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Sistema Político e Governação, Legislação Eleitoral e Modalidades de Voto

de História

Capítulo 1 − Enquadramento Histórico Nacional da Revista de História

1.1. A Viragem do século: 1890-1910 1 Economia e Finanças

1.1.2. Sistema Político e Governação, Legislação Eleitoral e Modalidades de Voto

Recuemos no tempo para enquadrar a temática em vertente análise. Na sequência da estabilização da monarquia constitucional liberal, em 1852 e 1859, respectivamente nos governos dos Duques de Saldanha e da Terceira, a legislação relativa ao sistema eleitoral encontrava-se ainda muito distante da consagração do sufrágio universal e directo, predominando o de cariz censitário, segundo o qual eleitores e eleitos tinham que ser do sexo masculino, ter pelo menos 25 anos, e

77 Ibid., pp. 15-16. 78 Ibid. e ss.

possuir propriedades ou rendimentos decorrentes de actividades comerciais, que lhes permitissem auferir cem mil réis no mínimo por ano, aplicando mil para ter acesso ao voto. Para poderem ser eleitos, os eleitores tinham que ganhar anualmente quatro vezes mais do que o valor referido. Em 1878, Fontes Pereira de Melo tentou alargar o direito de voto e durante o seu governo foi aprovada legislação nesse sentido, abrangendo os eleitores maiores de 21 anos e os chefes de família analfabetos, até então arredados do sistema eleitoral. Entre 1875 e 1880 duplicou o número de eleitores. Conforme afirma Luís Vidigal: «A lei de 1884 (Fontes) reforçou esta democratização do sufrágio, estabelecendo o sistema de lista incompleta, garantindo a representação das minorias. Mas, ao invés de constituírem um começo auspicioso, estas medidas foram o acumular de um processo em que as tendências dominantes se inverteram, passando a ser cada vez mais inibidoras do acesso ao sufrágio, limitando o próprio corpo eleitoral.

As leis de 1895 e 1896 restringem drasticamente o eleitorado: o governo Hintze-Franco, em plena crise, reduz o censo para 500 réis, mas retira o voto aos analfabetos que, sendo chefes de famílias, não atinjam o rendimento necessário, e volta a estabelecer o sistema de lista completa, acabando com a representação das minorias, de que mais se ressentem Lisboa e Porto, integradas nas áreas dos seus distritos para fins eleitorais»79. A lei de José Luciano de Castro pouco alterou esta

situação, dado que apenas acrescentou ao clausulado anterior o direito de voto aos menores detentores de um curso superior. Todavia, em 1901, através de um decreto eleitoral, Hintze Ribeiro suprimiu esse artigo, reduziu o número de círculos eleitorais de 100 para 26, prejudicando a representação urbana de Lisboa e Porto, diluída e integrada nos amplos espaços rurais circundantes, acto que foi denominado de «ignóbil porcaria», enquadrável num notório esforço centralizador, que substituiu os círculos uninominais pelos plurinominais. Continua Luís Vidigal: «Com tão vasta experiência de estruturação eleitoral, no início do século ainda se debatia em torno dos círculos uninominais (mais pequenos do ponto de vista geográfico) ou plurinominais (muito maiores): a legislação existente (Agosto de 1901 - Hintze Ribeiro) impunha os grandes círculos; ainda que os primeiros reforcem o caciquismo dos notáveis locais, os segundos anulam eleitor ou cacique, subordinando a eleição à vontade governamental apenas. (…). Reforçando-se o partido do Governo, pela dissolução das influências locais numa rede de pressões superior, os caciques têm de se subordinar obrigatoriamente aos ditames governamentais, torna-se assim muito mais fácil realizar acordos pré-eleitorais entre os partidos rotativos que garantam a

eleição de uma Câmara consentânea com a nova correlação de forças que se forma antes das eleições»80.

Embora se subjugassem ao poder central, do qual dependiam, os caciques locais possuíam considerável margem de manobra pessoal, dado que cabia-lhes a missão de atenuar o fosso entre o governo e as populações maioritariamente rurais: «Ressalta o provável peso das condicionantes políticas extra-legais, isto é, a eficácia de funcionamento dos factores informais de controlo dos eleitores − a rede de dependências locais que, sob a designação de caciquismo, decidia em última análise os resultados de cada região»81. Esse controlo erra em parte exercido porque um

conjunto de eleitores, entre 50 e 200, se deixava influenciar porque dependia economicamente dos influentes que eram seus patrões nas terras − cobrando para tal impostos − que tinham livrado por vezes os seus filhos de cumprir o serviço militar.

Por outro lado, os subalternos e empreiteiros eram maioritariamente analfabetos, passando alguns deles fome, situação que os obrigava a emigrar, ou pelo menos a pensar nisso, tornando-os, enquanto não se decidiam, ainda mais dependentes dos caciques e vulneráveis a ceder o seu voto em troca de favores que aliviassem a debilidade em que se encontravam. Havia dois tipos de caciques, os proprietários e os burocráticos. Os primeiros criavam uma espécie de vassalos, enquanto os segundos detinham uma influência adquirida politicamente e davam empregos, conseguindo os de extracção mais elevada no funcionalismo para os seus filhos. Efectivamente o sistema eleitoral nas vésperas da primeira republica encontrava-se muito longe de ser representativo, dado que os eleitores sofriam pressão dos influentes, que condicionavam o seu voto e funcionavam como verdadeiros eleitores. Daí que seja legítimo afirmar que: «Da conjugação de factores de ordem material e política, consolida-se a teia de hierarquizações e dependências que se bastam a si próprias no processo de funcionamento eleitoral; daí que, ao falar- se de caciquismo, o possamos enquadrar como um sistema particular de representação indirecta, apesar da sua essência anti-democrática. A sua razão de ser só pode encontrar-se no desfasamento das relações sociais tradicionais; sempre que esse desfasamento se verifica − ou é artificialmente mantido − surge o espaço próprio do caciquismo, essa estrutura intermédia entre uma vida local votada ao abandono e o longínquo poder político centralizado em Lisboa»82.

O centralismo do poder político, acentuado a partir da última década do século XIX até à implantação da República, não anulou, antes incentivou, o rotativismo partidário dominante na segunda metade de oitocentos. Este rotativismo assentava

80 Ibid., 14-15. 81 Ibid. 82 Ibid., p. 25.

prioritariamente no desenvolvimento de tácticas e estratégias de administração do poder, tendentes a mantê-lo ou conservá-lo, ao invés de basear-se no incremento e na implementação de programas políticos de teor ideológico sólido, instigadores de uma disciplina partidária interna neles centrada e por eles catalisada. Conforme sintetiza José Miguel Sardica: «O cacicato assegurava a virtual auto-eternização nas cadeiras do poder de uma minoria oligárquica de grandes interesses fundiários, financeiros e comerciais: um feudalismo político (…), cujo resultado se saldava, como vimos, numa representação parlamentar não genuína, que bloqueava qualquer hipótese de pluralismo político e da existência de uma autenticidade formal na relação entre a minoria governante e a maioria governada»83.

Esta perpetuação de certas oligarquias no poder, com base num caciquismo persistente, plasmou-se no rotativismo entre o Partido Regenerador e o Progressista, que atingiu um ponto de saturação a partir de 1906, conduzindo ao modo autoritário de governo por parte de João Franco, como o apoio do Rei D. Carlos. Nos últimos tempos da Monarquia, os respectivos partidos dominantes viviam em clima de permanente instabilidade interna, propensa a divisões. Do lado dos Regeneradores, a liderança foi exercida, consecutivamente, por Serpa Pimentel (entre 1887 e 1900), Hintze Ribeiro (1900-1907) e Júlio de Vilhena. No campo Progressista assistiu-se à acentuação de polémicas, nomeadamente entre José Luciano de Castro e José Maria de Alpoim. Estas divergências no seio dos partidos do regime, não se deviam apenas a questões políticas, ideológicas ou administrativas, de carácter substantivo. Aproveitando-se deste contexto de crise, e tentando resolvê-lo, o rei D. Carlos extravasou o poder moderador, conferido pela carta constitucional de 1826, reduzindo a capacidade de acção legislativa do Parlamento.

Após 1901, o rotativismo evidenciava diferenças de índole retórica no âmbito parlamentar, que escondiam convergências efectivas ao nível governamental. Apenas havia circulação de pessoas na base de interesses pessoais, amizades, em detrimento da polarização em torno do confronto de ideias. O inimigo comum de Regeneradores e Progressistas era o Partido Republicano, que tinha essencialmente implantação nos grandes centros urbanos − e menor relevo nas zonas rurais do norte de Portugal −, alicerçando o seu poder relativo de influência numa propaganda eficaz e na criação de delegações distritais e municipais, desde 1870 a 1900, e, sobretudo, depois de 1906. O Partido Republicano instituía-se como arauto das necessidades do povo, contra os interesses de corte dominantes84.

83 José Miguel Sardica – A Dupla Face do Franquismo…, p. 27.

84 Sobre este assunto ver, entre outros, Joaquim Romero de Magalhães – Vem aí a república. Coimbra: Almedina,

O governo Regenerador de Hintze Ribeiro começou no início de 1906, mas logo foi contestado pelos Progressistas, que entretanto tinham saído do poder, e pelos Republicanos. Em 8 de Abril houve uma revolta dos marinheiros. Nas eleições realizadas a 4 de Maio houve fraude no Círculo Eleitoral de Lisboa. Simultaneamente, perante a rainha e os filhos, no Campo Pequeno, realizou-se uma manifestação de apoio a Afonso Costa. A 15 de Maio, Hintze Ribeiro, sentindo-se pressionado pelas contestações, tentou adiar, sem sucesso, junto do rei, a abertura da sessão legislativa. Gorados os seus intentos, fragilizada a posição do governante, demitiu-se quatro dias volvidos. A solução encontrada por D. Carlos para o impasse foi no sentido do reforço do respectivo poder executivo. O escolhido para presidente do Conselho foi João Franco, dissidente do partido Regenerador, e líder do partido Regenerador liberal, que tentou desenvolver uma política assente numa alegada ideologia liberal, alicerçada na economia e na moral. Estes valores eram propagandeados também pelos Republicanos, que tentavam cumpri-los usando metodologias diversas. Os Republicanos e os Progressistas de José Luciano de Castro deram o benefício da dúvida inicial e instrumental a João Franco, que conseguiu colocar na Câmara dos Deputados 65 membros do seu partido (havendo 45 deputados Progressistas, 24 Regeneradores e 4 Republicanos). No entanto, passado o estado de graça, as contestações daqueles partidos ao Franquismo começaram85.

A primeira questão discutida no parlamento durante o governo de Franco foi a da nacionalidade do Ministro da Fazenda Ernesto Schroeter, atrasando-se a aprovação de leis propostas pelo governo ou pela oposição. No primeiro caso, contam-se as respeitantes à contabilidade pública ou á responsabilidade ministerial. No segundo, situa-se a questão do descanso semanal, propugnada pelos republicanos. Ainda em 1906, a adjudicação do monopólio dos tabacos por parte do Estado – configurada desde 1890 – tornou-se um contrato efectivo, com prazo reduzido para 19 anos, a terminar em 1926. O Estado reforçou a verba auferida, passando esta de 4500 contos nos finais de oitocentos para 6520, participando dos lucros decorrentes do negócio. Paralelamente, em Novembro de 1906, João Franco comunicou ao parlamento os adiantamentos efectuados à Casa Real, denunciando que os dezasseis ministros da Fazenda de governos que precederam o seu fizeram o mesmo, comprometendo com isso e, dessa forma, a oposição regeneradora e progressista. Levantaram-se dúvidas quanto à intenção do governante ao colocar esta questão, mas parece plausível a hipótese segundo a qual, para além de responsabilizar antecessores, João Franco parecia querer comprometer D. Carlos com o seu governo e respectivas decisões, obrigando o monarca a solidarizar-se com elas,

caucionando-as. Esta problemática serviu de alavanca à propaganda republicana, dado que o partido que a sustentava nunca tivera responsabilidades governativas e podia assacar responsabilidades a todos os outros sectores do espectro político, pedindo o fim do regime monárquico86.

Entretanto, foi marcada para 2 de Dezembro de 1906 uma manifestação republicana para denunciar os erros do referido regime, aproveitando-se da impopular arbitrariedade dos empréstimos à Casa Real e da consequente expulsão dos deputados que haviam engrossado o coro de protestos: Alexandre Braga e Afonso Costa. Assim, quando estes chegaram ao Porto com Bernardino Machado no dia 1 do último mês do ano, sofreram a repressão da polícia na Gare, apesar das manifestações republicanas só serem proibidas nas ruas. Acresce que os jornais eram instrumentos de denúncia que, por isso mesmo, convinha a João Franco calar ou limitar. Assim fez, apresentando em Dezembro de 1906 uma Lei da Imprensa nesse sentido, que veio a ser aprovada em 11 de Abril de 1907 e ficou conhecida como a Lei

das Rolhas. Este clima autoritário reforçou a insatisfação nas ruas e propiciou a

reacção adversa das associações de jornalistas e homens de letras, favorecendo a formação de círios e a realização de banquetes contestatários. Houve uma manifestação nacional a 16 de Dezembro de 1906. Entretanto, os protestos estenderam-se ao sector dos vinhos, centrado na luta pela demarcação territorial e dividido entre os interesses do norte e do sul do país. Franco aumentou a repressão, através da criação de um Conselho Superior de Justiça, concorrendo para a instauração do cargo de Juiz de Instrução Criminal – que incitou os jornais a perseguir jornalistas, obrigando alguns deles ao exílio – e para o reforço de poderes da Polícia Judiciária87.

A 28 e 29 de Fevereiro de 1907, José Eugénio Dias Ferreira apresentou a provas públicas uma dissertação de doutoramento na área do Direito, reprovada pelo júri, por alegadas razões políticas, dado que este se manifestou hostil à suposta proximidade do candidato face às ideias republicanas. Os estudantes aproveitaram a discordância relativa a esta reprovação para fazerem uma greve a 1 de Março, essencialmente dirigida aos métodos de ensino universitário, que consideravam retrógrados e obsoletos. No dia 2 as aulas foram suspensas até que se concluísse o processo movido contra os revoltosos, criteriosamente escolhidos; seis republicanos e anarquistas, que acabaram por ser todos expulsos da Universidade por períodos variáveis, consoante os casos, de um, dois ou três anos. Bernardino Machado não concordava com as alegadas arbitrariedades persecutórias e ameaçou demitir-se do

86 Ibid., pp. 65-78. 87 Ibid., pp. 65-94.

seu cargo de lente de Filosofia, acabando por ser consequente com a ameaça. A propaganda republicana aproveitou, uma vez mais, o clima polémico para consolidar a sua influência. Todavia, coube a João Franco e ao Rei D. Carlos dramatizar a situação, sob o pretexto da defesa da ordem pública, insistindo na tónica de que as manifestações estudantis tinham motivações políticas e não razões académicas. O Governo queria endurecer a sua posição ainda mais e usou a questão em análise para proceder a esse endurecimento. Certo é que D. Carlos resolveu travar a contestação do parlamento, encerrando-o88.

No entender de Joaquim Romero de Magalhães, a cessação da actividade parlamentar, e a vigência, a partir de 11 de Maio de 1907, de um governo ditatorial por João Franco, não foram motivadas pelos protestos de agricultores do sul ou pela crise académica. Antes decorreram da vontade de liquidar os adiantamentos à casa real, que transformavam o monarca de devedor em credor, alimentando os gastos luxuosos em nome de D. Carlos, que comprara moradias, quintas, iates, carros à custa do erário público. A liquidação dos adiantamentos ocorreu a 30 de Agosto de 1907. As eleições, inicialmente marcadas para 3 de Novembro, não ocorreram. O rei reforçou o seu poder, sendo João Franco o instrumento mais visível desse reforço. O inimigo comum era o Partido Republicano, contra o qual se ergueu a repressão ditatorial. No entanto, os partidos do rotativismo encontravam-se manietados e houve dissidências de liberais monárquicos que enfraqueceram o regime, como António José da Cunha e Brancaamp Freire, que se tornaram republicanos. O Juiz Veiga, baluarte da autoridade franquista, resignou. Por dentro, a ditadura ruía, mas tentava ainda, num último fôlego, a 23 de Novembro de 1907, arregimentar a Câmara dos Pares, manipulando-a89. A

instabilidade política agudizou-se e, em 1 de Fevereiro de 1908, culminou com o assassinato do rei D. Carlos e do seu filho D. Luís por dois homens chamados Costa e Buiça. «Depois do regicídio, em 1908, a Família Real tinha quatro pessoas. Manuel sucedeu ao pai, tentou apaziguar os ânimos mas não teve sucesso durante os dois anos e meio durante os quais governou, devido ao crescimento do partido republicano, associado ao peso crescente da Maçonaria e da Carbonária. Antes de abordar as várias fases da Primeira República, convém descrever a demografia, a População e a Sociedade entre 1910 e 1926, uma vez que esse enquadramento é estrutural e estruturante para a compreensão da Primeira República no seu conjunto.

88 Ibid., pp. 79-103. 89 Ibid., pp.105-139.