa Separata do Colóquio Letras, n.º 75.