• Nenhum resultado encontrado

Diálogo da História da Historiografia com a História e Historiografia das Ciências

A História da Historiografia enquanto área disciplinar autónoma dentro da ciência da História pode estabelecer relações com outros âmbitos análogos, no que tange ao grau de autonomia de que possam usufruir. Nessa situação encontram-se a História da Historiografia das Ciências, a História das Ideias e dos Intelectuais. Começamos o nosso itinerário intelectual pela primeira área do saber referida, com o intuito de estabelecer comparações e fixar pontos de contacto e afastamento com a perspetiva da História da Historiografia que defendemos, de modo a explicar melhor o caminho trilhado nesta dissertação. Na atualidade, parte dos estudiosos que se dedicam à História da Historiografia das Ciências destacam apenas as ciências naturais, deixando de lado as sociais e humanas. Advogamos a independência de ambos os campos, mas consideramos que podem dialogar e relacionar-se, dado que partilham problemas estruturais de fundo comum, apesar do tratamento diferenciado

53 Cfr. Eloísa Cascão – A Revista de História: tentativa de análise temática. Coimbra: [s.e.], 1991, [s.n] [texto

policopiado].

54 Ricardo Pinto de Carvalho Paulo de Brito− A Sociedade Portuguesa de Estudos Históricos no Contexto Historiográfico Nacional (1911-1928). Lisboa: Faculdade de Letras de Lisboa, Junho de 2012 [Dissertação de Mestrado

que lhes devotam. Todas as ciências pertencentes aos dois grupos citados possuem modelos, teorias, conceitos, metodologias, métodos e práticas.

Daí que pode, em nosso entender, aproveitar-se o diálogo que a História da Historiografia é suscetível de estabelecer com a Historiografia das Ciências, dado que pertence ao respetivo âmbito e à família de origem que esta configura, embora dela se autonomize, sem ofender ou prejudicar a identidade de ambas, ou obliterar uma dimensão epistemológica conferida por uma instrumental interrogação da Filosofia das Ciências, em correlação tangente com a respetiva História, menos intensa, em nosso entender, do que aponta o ponto de vista defendido por João Maria André: «A ligação entre História das Ciências e Filosofia da Ciência tem vindo a conhecer, ao longo deste século, significativos impulsos, talvez mais fecundos da parte dos próprios cientistas que, ao debruçar-se sobre a História das suas disciplinas, acabam por ser obrigados a abrir pistas que inscrevem a sua reflexão no campo da Filosofia da Ciência, do que da parte dos filósofos de profissão, epistemólogos na sua especialidade, que nem sempre reconhecem a importância que pode ter para uma correta e adequada visão da ciência o material de inegável valor que os historiadores vão armazenando na sua incursão pelo pó dos arquivos ou pelos sótãos esquecidos dos laboratórios. E, no entanto, parece hoje impossível questionar a relação do homem com a natureza, ao longo da modernidade, sem estar atento aos grandes modelos e às grandes metáforas através das quais essa relação se foi dizendo, assim deixando que nelas se dissessem, ao mesmo tempo, as grandes metamorfoses da natureza»55.

A História da Ciência resulta, em certa medida, de um processo de adaptação do homem ao meio, característica de todo o conhecimento humano. Para sublinhar esta linha de raciocínio, convém definir História da Historiografia das Ciências, considerando, desde logo, que se perfila como reflexão incidente sobre a produção científica e a respetiva História, tendo em conta a evolução da História da Ciência, surgida institucionalmente em França em finais do século XIX e nos Estados Unidos da América após a Segunda Guerra Mundial. No entender de Paulo César Coelho Abrantes: «A História da Ciência, enquanto disciplina autónoma é bastante recente. Essa autonomia envolve, basicamente, a possibilidade: de fixar objetivos cognitivos para o discurso historiográfico, independentemente dos objetivos de outros discursos; de desenvolver uma metodologia adequada a tais fins; de estabelecer padrões de avaliação dos produtos historiográficos; de formar especialistas na área e criar veículos adequados para a divulgação dos resultados de pesquisa. Na França, a

55 João Maria André – Da história das ciências à filosofia das ciências: elementos para um modelo ecológico do

primeira cadeira de História da Ciência foi criada no Collège de France, em finais do século XIX e seu perfil, à época, foi moldado pelo positivismo de Comte. Até hoje, o lugar que tal cadeira ocupa no sistema universitário francês evidencia a herança positivista: a História da ciência se pesquisa e se ensina em Departamentos de Filosofia.

Nos E.U.A, o crescimento e a concomitante profissionalização da área ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, provavelmente em consequência do clima de perplexidade diante do impacto crescente do conhecimento científico na sociedade. Passou-se a acreditar que o estudo da História das Ciências pode contribuir para uma melhor compreensão tanto das relações entre ciência e sociedade, quanto da inserção da ciência no contexto cultural mais vasto. Entretanto, a História da Historiografia da Ciência começa bem antes da institucionalização da disciplina. As curtas introduções históricas que se encontram em manuais científicos representam, provavelmente, o mais antigo género de Historiografia da ciência, que remonta à Antiguidade Clássica. O seu objetivo é fundamentalmente pedagógico: introduzir só conceitos, métodos, teorias, técnicas etc., utilizadas num domínio particular, num dado momento. Esta Historiografia é produzida, tradicionalmente, pelos especialistas do domínio em questão, sendo marcada por uma visão de História das ciências como um acúmulo contínuo e progressivo de conhecimentos»56.

No século XIX reproduziu-se um modelo historiográfico das ciências derivado da Antiguidade Clássica, de teor essencialmente pedagógico, baseado na acumulação linear, progressiva e teleológica de conhecimentos. Era essencialmente presentista e podia ser praticado por cientistas ou de um modo filosófico. No primeiro caso, o passado das ciências constituía um exemplo a seguir no presente dos estudiosos, ilustrando-o, na segunda situação o passado subordinava-se e subjugava-se aos interesses do presente. Ainda hoje sobrevive o presentista na História e Historiografia das ciências, caracterizado pelo aprofundamento do anacronismo necessário e inultrapassável entre quem escreve e o objeto da escrita, inclinando-o, todavia, para uma discutível e perniciosa superioridade da conceção científica da atualidade. Constrói-se, deste modo, uma Historiografia apologética, não raro laudatória, promotora de um estatuto elevado a auferir pelo sujeito cognoscente que engendre uma narrativa de auto-justificação e legitimação. Contudo, esta forma presentista de escrever Historiografia das ciências parece-nos minoritária e não a subscrevemos, uma vez que oscila entre o pragmatismo dos cientistas, guiados pelas necessidades

56 Paulo César Coelho Abrantes Problemas metodológicos em historiografia da ciência,

http://pt.scribd.com/doc/54715603/C-ABRANTES-P-2002-Problemas-metodologicos-em-historiografia-da-ciencia (acedido em 17 de Outubro de 2011).

actuais que os movem, e a busca de universais, de tudo o que é invariante ou regular, patente na actividade de certos filósofos.

Do nosso ponto de vista, a História da Historiografia enquanto estudo da ciência da História deve respeitar a historicidade e os códigos do nosso objeto de estudo − a Revista de História, seguindo a lição genérica já exposta de Charles-Olivier Crabonell. J. Roger, citado por António Augusto Passos Videira, defende uma perspectiva historicizante da História das ciências que subscrevemos e cujas virtualidades procuramos transportar para o nosso âmbito disciplinar de eleição: «Le Project d’une histoire historienne des sciences est de comprendre le passe dans ses propres termes. Strictu sensu, ce project est irréalisable, et l’historien le sait. Il ne peut prétendre, lui aussi, qu’a une connaissance “approchée”, toujours soumisse à complément ou à révision. Être historien, c’est d’abord un métier, une pratique, et dans l’exercice de ce métier, l’artisan utilisera tous les outils à sa disposition»57.

A História e Historiografia das Ciências realizada por cientistas profissionais que não sejam historiadores, sociólogos, filósofos das ciências ou epistemólogos pode resultar num exercício retórico auto-contemplativo, que convém evitar, dado que «essa busca pela legitimidade pode fazer com que ideias, ideais e métodos da ciência sejam aplicados para além do seu domínio, constituindo uma situação de cientificismo. Por outro lado, temos a perspetiva historiográfica de historiadores e sociólogos, os quais se consideram muito mais críticos em relação aos valores veiculados e defendidos pelos cientistas. Esses últimos não seriam movidos por nenhuma preocupação ou interesse que não fosse a compreensão de como se deu o desenvolvimento da ciência. Para esse grupo, seria inaceitável conferir à História da ciência o direito e a possibilidade de legitimar a ciência. Segundo os opositores dessa conceção de História da ciência, a legitimação pressupõe uma imagem da ciência excessivamente problemática, posto que anacrónica, presentista e configurada por interesses individuais ou de grupo, só para citarmos alguns dos “defeitos” presentes na Historiografia cientificista da ciência»58.

Tentaremos, nesta investigação, escapar a uma História da Historiografia portadora dos defeitos ante-citados que poderão ter contribuído para que a História e Historiografia das ciências tenham sido sempre consideradas subalternas ou auxiliares: «A consciência de que essas dificuldades acometem a História da ciência parece ter começado no início da década de 30. Além de ser uma ciência auxiliar, há ainda algo que é mais grave, a saber: esta situação secundária, ou auxiliar, marcaria a

57 Op. Cit. In António Augusto Passos Videira – Historiografia e História da Ciência. p. 111, in

http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/revistas/Escritos_1/FCRB_Escritos_1_6_Antonio_Augusto_Passos_Videi ra.pdf (acedido em 17 de Outubro de 2011).

História da ciência desde o seu surgimento (…). A conceção da História da ciência como disciplina auxiliar é facilmente percebida no tipo de História produzida pelos cientistas (…). Seu maior problema decorre do facto de que esse género historiográfico dificilmente escapa à teleologia (…)»59.

Entendemos que a posição secundária da História e Historiografia das ciências no âmbito de clio deve ser ultrapassada, dadas a transversalidade do seu objeto e as potencialidades inter e transdisciplinares que disso derivam.

De qualquer modo, encontramo-nos, pelo nosso percurso, mais próximos da abordagem historiográfica das ciências do que da sociológica ou filosófica, por esta ordem, inscrevendo-nos num esforço que não negligencia novas abordagens: «Por fim, a orientação representada pelo que chamamos de nova Historiografia da ciência (se quiserem, uma Historiografia de historiadores) reivindica uma autonomia para a História, com respeito a outras áreas que também tomam as ciências como seus objetos de investigação. A atividade historiográfica é vista como possuidora de padrões de avaliação de seus produtos e das finalidades que lhe são específicas, bem como métodos adequados aos seus objetos.

O historiador deve possuir uma sensibilidade apurada para o específico, para o facto em sua particularidade, tentando reconstituir o cenário histórico em sua multiplicidade. Evidentemente, isso não significa que o historiador deva ou possa abrir mão de critérios de seleção. Há, porém, uma pluralidade de interesses que podem vincular o passado ao presente, e o historiador deve estar consciente dos mesmos, esforçando-se por explicitá-los. O historiador, além disso, pretende compreender o passado, explicá-lo e não somente descrevê-lo. Para tal ele frequentemente é levado a vincular o interno ao externo da atividade científica (a inserção desta atividade no contexto de outras atividades e da cultura em geral) e reconstituir as imagens de ciência que fundamentam as razões dos agentes. Nessa tarefa explicativa, frequentemente o historiador lança mão de teorias antropológicas, sociológicas, etc., além de teorias estritamente filosóficas, como uma teoria da racionalidade. Sem falar da contribuição, frequentemente essencial de outros géneros históricos»60.

Desvinculamo-nos, inteiramente, de uma perspetiva exclusivamente centrada na teoria da racionalidade como prisma de aferição do carácter proto-científico da

Revista de História, preferindo entendê-la na sua especificidade, compaginando a

análise dos respetivos conteúdos com o percurso dos seus colaboradores e o contexto histórico destes e do periódico. Esta asserção confirma a nossa integração numa História da Historiografia que concretiza uma descrição das práticas científicas

59 Ibid.

veiculadas pelos eruditos e intelectuais participantes na publicação, de forma a indiciar a compreensão das imagens e perceções de ciência aí presentes, explicita e implicitamente. Defendemos a coordenação de visões externalistas e internalistas de ciência, na estruturação e concretização desta dissertação. Já no século XVII Francis Bacon assumia, através de metáforas, a possibilidade de configuração múltipla da atividade científica. Conforme sintetiza João Maria André, citando a certo passo o filósofo inglês: «Com efeito, no aforismo 95 da I parte do Novum Organon, distingue Bacon, nestes termos, dois tipos de filósofos de ciências significativamente representados por dois modelos metafóricos suficientemente expressivos: “Todos aqueles que se ocuparam das ciências foram empiristas ou dogmáticos. Os empiristas, à maneira das formigas, apenas amontoam e consomem; os dogmáticos, à maneira das aranhas, tecem teias a partir de si”. A uns e outros contrapõe o chanceler inglês a síntese superadora destes dois animais: mas o método da abelha situa-se a meio: recolhe a sua matéria das flores dos jardins dos campos, mas transforma-a e digere-a através de uma faculdade que lhe é própria»61.

Ensaiaremos uma abordagem que tenta um certo equilíbrio entre empirismo (crítico) e racionalismo. Mais uma vez afirma João Maria André: «Estas palavras apontam para a necessidade de conjugar as versões internalistas com as versões

externalistas no que diz respeito ao estudo da ciência e da sua História. Trata-se de

uma distinção que importa igualmente ter em conta, quando se procura articular a Filosofia das Ciências com a História da Ciência, na medida em que esta articulação pressupõe a superação de visões igualmente reducionistas do processo do progresso científico. Com efeito, uma visão internalista atenderia apenas à lógica interna do pensamento científico, às regras das suas metodologias, e à forma como coerentemente se estruturam as teorias, ou, aplicada à História, consideraria apenas pertinente para o estudo do desenvolvimento histórico do pensamento científico os elementos internos a esse mesmo pensamento (sucessão de teorias, intuições, hipóteses e leis, bem como a enumeração das respetivas refutações ou processos de substituição de umas teorias por outras); em contrapartida, as versões externalistas atendem sobretudo às circunstâncias externas que acompanham o desenvolvimento da ciência, como sejam os contextos históricos económico-políticos e institucionais ou os condicionalismos sociológicos que contribuem para o esclarecimento da irrupção de determinadas problemáticas ou mesmo para a realização de certas descobertas científicas»62.

61 J. M. André – Da história das ciências à filosofia das ciências…, p. 316. 62 Ibid. p. 318.

Na secção de artigos da Revista de História estão quase ausentes – com raras exceções − as Ciências Naturais e efetua-se um esforço de distanciamento face ao conjunto por elas formado.