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As revistas e a Revista de História: Uma Panorâmica

2.1. As revistas como fonte e objecto de estudo: Métodos e técnicas de

análise

A partir de meados do século XIX, os periódicos que escolheram colocar em prática os conceitos, métodos e técnicas propensos ao desenvolvimento e estabilização da ciência de Clio − enquanto âmbito disciplinar, debruçando-se sobre os respectivos temas, tendentes a fixar o estudo do homem ao longo do tempo − contribuíram, de forma decisiva, para a afirmação da Historiografia como âmbito autónomo de estudos, integrada na História dos países europeus dos quais é originária, e alimentaram a História da Imprensa Periódica, enquanto campo disciplinar cujas institucionalização e profissionalização são favorecidas e incrementadas pela abertura de circuitos, veículos e sistemas de informação próprios do periodismo. O desenvolvimento de novas tecnologias acelerou a constituição e difusão a mais larga escala e mais célere de meios de comunicação como as revistas. No entender de Daniel Pires, estas constituem uma das facetas da imprensa periódica e possuem certos traços distintivos, muitas vezes encarados pelos estudiosos com reserva, decorrente da assunção de preconceitos vários sobre a matéria, que contribuem para que seja alvo de menosprezo ou atenção dispersa e difusa, que ajudam a explicar a reduzida escolha das revistas como objecto central de investigações: «As revistas são frequentemente consideradas o parente pobre do livro: não apresentam a sua dignidade, a sua auréola, o seu estatuto há séculos auferido. Efémeras, acabam muitas vezes num anónimo café, acondicionando um produto de consumo, acometidas pela vassoura ciosa de uma dona de casa, ou vendidas a peso a um ferro velho menos sensibilizado pelas subtilezas das belas letras135»

Por outro lado, do ponto de vista metodológico, as revistas assentam ontologicamente numa dualidade, que funciona como condicionante e imperativo da sua utilização pelos estudiosos das diferentes áreas, dentro das Ciências Naturais e, sobretudo, no âmbito das Sociais e Humanas, dado que podem constituir-se como fontes − que servem de referência ou suporte bibliográfico ao esclarecimento ou aprofundamento de determinado assunto, para o qual são apenas instrumentos heurísticos subsidiários da pesquisa central em curso − ou, alternativamente, comparecem auferindo do estatuto de objecto autónomo, portador de uma génese e de uma História própria. A primeira vertente é mais frequente, relegando a segunda para uma posição secundária, desconfortável, fruto eventualmente do fetiche pela

135 Daniel Pires – Dicionário de Imprensa Periódica da revista Literatura Portuguesa do século XX (1900-1940). Lisboa: Grifo, 1996, p. 9.

fonte manuscrita, esquecendo-se por vezes que a impressa também pode ser primária, dotada de igual valor e dignidade, portadora eventual de putativa

originalidade. Ana Luíza Martins, historiadora brasileira, colocou a questão da

ambiguidade estatutária das revistas com acuidade, nos seguintes termos, elucidativos porque que revelam as coordenadas pelas quais se regeu o estudo da autora intitulado Revistas em Revista Imprensa e Práticas Culturais em Tempos de

República, S. Paulo (1890-1922) e no qual se conjugam sem atrito as duas dimensões

enunciadas: «Neste propósito, as revistas foram tratadas em dupla dimensão: como

objecto de análise, tema a ser historicizado e, como fonte, que, cotejada com as

demais − jornais, memórias e iconografia −, subsidiou esta pesquisa, permitindo reconstituir a História no âmbito de um dos seus principais suportes documentais, isto é, a imprensa periódica (…). Concomitantemente, inferiu-se que o uso recente, frequente e indiscriminado de revistas em busca da reconstrução do passado, resultava em equívocos de interpretação, frutos do desconhecimento das condições de vigência daqueles periódicos, da falta de cotejo com os seus parâmetros e da efectiva inserção em seu tempo»136.

No plano técnico mais restrito, e tendo em conta os sentidos etimológico e literal da palavra, as revistas constituem uma parte específica da Imprensa, dado que são um tipo de periódico: No dicionário de Littré, publicado em 1863, mas já antes no da academia francesa fazia-se eco da acepção moderna da palavra periódico, firmada em 1804 na Revue Philosophique e que designa a imprensa dada à estampa em intervalos de tempo regulares: dias, meses ou semanas. As revistas, apesar de relativamente efémeras não o são tanto quanto os jornais, normalmente consignados às notícias diárias ou semanais, sujeitas à usura e desgaste provocados pelo quotidiano, ou por um tempo relativamente curto, o da junção de sete dias seguidos. No pólo oposto deste imediatismo de uma parcela considerável da imprensa encontram-se os livros, que privilegiam, não raro, a reflexão e o poder de análise ou a criatividade, considerados isolada ou conjugadamente, contribuindo para expressar as ideias e o percurso singular dos seus autores, enquanto as revistas, na maior parte dos casos, quando não constituem projectos individuais − bastante escassos aliás − exprimem as relações de confronto ou de conciliação entre homens ou destes com o respectivo tempo histórico. Conforme explica Jacques Julliard: «Tandis que le livre exprime avant tout la personnalité de son auteur, et traduit une démarche singulière, l`article de revue au contraire est nécessairement la confrontation d’un homme avec d’autres hommes, d’un penseur avec son temps. Le caractère périssable de l`object-

136 Ana Luíza Martins – Revistas em Revista Imprensa e práticas culturais em Tempos de República. S. Paulo (1890-

revue, qui l’apparente au journal, en fait en même temps tout le prix. Si le journaliste est, selon le mot d`Albert Camus, «l’historien de l’instant», l’homme de revue en est le philosophe ou, comme aimait dire Sorel, le sociologue. Le sociologue de l’instant se défie des grandes constructions théoriques, des grandes reconstructions sociétales. La pensée est en état de continuel affrontement. L’engagement de l’intellectuel, tel que Sorel l’a conçu et vécu avant même que le mot existe, ne consiste pas à signer des pétitions ou á descendre dans la rue: il consiste à se saisir de l`actualité pour en faire l’objet de sa réflexion»137.

As revistas ocupam, portanto, o espaço intermédio entre os dois meios de informação e comunicação ante-citados, jornais e livros, − distinguindo-se dos «magasins», pelo facto destes, ao contrário daquelas, serem ilustrados − e permitem compaginar jornalismo com um sentido mais mediato de cultura. Para alguns autores, as revistas, que constituem uma parcela significativa das publicações periódicas não - diárias, podem ser configuradas como uma forma de jornal não – diário. Todavia, discordamos desta asserção, dado que aproxima em demasia, igualando-os e assimilando-os, dois meios de comunicação bastante diversos, apesar das semelhanças que entre ambos possam existir e que radicam na eventual ligação comum à actualidade, mas alicerçada em moldes diversos. Na natureza das revistas encontra-se inciso um paradoxo que as distingue e define, uma vez que embora sendo simultaneamente inacabadas, provisórias, imperfeitas, incompletas, propiciam a revisão e o alargamento de conhecimentos científicos. Apesar de provisórias ou efémeras, as revistas guardam-se. No que concerne às origens, este tipo de periódicos poderia ter a sua génese dependente de Sociedades Culturais, de editoras, ou de ambas. A Revista de História foi criada no seio de uma instituição cultural, conforme veremos no próximo capítulo, mas cedo capitalizou os interesses da Clássica Editora e, mais tarde, consecutivamente de outras duas empresas congéneres, pertencentes ao mesmo ramo ou sector de actividade; A Empresa Literária Fluminense e a Editora Universal. Desde os inícios do século XIX, os lugares e as formas de sociabilidade mais correntemente associadas às revistas coexistiam e eram variadas, abarcando cafés, banquetes, congressos. A edição pressupunha meios e modos de funcionamento diversos; internos, externos, implícitos, explícitos.

Por outro lado, os conselhos de direcção ou de redacção das revistas também apresentavam heterogeneidade. Alguns dos seus membros emprestavam o seu nome e prestígio à agremiação ou à empresa, enquanto uma parte deles se concentrava exclusivamente no trabalho. Outros ainda interessavam-se pelas duas coisas. As

137 Jacques Julliard – Le monde des revues au débout du siécle: http://www.persee.fr/home/prescript/article/mcm 1987–

revistas são espaços vivenciais que constituem amiúde micro-sociedades, ou seja, materializam associações transitórias, de média duração ou permanentes, de pessoas com valores comuns e/ou projectos colectivos. A História do tipo de periódico em vertente análise é atravessada por amizades e inimizades, que se traduzem em afinidades e rupturas. As revistas, no entender de Cristophe Porchasson, são lugares de vida e fermentação intelectual, enquanto para Jean Pierre Sirinnelli constituem observatórios de primeiro plano do modo de funcionamento próprio dos microcosmos intelectuais. Muitas vezes eram laboratórios ou bancos de ensaio das ideias de eruditos e homens de letras que estavam a debutar ou a dando os primeiros passos no espaço público138.

Para além de aglutinarem pessoas e vontades e promoverem o espírito associativo, as revistas eram, desde o século XIX, lugares de produção e de trocas intelectuais que procuravam instalar-se no espaço público, contribuindo para a respectiva e progressiva afirmação sustentada, influenciando a opinião pública, também em processo formativo, as revistas eram lugares de disputa, concorrência e oposição, nos quais se almejava a obtenção, manutenção e/ou incremento de certo poder simbólico. Constituiam instrumentos de investigação e julgamento de ideias, consubstanciando panoramas comentados das paisagens intelectuais existentes. No entender de Julliard, para além de configurarem espaços de afirmação da novidade e da sociabilidade, comportavam orientações e mensagens de teor moral139.

O interesse pelas revistas como objecto de estudo deriva da complexidade desafiante da sua natureza e do estatuto que podem assumir, bem como da orgânica, estrutura e função que lhes sejam próprias, enquanto meios e canais de comunicação. A escolha da temática histórica e historiográfica converge com a nossa formação intelectual, sendo inegável a relevância do tipo de periódico proto-científico em causa para a História da Historiografia e da cultura, cruzando-as e aprofundando ambas as dimensões, conferindo primazia à primeira. O interesse académico por periódicos de História enquanto tema de eleição é ainda muito incipiente em Portugal e bastante esparso na Europa e no resto do Mundo, sendo passíveis de destaque, a nível ocidental, estudos efectuados em França, na Alemanha, em Itália e, na América Latina, o caso brasileiro é relevante. A atenção a este tipo de assunto parece possuir potencial de crescimento. No entender do investigador transalpino Edoardo Tortarolo essa situação deve-se à conjugação de diversos factores: o confronto e a comparação de um aspecto específico de certa realidade nacional ou local com o contexto europeu e internacional; a perspectivação das revistas de História enquanto pontos de origem,

138 Cfr. Michel Leymarie – Introduction, La Belle époque des Revues. In La Belle Époque des Revues. Caen: Institut

Mémoires de l`édition Contemporaine, 2002, pp. 9-21.

chegada, ou confluência de métodos e da cultura de natureza científica; autonomização dos periódicos referidos, encarados como detentores de uma organização própria, permeável à expressão das ideias e valores das instituições associadas à respectiva génese, sendo os órgão de imprensa em questão lugares privilegiados de apresentação dos resultados de investigação apurados no âmbito de comunidades científicas ou catalisadores do respectivo enraizamento140.

O nexo entre os centros de pesquisa, universitários ou não, e as revistas de História − no passado como no momento presente − reflecte-se ao nível das redes de sociabilidade entre o director e os conselhos ou comités científicos dos periódicos, contemplando e condicionando, igualmente, a vida financeira de cada revista (subsidiária de assinaturas pagas por sócios, do mecenato de editoras ou do estado, sem esquecer as quotas cobradas por instituições promotoras. Na Revista em Vertente análise apenas o suporte governamental primava pela ausência). Independentemente da época histórica nas quais se enquadrem e integrem os periódicos de História, o seu enraizamento é condicionado pela captação de activos ou de colaboradores − frequentemente recrutados entre jovens recém-formados, sem vínculo a instituições universitárias − e pela criação de um perfil editorial, assente na apresentação de uma linha de conduta teórica, doutrinária ou ideológica, geradora de novidades científicas, resultantes do debate e da concertação entre gerações e profissionais de diferentes áreas ou provenientes de âmbitos distintos no seio da História. De qualquer forma, a auto-avaliação interna das propostas de artigos e a respectiva certificação eram crescentemente requeridas. Para confirmar, infirmar ou preterir estas asserções, é necessário colocá-las em perspectiva, relativizando-as através do recurso à comparação entre revistas culturais de interesse geral e revistas científicas. Para começar, parece legítima a hipótese segundo a qual a Revista de

História procurou um caminho autónomo das revistas de cultura geral mas não

estabeleceu um corte abrupto com elas, subsumindo, de modo esbatido ou transfigurado, algumas das suas características, e assumindo uma transição para a cientificidade, devedora de tradições anteriores que incorporou.

140 Edoardo Tortarolo – Le riviste storiche. In Convegno sulle riviste scientifiche torinesi di Área umanistica. Roma:

Academia delle Scienze, 2006, in http://www.culturahistorica.es/tortarolo/riviste_storiche.pdf (acedido em 27 de Fevereiro de 2011).

2.2. Revistas de Cultura na Europa e no Brasil entre 1880 E 1930: A Belle