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CAPÍTULO 3. TRANSDISCIPLINARIDADE

3.6 Os três pilares metodológicos da transdisciplinaridade

3.6.1 A complexidade

Um dos três pilares metodológicos da pesquisa transdisciplinar é, como vimos, a complexidade, que emerge por toda parte, a partir do estudo dos sistemas naturais e sociais, e que se nutre “da explosão da pesquisa disciplinar” (Nicolescu, 2001, p. 41).

Conforme Patrick Paul (2001, p. 200), a noção de complexidade, que já existia no vocabulário corrente, só adentrou no da ciência ao longo do século XX, com os dados que emergiam da física macro e microfísica, e só se instalou na terminologia científica “quando a biologia se apoderou dele”. “Uma primeira concepção da complexidade se caracteriza pela constatação de uma imprevisibilidade parcial do comportamento de um sistema” (ibid.).

Vimos no item anterior que a ciência que nasceu no século XVII, numa ruptura profunda em relação à visão de mundo anterior e tradicional, se apoiou no paradigma da simplicidade da física clássica e numa idéia de separação total entre o indivíduo observador e a realidade observada. Conforme Edgar Morin, provavelmente o maior sistematizador do conceito de complexidade, a ciência não só tinha a idéia de que o “conhecimento realmente pertinente” se apoiava (1) na

separação entre o sujeito observador e o objeto observado, e também na separação deste em partes, mas em duas outras idéias fortes: (2) a de que o universo era regido pela ordem, e (3) a de que a razão se baseava na dedução51, na indução52 e na lógica aristotélica, que exigia o respeito aos axiomas da não contradição, da identidade e do terceiro excluído (cf. Morin, 2001, p. 22).

Vimos que as três idéias fortes da física (continuidade, causalidade local e determinismo) encontraram seus contraditórios (descontinuidade, causalidade global e indeterminismo) com a descoberta das leis do nível subatômico, e Morin descreve como o desenvolvimento das ciências naturais também derrogaram as três idéias fortes que sustentavam o conhecimento da ciência moderna: “a partir do início do século [XX] ocorre algo realmente revolucionário no campo da ordem e da certeza: é o surgimento da desordem e da incerteza” (ibid. p. 23). A desordem começou a emergir na ciência quando Boltzman enunciou o segundo princípio da termodinâmica, demonstrando que a entropia tende a crescer no universo. Daí surge a tendência para a degradação, para a desordem nos sistemas, uma vez que “no tempo haveria perda da capacidade da energia transformar-se em trabalho”. No entanto, isso não instaurou a desordem, pois “foram detectados quatro princípios de organização – o da gravitação, o das interações intracelulares fortes, o das interações fracas e o das interações eletromagnéticas” (ibid.). Instaurou-se a presença contínua da ordem e da desordem. Foi um grande golpe no paradigma da simplicidade.

Lupasco, o formulador da lógica do terceiro incluído, lembra que, “se o Segundo Princípio da Termodinâmica estipula que um sistema que não puder receber mais energia do exterior” se degrada em energia térmica ou calor (cf. Lupasco, s/d, pp. 10-11), por outro lado, a energia “manifesta uma heterogeneidade crescente” que foi denominada neguentropia progressiva.

Falando sobre essa idéia de ordem, Ilya Prigogine diz que

“La idea de ‘leyes de la naturaleza’ es probablemente el concepto más original de la ciencia de Occidente. (...) Un rasgo básico de esta ley es su carácter determinista. Una vez conocidas las condiciones iniciales, podemos predecir

51 “Forma de raciocínio que parte de uma proposição geral para verificar seu valor por meio de dados particulares. Em

pesquisa, essa proposição é, em geral, uma hipótese, e fala-se então em raciocínio hipotético-dedutivo.” (Laville e Dionne, 1999, p. 332)

52 “Forma de raciocínio consistindo em tirar uma proposição geral do relacionamento de dados particulares.” (Ibid.)

Poranto, não parte de uma hipótese anterior, que verifica com dados particulares, mas parte diretamente dos dados, a partir dos quais conclusões gerais são formuladas.

cualquier posición pasada o futura de una trayectoria. Más aún, la ley de Newton es temporalmente reversible: si a un valor temporal positivo lo reemplazamos por outro negativo, la ley de Newton permanece invariante. (...) Siegue siendo válida esta suposición en nuestros dias? Ha tenido lugar un cambio drástico. Como testimonio de este cambio, citemos la solemne declaración efectuada en 1986 por sir James Lighthill, en ese momento presidente de la Unión Internacional de Mecánica Teórica y Aplicada: ‘Aqui debo formular una proposición, hablando nuevamente en nombre de la gran fraternidad mundial de quienes se dedican a la mecánica. Hoy tenemos plena conciencia de que el entusiasmo de nuestros antecesores por los maravillosos logros de la mecánica newtoniana los llevó a hacer ciertas generalizaciones en este área de predictibilidad, en las que en general tendíamos a creer antes de 1960, pero que ahora reconocemos como falsas. Deseamos pedir disculpas colectivas por no haber encaminado en la direción adecuada al público culto en general, difundiendo ideas sobre el determinismo de los sistemas que se atienen a las leyes del movimiento de Newton, ideas que después de 1960 demonstraran ser incorrectas” (2002, p. 38).

Segundo Prigogine, estas desculpas dizem respeito ao descobrimento “da instabilidade dinâmica ou o ‘caos’”, que fez com que o conceito de leis determinísticas da natureza tivesse de ser revisto para “incluir a probabilidade e a irreversibilidade”.

Retornando Morin, outra idéia forte do conhecimento da ciência moderna, a do princípio de separação no conhecimento, começou a ruir nos anos cinqüenta, com o surgimento do que pode ser chamado de ciências sistêmicas, sobretudo na ecologia, que, a partir da década de trinta, passou a se apoiar no conceito de ecossistema, isto é, “as interações entre os diferentes seres vivos, vegetais, animais, unicelulares” (ibid., p. 24), constituindo um fenômeno organizado que, no seu todo, tem “certo número de propriedades que não se encontram nos elementos concebidos isoladamente”. O mesmo passa a emergir em outras ciências, tais como as ciências da Terra, a cosmologia, e até mesmo a economia. O átomo, as moléculas, a sociedade, o homem são sistemas e sistemas de sistemas. Tudo depende de tudo. Mais uma vez, o paradigma da simplicidade se viu enfraquecido. A outra separação, entre o observador e o objeto da sua observação, também mostrou sua limitação. “Nenhum ser vivo pode viver sem seu ecossistema, sem seu meio ambiente. Isso quer dizer que não podemos compreender alguma coisa de modo autônomo, senão compreendendo aquilo de que ele é dependente.” (ibid., p. 25) Isso também significou uma revolução no pensamento, que, até então,

postulava que o conhecimento ideal exigia que se fechasse inteiramente um objeto e, assim isolado, fosse estudado exaustivamente. A não-separabilidade entre observador e seu objeto emergiu não apenas na física do interior do átomo, mas também na sociologia e na antropologia. “Não passava de uma ilusão quando acreditávamos eliminar o observador nas ciências sociais. Não é só o sociólogo que está na sociedade; conforme a concepção hologramática, a sociedade também está nele: ele é possuído pela cultura que o possui. Como poderia julgar sua própria sociedade e as outras sociedades?”53 (Morin, 2000, p 185). A fronteira entre a ciência e a filosofia também vai deixando de ser pertinente em muitas questões fundamentais da ciência de hoje: “quando a ciência física aborda os problemas das origens do universo, esbarramos em questões filosóficas” (Morin, 2001a, p. 26). “Tudo isso não é só uma volta à modéstia intelectual, também é voltar a uma aspiração autêntica da verdade.” (Ibid., 2000, p. 185)

“O esforço empregado para compreender corretamente os modos de pensamento estranhos à tradição racionalista ocidental, isto é, em primeiro lugar, para decifrar a significação dos mitos e dos símbolos, traduz-se num enriquecimento considerável da consciência. (...) Em outras palavras, deve-se abordar ⎯ e, felizmente estamos começando a fazê-lo ⎯ símbolos, mitos e ritos oceânicos ou africanos com o mesmo respeito e o mesmo desejo de aprender demonstrados com referência às criações culturais ocidentais.” (Eliade, 1991, p. 5)

Essa volta à modéstia intelectual citada por Morin e essa postura de respeito diante das outras culturas são determinantes para a atitude transdisciplinar e para o diálogo transcultural e transreligioso que essa atitude fomenta. (Os três pilares metodológicos da pesquisa transdisciplinar também se mostram eficazes para isso, o que ficará mais claro nos dois próximos itens, que tratam justamente dos dois outros pilares: a lógica do terceiro incluído e os diferentes níveis de realidade.) A terceira idéia, a da razão apoiada na lógica aristotélica ⎯ “a ciência clássica via no aparecimento de uma contradição o sinal de um erro de pensamento e supunha que o universo obedecia à lógica aristotélica” (Morin, 2000, p. 29) ⎯ começou a encontrar seus limites não só nas ciências físicas,

53 Mircea Eliade, falando sobre a maneira como os antropólogos e sociólogos estudavam os textos e as obras de outras

culturas observa que esses “documentos humanos haviam sido estudados anteriormente com o desinteresse e a indiferença que os naturalistas do século XIX dedicavam ao estudo dos insetos. Agora começa-se a perceber que esses documentos exprimem situações humanas exemplares, que fazem parte integrante da história do espírito. Ora, o meio apropriado para se apreender o sentido de uma situação humana exemplar não é a ‘objetividade’ do naturalista, mas a simpatia inteligente do exegeta, do intérprete” (1991, p. 4).

com as descobertas dos paradoxos do universo subatômico, mas também com os paradoxos lógicos que emergiram na ciência mais rigorosa – a teoria matemática – com o teorema de Gödel. “O teorema de Gödel nos diz que um sistema de axioma suficientemente rico leva, inevitavelmente, a resultados quer indecidíveis, quer contraditórios.” (Nicolescu, 2001, p. 58)

Como vimos no histórico do pensamento transdisciplinar, essa derrogação (não invalidação, mas a restrição da sua pertinência) da lógica aristotélica, devido à constatação da existência da contradição na natureza e na própria lógica, foi a base para a constituição da lógica não clássica do terceiro incluído, o pilar metodológico do pensamento transdisciplinar que apresentarei em seguida.

Diante desses pares de contraditórios que emergem nesses três pilares do conhecimento da ciência moderna, a ordem, a separabilidade e a razão, Morin sugere que se caminhe em direção a uma razão aberta, que não se restrinja aos princípios da lógica clássica. Não se trata, segundo ele, de substituir a ordem pela desordem, a separabilidade pela não-separabilidade, nem a lógica clássica por uma outra lógica ou por uma desrazão. Para Morin, a complexidade que emerge na própria tessitura do cosmo é a dialógica entre esses pares de contraditórios, considerando que, segundo ele, a etimologia de complexus é “o que é tecido junto” (2001a, p. 33).

Para Morin, essa tessitura se estrutura em diferentes níveis de organização, como no modelo sistêmico, mas não em diferentes níveis de organização e diferentes níveis de realidade, como no modelo transdisciplinar. Na formulação da complexidade proposta por Morin não há uma abertura epistemológica para os diferentes níveis de realidade e para os diferentes níveis de percepção não disciplinares. Morin não abre o campo de sua reflexão para além do nível psico-emocional-mental no campo do sujeito, nem do nível microfísico no campo da natureza, portanto: não a abre para um diálogo real com a metafísica, com as tradições de sabedoria e com a mística. Como diz Patrick Paul, “talvez é nesse nível que se pode diferenciar o conceito da complexidade nas duas epistemes: construtivista e transdisciplinar” (2001, p. 201). Portanto, embora muitíssimo importante e enriquecedora, a abordagem proposta por Morin mantém-se fechada para alguns diálogos transdisciplinares, na definição mais forte do conceito, como proposta pelos eventos internacionais de 1986, 1991, 1994 e 1997 citados nos itens anteriores.

E, se o problema da dialógica de Morin “consiste em colocar juntos princípios, idéias ou noções que parecem se opor uns aos outros”, Patrick Paul observa que a “finalidade da problemática dialógica é, podemos supô-lo, a emergência de um ‘terceiro’ que pode se encontrar excluído ou incluído conforme o sistema que se exprime” (ibid., p. 203). Se a dialógica moraniana não explicita a

emergência do terceiro termo noutro nível do sujeito, ou noutro nível da natureza, a metodologia da pesquisa transdisciplinar definida nos congressos citados e aprofundada por autores como Basarab Nicolescu, Patrick Paul, Gilbert Durand e outros estabelece essa constatação dos limites da lógica clássica e dos seus três princípios como a base de um segundo pilar metodológico, pilar esse que é uma lógica dinâmica do contraditório (a chamada lógica do terceiro incluído, formulada por Stéphane Lupasco) e que emergiu da experiência científica contemporânea, pois “o postulado de uma realidade contraditória e de sua unidade aberta paradoxal é o assento metodológico dos diferentes níveis de realidade” (Paul, ibid.).

E se, na seqüência de Paul, compararmos a etimologia de simples e de complexo (“simplex, dobrado uma só vez, e complexus, dobrado muitas vezes”), essas diferentes dobras “são uma metáfora sugestiva dos diferentes níveis de realidade que podemos imaginar ‘dobrados’ entre eles, entrelaçados e imbricados” (ibid.). E isso abre um possível diálogo forte ⎯ que retomarei no item que trata dos níveis de realidade ⎯ com uma das teorias físicas mais estudadas desde a década de 70, a Teoria das Supercordas, que requer um espaço-tempo multidimensional com dez dimensões: nove de espaço e uma de tempo, sendo que seis dimensões de espaço estariam enroladas umas sobre as outras no nível subquântico, o nível do laço vibrante, que seria regido por outras leis e por outra lógica, e que unificaria a mecânica quântica e a relatividade geral.