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CAPÍTULO 3. TRANSDISCIPLINARIDADE

3.3 O conceito de “interdisciplinaridade”

Vemos que o conceito de interdisciplinaridade é muito mais complexo em suas definições do que os dois primeiros, multi e pluridisciplinaridade: “Algo que pode ser facilmente observado nos trabalhos e discursos sobre a interdisciplinaridade é a pouca clareza deste conceito” (Santomé, 1998, p. 45).

O Webster’s Ninth New Collegiate Dictionary e o Supplement to the Oxford English Dictionary indicam que o termo interdisciplinaridade é encontrado pela primeira vez na edição de dezembro de 1937 do Journal of Educational Sociology e, logo em seguida, “num boletim da associação pos- doutoral da Social Science Research Concil” (Klein, 1996, p. 9). Klein observa que, embora seja comum dizer-se que a interdisciplinaridade tem origens muito antigas, remontando a Platão e chegando a William James (1842-1910), como a disciplinaridade “na sua forma presente é o resultado de um desenvolvimento relativamente recente, datando de pouco mais de um século” (ibid., p. 6), não seria apropriado chamar de interdisciplinares as interações anteriores entre os saberes, mas de pré-disciplinares.

No Brasil, “os dois maiores disseminadores da interdisciplinaridade” são Ivani Fazenda e Hilton Japiassu, que “possuem em Georges Gunsdorf um denominador comum” (Silva, 2001, p. 72). Gusdorf, filósofo francês contemporâneo, escreveu uma obra monumental sobre a história dos saberes no Ocidentes moderno: Les sciences humaines et la pensée occidentale. Ele teria sido o primeiro a apresentar uma proposta de trabalho interdisciplinar, num projeto apresentado à UNESCO, em 1961, que, embora não tenha se realizado, marcou o surgimento efetivo da área (cf. ibid.). O lançamento do livro de Japiassu Interdisciplinaridade e patologia do saber, em 1976, com prefácio de Gusdorf, “foi o marco inicial da disseminação do interdisciplinar” no Brasil. Ivani Fazenda entrou em contato com Japiassu, que a apresentou a Gusdorf. Esse encontro levou Fazenda a instaurar e coordenar um programa de pesquisa sobre a interdisciplinaridade, que resultou, em 1986, na criação do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Interdisciplinaridade na Educação (GEPI), na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, que se disseminou para outras universidades e se tornou o grupo mais influente sobre o tema no Brasil.

Segundo Ivani Fazenda, os estudos sobre a interdisciplinaridade começam na década de 60, “entre os teólogos e fenomenólogos na busca de um sentido mais humano para a Educação” (2003, p. 5). Numa pesquisa que realizou no início da década de 70, Fazenda constatou que “o termo interdisciplinaridade não possui ainda um sentido único e estável e que, embora as distinções terminológicas fossem muitas, todas elas obedeciam a um único princípio: a intensidade da troca entre os especialistas e a integração das disciplinas num mesmo projeto de pesquisa” (ibid, p. 48). O que podemos constatar é que a interdisciplinaridade é definida seja como transferência de métodos de uma disciplina para outra, seja como trocas entre especialistas, seja como diálogo entre atores das disciplinas acadêmicas e da sociedade civil, seja como tudo isso ao mesmo tempo.

“Naquela época, discutia-se conceitos básicos: pluri, multi, inter e transdisciplinaridade. A graduação entre esses conceitos estabelecia-se por via da coordenação e cooperação entre as disciplinas. Ao dizermos pluri ou multi, imaginamos uma justaposição de conteúdos pertencentes a disciplinas heterogêneas, podemos também pensar na integração de conteúdos dentro de uma mesma disciplina. Ao tratarmos da inter, teríamos algo mais, uma relação de reciprocidade, de interação que pode propiciar o diálogo entre os diferentes conteúdos desde que haja uma intersubjetividade presente nos sujeitos. Assim sendo, começava aí a grande complexidade que acompanharia seqüencialmente todos os estudos sobre interdisciplinaridade nas três décadas seguintes. (...) A proposta transdisciplinar, iniciada como discussão naquele momento, falava desta possibilidade.” (Ibid, p. 48-49)

Essa busca de uma intersubjetividade entre os sujeitos engajados em práticas educativas tem sido um dos aspectos fortes da interdisciplinaridade no Brasil, o que faz com que esteja bastante próxima da definição mais forte do conceito de “transdisciplinaridade”, como Fazenda indica nessa passagem e como veremos a seguir.

Se, durante o século XX, a tendência para a hiperespecialização crescente gerou seu pólo antagônico e complementar de busca da unificação do saber, esses dois pólos cooperaram para o desenvolvimento da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade. (Abordarei aqui apenas a primeira, pois tratarei da transdisciplinaridade logo em seguida). A hiperespecialização fez com que o aprofundamento de cada disciplina as conduzisse às fronteiras de outras disciplinas, suscitando uma interdisciplinaridade que ou criou novas disciplinas ou transferiu métodos de uma disciplina para outra, ou abriu corredores para o diálogo entre elas e para a resolução de problemas. Esse diálogo possibilitou a troca de conteúdos disciplinares que, como observou Fazenda, é tanto mais facilitada quanto mais o ambiente (núcleo, centro, instituto, projeto) favorecer as trocas intersubjetivas dos diferentes especialistas disciplinares envolvidos. Além disso, o aprofundamento de cada disciplina e a aproximação pela hiperespecialização também cooperou para a percepção dos limites de cada disciplina, dos espaço de fronteira entre as disciplinas e da percepção de que qualquer fenômeno humano, social ou natural é composto por diferentes dimensões ou por diferentes níveis.

A complexidade do mundo e da cultura atual reforçaram, por outro lado, a busca da unificação (ou reunificação) do saber e, apoiadas nas novas teorias pedagógicas (Claparède, Dewey, Decroly, Montessori, Freire, Piaget, Vigotsky), psicológicas (Gestalt, psicologia piagetiana, psicologia

vigotskyana,), científicas (teoria geral de sistemas, teoria da complexidade), cooperaram tanto para o desenvolvimento das pedagogias ativas e globalizadoras, quanto para as abordagens inter e transdisciplinares como abertura do diálogo entre os saberes das diferentes disciplinas e entre os sujeitos das diferentes disciplinas.

Veremos adiante que quanto mais níveis do sujeito incluir, metodologicamente, e quanto mais áreas do conhecimento humano (ciências, arte, filosofia e tradição) trouxer para o diálogo, devido a uma abertura epistemológica definida, mais a interdisciplinaridade se aproximará da transdisciplinaridade, e que uma não excluirá a outra nem ambas excluirão a disciplinaridade, a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade.

Outro fator que reforçou a busca de um saber mais global, além da resolução de problemas cada vez mais complexos gerados pela epistemologia reducionista e pela sociedade tecnológica atual, foi o próprio mercado profissional. As mudanças crescentes e rápidas do conhecimento, o excesso de profissionais para quase todas as áreas da atuação profissional, a diminuição do mercado de trabalho devido à substituição do homem pela máquina fizeram com que as próprias empresas demandassem, além de um processo de educação permanente, mais profissionais formados com uma visão o mais abrangente e flexível.

O primeiro levantamento das atividade interdisciplinares foi realizado no início da década de 60 pelo Centro de Pesquisa e Inovação Educacional da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e “ele encontrou cinco origens principais: o desenvolvimento da ciência, a necessidade dos estudantes, demandas para capacitação profissional, necessidades básicas da sociedade e problemas no funcionamento e administração da universidade” (Klein, 1996, p. 20). Em 1982, essa mesma instituição declarou que as atividades interdisciplinares exógenas à universidade deveriam ter prioridade em relação às atividades endógenas (baseadas na produção de um novo conhecimento com o objetivo de realizar a unidade da ciência), pois os problemas “reais” da sociedade demandavam cada vez mais que a universidade desempenhasse sua missão social. Segundo Klein, esse foi um dos fatores que fizeram com que a interdisciplinaridade tivesse se voltado prioritariamente para a resolução de problemas, em detrimento da reflexão teórica (cf. ibid., p. 12).

Alguns autores citam iniciativas de pesquisas interdisciplinares já antes da primeira metade do século passado.

Santomé faz referência, na década de 20, aos filósofos cientificistas, fisicalistas e neopositivistas do Círculo de Viena (Otto Neurath, Rudolf Carnap, Charles Morris), com seu projeto de uma

Enciclopédia de Ciência Unificada, mas eles queriam basear essa “unidade da ciência” num reducionismo fisicalista, reduzindo tudo à física e à realidade física (1998, p. 49). Pouco depois, nas universidades americanas, teria havido um aporte orçamentário de diversos departamentos para o fomento de pesquisas interdisciplinares, mas que quase nada gerou de efetivamente interdisciplinar (ibid., 52) O mesmo autor faz referência a alguns momentos históricos que mostraram a força ou a necessidade da participação de especialistas de várias disciplinas para a resolução de problemas práticos complexos, entre os quais, a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, que estimularam a criação de equipes multi ou pluridisciplinares para tratar as situações militares (ganhar batalhas, produzir artefatos, etc.). Segundo ele, essas iniciativas teriam “criado escola”, pois, após a guerra, grupos de cientistas de formações heterogêneas começaram se instituir para dar subsídios às decisões políticas (cf. ibid., p. 53). Cita também a NASA, a Agência Aeroespacial Russa e a OTAM como exemplos de grandes organizações que abrigam especialistas de inúmeras disciplinas.

Parece-me, no entanto, que todos esses exemplos, excetuando o primeiro (do Círculo de Viena), correspondem a experiências pluridisciplinares. No caso das propostas do Círculo de Viena, parece- me que elas se encaixam no que Le Moigne chamou de interdisciplinaridade de tipo transdisciplinar: “uma modelização epistemológica nova para a compreensão de fenômenos”. No entanto, por se apoiar numa posição epistemológica fisicalista, reducionista, corresponderia a um grau baixo de transdisciplinaridade, devido à sua baixa “satisfação dos três pilares metodológicos da pesquisa transdisciplinar” (Nicolescu, 2001, p. 53). Voltarei adiante a essa questão dos diferentes graus de transdisciplinaridade.

Duas teorias teriam cooperado muito para fomentar a pesquisa interdisciplinar: o estruturalismo e a Teoria Geral dos Sistemas (cf. Santomé, 1998, p. 50). O estruturalismo,44 embora criado pelo lingüista Saussure (1857-19130) visando descobrir as estrutura abstratas por trás das línguas, expandiu-se para muitas outras áreas, especialmente com os trabalhos do antropólogo Claude Lévi Strauss (1908- ) na década de 50, nos quais este procurou mostrar que por trás das culturas mais diversas há estruturas profundas comuns, que aparecem como que em camadas: Structures

élémentaires de la parenté (1949), Anthropologie structurale (1958).

44 “Doutrina filosófica que considera a noção de estrutura fundamental como conceito teórico e metodológico.

Concepção metodológica em diversas ciências (lingüística, antropologia, psicologia, etc.) que tem como procedimento a determinação e a análise de estruturas.” (Japiassu, 1991, p. 90)

A Teoria Geral dos Sistemas foi formulada pelo filósofo e biólogo Ludwig von Bertalanffy (1901- 1972) na década de 60 e apresentada em seu livro General System Theory (1968). Tendo estudado os fenômenos biológicos e suas diferenças em relação aos fenômenos físicos, buscou identificar as uniformidades estruturais entre os diferentes níveis, a fim de tornar possível aplicar os mesmos modelos conceituais a fenômenos diferentes, constituindo assim uma teoria interdisciplinar. “Sua teoria geral dos sistemas seria uma disciplina formal, aplicável às várias ciências empíricas, transcendendo fronteiras disciplinares” (Vasconcelos, 2003, p. 27) e seus conceitos e modelos seriam “aplicáveis tanto a fenômenos materiais, como a fenômenos não-materiais (ibid., p. 196). O próprio Bertalanffy chamou a atenção para a existência, naquela época, de duas vertentes básicas nas ciências dos sistemas, uma, mecanicista; outra, organicista. A primeira correspondia à sua Teoria Geral dos Sistemas e a segunda, à Teoria Cibernética.

A meu ver, embora não tenham sido apontadas por Santomé, a Teoria Cibernética de Segunda Ordem e a Teoria da Complexidade cooperaram tanto quanto as duas por ele citadas para o fomento de pesquisas verdadeiramente interdisciplinares.

A Teoria Cibernética foi criada pelo matemático Norbert Wiener na década de 50, com a finalidade de construir “sistemas que reproduzissem os mecanismos de funcionamento dos sistemas vivos, ou seja, com a proposta de construção dos chamados autômatos simuladores de vida ou máquinas cibernéticas” (ibid., p. 186). Embora tenha ultrapassado as fronteiras disciplinares, pois para projetar os sistemas artificiais era necessário compreender os sistemas naturais ⎯ biológicos, humanos e sociais ⎯ , essa teoria, devido à sua perspectiva mecanicista e reducionista, fomentou uma interdisciplinaridade fraca, mais próxima da pluridisciplinaridade, e não uma interdisciplinaridade forte, como a Teoria Geral dos Sistemas, epistemologicamente mais ampla. Esta abrange sistemas que contêm características que não podem ser reduzidas ao conceito de máquina proposto pelo modelo cibernético daquela.

A Teoria Cibernética de Segunda Ordem foi elaborada pelo físico Heinz von Foerster (1911- ), cujo interesse pela filosofia, pela lógica, pela matemática e pela linguagem o levou a desenvolver pesquisas sobre a “cognição”. Ao tomar conhecimento da Teoria Cibernética, na década de 50, apropriou-se da sua linguagem e passou a contribuir para o seu desenvolvimento, mas ao encontrar-se com o biólogo chileno Humberto Maturana, no fim da década de 60, com seu conceito de auto- organização (autopoiésis) do sistema nervoso e de todos os sistemas vivos, passa a estabelecer uma distinção entre sistemas triviais (máquinas) e sistemas não-triviais (todos os sistemas naturais). Os primeiros são previsíveis, enquanto os segundos são imprevisíveis, pois “são sensíveis a modificações

de seus próprios estados internos, os quais vão se tornando diferentes à medida que eles funcionam” (ibid., p 243), estabelecendo uma relação forte entre o seu comportamento e o seu passado. Isso fez com que concluísse que a observação do cientista dependia das características da sua estrutura e, portanto, que era necessário incluir no sistema o observador do mesmo. Esse giro sobre o próprio observador gerou a Cibernética da Cibernética, em 1974, também chamada de Cibernética de Segunda Ordem. Entre 1958 e 1976, Foerster dirigiu o Laboratório de Computação Biológica, na Universidade de Illinois, referência mundial das pesquisas cibernéticas, onde desenvolveu o primeiro “megacomputador” e onde eram realizadas “pesquisas interdisciplinares sobre sistemas auto- organizadores” (ibid., p. 242) e experiências inovadoras no campo do ensino e da aprendizagem. Quanto à Teoria da Complexidade, que citei como tendo contribuído para o desenvolvimento da interdisciplinaridade, será apresentada logo adiante, quando tratarei da transdisciplinaridade, pois, se esta teoria deu subsídios importantes para a pesquisa e a prática interdisciplinares, a complexidade, que começou a ser constatada por todos os lados na ciências chamadas duras, foi fundamental para a emergência da metodologia transdisciplinar, de tal modo que foi definida em alguns congressos internacionais como um dos pilares metodológicos da pesquisa transdisciplinar. O impulso dado por essas teorias suscitou, segundo Santomé, alguns momentos marcantes no histórico da reflexão sobre a interdisciplinaridade, entre os quais destaca o I Seminário Internacional sobre a Pluridisciplinaridade e a Interdisciplinaridade, realizado na Universidade de Nice (França), de 7 a 12 de setembro de 1970, organizado pelo Centro para a Pesquisa e a Inovação do Ensino (CERI), e patrocinado pelo Ministério da Educação Francês e pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico).

O objetivo do seminário era aprofundar esses conceitos, analisar sua utilidade no ensino e na pesquisa e sua adequação no desenvolvimento do conhecimento e da sociedade naquele momento (cf. Santomé 1998, p. 52). Participaram representantes de 21 países e grande parte dos participantes tinha perspectivas sistêmicas e estruturalistas.

No que diz respeito à definição dos conceitos, não havia e nem houve consenso na conceitualização da interdisciplinaridade (ibid.). Inclusive, em fevereiro de 1970, numa reunião preparatória para o seminário de setembro, que contou com a presença de especialistas de grande renome, alguns destes propuseram que o seminário fosse chamado “seminário sobre a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade”. Voltarei à questão do título deste evento em seguida, quando tratar do surgimento do conceito de transdisciplinaridade.

O maior grau de consenso entre os participantes do Seminário de Nice foi que “a crescente complexidade dos problemas enfrentados pelas sociedades modernas” e a grande velocidade das mudanças “exigem políticas científicas que fomentem o trabalho e a pesquisa interdisciplinar” (ibid.). Isso fez com que, a partir de então, apesar da falta de consenso quanto à definição do conceito de interdisciplinaridade, a UNESCO e a OCDE passassem a apoiar e a promover debates, seminários e colóquios de caráter internacional para promover a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade.

Esses eventos internacionais, a maioria promovida pela UNESCO, foram dando uma definição cada vez mais clara ao conceito de transdisciplinaridade.

Marcantes nesse sentido foram o colóquio A Ciência Diante das Fronteiras do Conhecimento (1986), o congresso Ciência e Tradição: Perspectivas Transdisciplinares para o século XXI (1991), o I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade (1994) e o Congresso Internacional de Transdisciplinaridade “Que Universidade para o amanhã? Em busca de uma evolução transdisciplinar da Universidade” (1997), todos eles organizados pela UNESCO ou apoiados por essa instituição. Como o documento final do Congresso Internacional de Transdisciplinaridade, realizado em Locarno (Suíça), propôs uma definição para esses diferentes níveis de relações disciplinares (pluri, inter e transdisciplinaridade), e o fez de uma maneira que, de algum modo, sintetiza as diferentes acepções dadas pelos diversos autores para cada um deles ⎯ com a exceção do conceito de interdisciplinaridade que, como vimos, ainda é demasiadamente plural ⎯, eu as apresentarei aqui para concluir este item e preparar o próximo.

“O crescimento sem precedentes dos saberes em nossa época torna legítima a questão da adaptação das mentalidades a esses saberes. O desafio é de grande porte, pois a contínua expansão da civilização de tipo ocidental para todo o planeta tornaria sua queda equivalente a uma catástrofe planetária de proporções muito maiores do que as das duas primeiras guerras mundiais. (...) A necessidade indispensável de vínculos entre as diferentes disciplinas se traduz pelo surgimento, na metade do século XX, da pluridisciplinaridade e da interdisciplinaridade.

“A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma única disciplina

por diversas disciplinas ao mesmo tempo. Por exemplo, um quadro de Giotto pode ser estudado pelo enfoque da história da arte cruzado com o da física, da química, da história das religiões, da história da Europa e da geometria. Ou a filosofia marxista pode ser estudada pelo enfoque da filosofia entrecruzada com a física, a economia, a psicanálise ou a literatura. O objeto em questão sairá, assim, enriquecido pelo cruzamento de várias disciplinas. O conhecimento do objeto em sua própria disciplina é aprofundado por um fecundo aporte pluridisciplinar. A pesquisa pluridisciplinar enriquece a disciplina em questão (a história da arte ou a filosofia, em nossos exemplos), porém esse enriquecimento está a serviço apenas dessa disciplina. Em outras palavras, a abordagem pluridisciplinar ultrapassa as disciplinas, mas sua

finalidade permanece inscrita no quadro da pesquisa disciplinar.

“A interdisciplinaridade tem uma ambição diferente daquela da pluridisciplinaridade. Ela diz respeito à transferência dos métodos de uma

disciplina à outra. É possível distinguir três graus de interdisciplinaridade:

a) um grau de aplicação. Por exemplo, os métodos da física nuclear transferidos à medicina conduzem à aparição de novos tratamentos de câncer; b) um grau epistemológico. Por exemplo, a transferência dos métodos da lógica formal ao campo do direito gera análises interessantes na epistemologia do direito; c) um grau de geração de novas disciplinas. Por exemplo, a transferência dos métodos da matemática ao campo da física gerou a física-matemática; da física de partículas à astrofísica, a cosmologia-quântica; da matématica aos fenômenos meteorológicos ou aos da bolsa, a teoria do caos; da informática à arte, a arte- informática. Como a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade também permanece inscrita na pesquisa

disciplinar. Seu terceiro grau inclusive contribui para o big-bang disciplinar. A transdisciplinaridade, como o prefixo ‘trans’ o indica, diz respeito ao que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual, e um dos

imperativos para isso é a unidade do conhecimento.”

No próprio Congresso de Locarno (1997), a definição do conceito de transdisciplinaridade foi ainda mais longe, pois foram estabelecidos os três pilares metodológicos da transdisciplinaridade e os sete eixos básicos da evolução transdisciplinar da Universidade. No I Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, realizado em outubro de 1994, em Arrábida (Portugal), foi elaborado um

documento da transdisciplinaridade, intitulado Carta da Transdisciplinaridade (ver Anexo 1), que contém 14 artigos e que foi assinado por todos os participantes.

Retornarei adiante a esses documentos e, especialmente, a esses três pilares da metodologia transdisciplinar, pois todas as emergências formativas do CETRANS têm se apoiado neles. Porém, antes de aprofundá-los, convém retornar ao surgimento do termo.