• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3. TRANSDISCIPLINARIDADE

3.6 Os três pilares metodológicos da transdisciplinaridade

3.6.2 A lógica do terceiro incluído

A lógica, enquanto regulação do pensamento válido, foi organizada pela primeira vez por Aristóteles, a partir da teoria do Ser de Parmênides, das argumentações e opiniões dos sofistas, do princípio de “razão suficiente” de Demócrito, da maiêutica de Sócrates e da dialética de Platão. Nos últimos séculos, a lógica aristotélica passou por momentos de valorização e desvalorização. As correntes filosóficas aristotélicas de toda a Idade Média a tinham-na em alta conta, mas as correntes platônicas e neoplatônicas a relativizavam. Francis Bacon (1561-1626) criticou o excesso do uso dos silogismos lógicos aristotélicos, das inferências dedutivas, e propôs que a ênfase fosse colocada no método indutivo. René Descartes (1596-1650) propôs um novo método, mas não deixou de lado a lógica aristotélica. Emanuel Kant (1724-1804) voltou a lhe dar grande importância; mas John Stuart Mill (1806-1873) condenou o excesso do silogismo aristotélico, das inferências dedutivas, e defendeu o método indutivo.

A lógica aristotélica foi chamada de lógica clássica e formulada em torno de três princípios básicos: 1. O princípio de identidade: uma coisa é o que ela é e não pode ser ao mesmo tempo outra coisa

(A é A).

2. O princípio de não-contradição: uma coisa não pode ser ao mesmo tempo ela mesma e o seu contrário (A não é não-A).

3. O princípio de terceiro excluído: não pode haver intermediário entre a afirmação e a negação de uma coisas. Não é possível existir e não existir, ser e não ser ao mesmo tempo e num mesmo lugar. Não existe um terceiro termo T (T de “terceiro incluído”) que é, ao mesmo tempo, A e não-A.

A frase de Aristóteles na Metafísica, a partir da qual os escolásticos do século XIV formularam o princípio de identidade (A é A), é: “O ente é ente, portanto, o não ente não é ente” (IV, q. 13). Exemplo do princípio de identidade: uma árvore é uma árvore e ela não pode ser e não ser ela mesma.

Conforme Abbagnano, o princípio de não-contradição nasceu como princípio ontológico com Aristóteles, e só passou para o campo da lógica no século XVIII, que então veio a ser considerado uma das leis fundamentais do pensamento (cf. 1997, p. 238). O axioma ontológico da não- contradição (A não é não-A) é: “Nada pode ser e não ser simultaneamente”; o axioma lógico é : “É necessário que toda afirmação seja ou afirmativa ou negativa”, e esses dois axiomas também foram formulados por Aristóteles na Metafísica. Exemplo que desrespeita o princípio de não-contradição: o homem é mortal e algum homem não é mortal.

O princípio do terceiro excluído (não existe um terceiro termo que possa ser ao mesmo tempo A e não-A) se originou do axioma aristotélico “Entre os opostos contraditórios não há um meio”. Exemplo do princípio do terceiro excluído: os ossos humanos ou são brancos ou não são brancos e eles não podem ser ao mesmo tempo e sob a mesma relação brancos e não ser brancos.

Esses três princípios “foram tratados, pelos filósofos e lógicos tradicionais, como leis básicas da razão, do pensamento” (Da Costa, 1980, p. 111). No entanto, a Lógica não se ocupa da verdade, “(...) ela se ocupa das proposições (melhor dito, ela se ocupa das estruturas proposicionais) e de suas relações formais, sem se preocupar com a verdade delas, isto é, sem se preocupar se elas são efetivamente verdadeiras ou falsas (pois isso implicaria preocupar-se com a realidade além do pensamento)” (Alves, 2002, p. 90).

Todavia, como vimos no item anterior, a ciência moderna supunha que o universo obedecia à lógica aristotélica, que ela tinha uma realidade ontológica, mas a própria ciência mostrou, no início do século XX, a existência da contradição e do terceiro incluído na natureza, especialmente na escala do interior do átomo. Surgiram os contraditórios onda e partícula, ordem e desordem, separabilidade e não-separabilidade, reversibilidade e irreversibilidade do tempo, causalidade local e causalidade global, continuidade e descontinuidade, etc. Nicolescu observa que, a partir do momento em que a mecânica quântica se constituiu de maneira definitiva na década de 30, seus fundadores começaram a refletir sobre uma nova lógica, uma lógica quântica, com a finalidade de resolver os paradoxos gerados por essa nova ciência e tentar chegar a uma força preditiva maior do que a que era permitida nesses níveis da pesquisa com a lógica clássica (cf. 2001, p. 35). Surgiram então várias lógicas quânticas, mas a maioria delas modificava o segundo princípio da lógica clássica, a não- contradição, “introduzindo a não-contradição com vários valores de verdade no lugar do par binário (A, não-A)” (ibid., pp. 35-36), mas essas lógicas multivalentes (com vários valores de verdade) não levaram em conta a modificação do terceiro princípio da lógica clássica: o terceiro excluído.

Por exemplo, o lógico polonês Jan Lukasiewicz (1878-1956) formulou uma lógica chamada de “modal polivalente” na qual o princípio da não-contradição era limitado, pois o verdadeiro e o falso eram vistos ambos como possíveis para um fato futuro (exemplo: um mosquito pousará em meu nariz daqui a quinze dias?) ou indecidíveis para questões de localização (exemplo: uma pessoa na soleira da porta está dentro ou fora da casa?), especialmente para as questões de localização na mecânica quântica.

Outra lógica multivalente foi desenvolvida pelo lógico polonês S. Jaskowski, na década de 40, chamada de lógica paraconsistente, na qual o princípio de não-contradição era limitado, pois várias respostas intermediárias entre o verdadeiro e o falso, entre o sim e o não, eram consideradas possíveis (exemplo: as maças de uma macieira estão maduras ou não estão maduras?). E, segundo Newton C. A. da Costa, para “alguns pensadores, a existência de contradição é, aliás, característica básica de toda teoria que traduza qualquer porção não muito restrita da realidade” (1994, p. 147). Na década de 60 foi desenvolvida por Lofti A. Zadeh outra lógica não bivalente, ou seja, que também limitava a validade do princípio de não-contradição (verdadeiro ou falso), pois em enunciados que não são suficientemente precisos entre a certeza de ser verdadeiro e a certeza de não ser verdadeiro existem infinitos graus de incerteza (exemplo: Aquele homem é alto ou baixo? A taxa de risco para aquele empreendimento é grande ou pequena?). Normalmente, um sim ou um não

é uma resposta incompleta a essas questões. Essa lógica foi chamada de Lógica Difusa ou Lógica Fuzzy.

Tornou-se cada vez mais evidente que a “lógica formal, calcada nos princípios de identidade, de não-contradição e de terceiro excluído, afasta de seu âmbito o tempo e o espaço, ou seja, as condições da experiência histórica” (Alves, 2002, p. 59)

Com tudo isso, a ciência chamada clássica (de Newton a Einstein), que se apoiava na noção de leis determinísticas da natureza (a noção de ordem) e na separação (em partes e disciplinas, e em observador e objeto da investigação), que tinham tido sua abrangência restringida, viu a outra noção fundamental na qual se apoiava, os três princípios da lógica clássica, também ter seu campo de validade restringido.

“A primeira vez que se colocou seriamente em dúvida a validade geral da lógica clássica, por motivos oriundos das ciências da natureza, foi com o advento da mecânica quântica, devido às dificuldades conceituais inerentes a seus fundamentos. Assim, o lógico polonês Z. Zawirski, já em 1931, sugeria que para se superar as dificuldades provocadas pelo dualismo onda-corpúsculo, no terreno da física quântica, dever-se-ia utilizar a lógica trivalente de Lukasiewicz. Com o passar do tempo compreendeu-se melhor a complexidade do problema.” (Da Costa, 1980, p. 165)

Assim, pouco a pouco alguns setores da elite intelectual, acadêmica, começaram a se dar conta, pelos dados que emergiam da própria ciência, que a lógica clássica não tinha um embasamento ontológico, ou seja, não se apoiava na realidade. Os especialistas em lógica enfatizavam cada vez mais o fato de as investigações lógicas estarem tomando “novas direções, fecundando e tornando progressiva a Lógica de Aristóteles como um caso particular do conjunto da Lógica” (ibid., p. 147). Portanto, os novos dados das ciências naturais fizeram com que, a partir das primeiras décadas do século XX, começassem a surgir lógicas que modificavam um dos três princípios da lógica clássica: lógicas da diferença ou da alteridade, que derrogavam (limitavam) o princípio de identidade; lógicas da contradição, que derrogavam o princípio da não-contradição. Mas coube ao físico e filósofo Stéphane Lupasco (1900-1988) a formulação da lógica do terceiro incluído, que derrogava o princípio do terceiro excluído. E, com os desenvolvimentos realizados por Basarab Nicolescu no modelo de Lupasco, a lógica do terceiro incluído mostrou-se adequada para tratar uma realidade

aberta e “estruturada em múltiplos níveis, substituindo a realidade unidimensional da ciência clássica” (Paul, 2001, p. 205).

Devido a essas características da lógica formulada por Lupasco, os intelectuais que participaram do Congresso Internacional de Transdisciplinaridade de 1997 consideraram-na adequada para ser um dos três pilares metodológicos da pesquisa transdisciplinar. “O mérito histórico de Lupasco foi mostrar que a lógica do terceiro incluído é uma verdadeira lógica, formalizável e formalizada, multivalente (com três valores de: A, não-A e T) e não-contraditória” (Nicolescu, 2001, p 36). Lupasco fez a constatação seguinte:

“a energia deve possuir uma lógica, que não é a lógica clássica, nem qualquer outra lógica baseada no princípio de uma não-contradição pura, posto que ela implica uma dualidade contraditória em sua natureza, em sua estrutura e em suas próprias funções. Também podemos dizer que duas energias contraditórias, uma energia positiva e uma energia negativa, são logicamente necessárias se os fenômenos energéticos existem e para que eles existam” (1987a, p. 6).

e a desenvolveu na forma de três leis, correspondentes aos três princípios da lógica clássica:

“1. Para que um sistema exista, é necessário que os elementos que o constituem se atraiam e se repilam ao mesmo tempo (...), que os elementos energéticos contenham em si mesmos forças de associação e forças de dissociação simultâneas.

2. Se os elementos constitutivos de um sistema são rigorosamente homogêneos, não há mais elementos e então não há mais sistema; se os elementos são rigorosamente heterogêneos, resulta daí uma diversificação ilimitada, e de novo não há sistema. É preciso então que os constituintes energéticos de qualquer sistema sejam ao mesmo tempo, e contraditoriamente, heterogêneos e homogêneos.

3. Toda energia, qualquer que ela seja e não importa em que domínio, passa de um certo grau de potencialização a um certo grau de atualização, pois uma energia não suscetível de se potencializar se atualizaria definitivamente (...). Mas para que uma energia passe de um estado de potencialidade a um estado de atualização, é necessário também que uma energia antagonista e contraditória a mantenha nesse

estado pela sua própria atualização e possa por sua vez se atualizar para permitir que aquela se atualize” (citado por Paul, 2001, p. 204-205).

Após essa constatação, Lupasco submeteu essa lógica a uma verificação, a fim de que ela pudesse se tornar “um instrumento científico eficaz”, e a traduziu em notações simbólicas ou em símbolos algébricos:

“Nós ligaremos, uma à outra, a afirmação e a negação, a identidade e a não- identidade, anunciando o postulado seguinte: a todo fenômeno ou elemento lógico qualquer (...): e, por exemplo, deve ser sempre associado, estruturalmente e funcionalmente, um anti-fenômeno ou anti-elemento ou anti-evento lógico (...):

não-e; e de tal modo que e ou não-e tem sempre de ser potencializado pela

atualização de não-e ou de e, mas não desaparecer a fim de que seja não-e seja e possa bastar-se a si mesmo numa independência e, portanto, numa não- contradição rigorosa ⎯ como em toda lógica, clássica ou outra, que se baseia na natureza absoluta do princípio de não-contradição” (ibid., p. 9).

Analisando os dados que emergiam das ciências, Lupasco constatou que, se o mundo macrofísico está sujeito ao Segundo Princípio da Termodinâmica,54 “à causalidade clássica e à lógica da não- contradição, da identidade e do terceiro excluído” (Lupasco, s/d, p. 47), o mundo biológico é regido pelo antagonismo entre o heterogêneo e o homogêneo e pela lógica do antagonismo, e o mundo microfísico e o mundo psíquico são regidos pelo equilíbrio entre o heterogêneo e o homogêneo e pela lógica da contradição. Portanto, concluiu que se a energia participava de um processo de homogeneização intrínseca (ou seja, se degradava), também devia haver nela um processo de heterogeneização intrínseca. E haveria diferentes graus de atualização e potencialização da homogeneização (entropia) e da heterogeneização (negentropia) da energia, o que corresponderia a diferentes tipos de matéria: (1) a matéria-energia física (que tende à homogeneização e à entropia), (2) a matéria-energia biológica (que tende à heterogeneização e à negentropia), (3) a matéria- energia atômica e a matéria-energia psíquica (nas quais a homogeneização e a heterogeneização coexistem de maneira antagônica e contraditória). Essa categorização das três matérias de Lupasco tem conseqüências que retomarei quando tratar do outro pilar da metodologia transdisciplinar: os diferentes níveis de realidade.

54 O Segundo Princípio da Termodinâmica estipula que um sistema que não puder receber mais energia do exterior se

Foi Basarab Nicolescu quem explicitou que o terceiro incluído fica claro quando se leva em conta o conceito de “níveis de Realidade”:

“A lógica do terceiro incluído pode descrever a coerência entre os níveis de Realidade pelo processo interativo compreendendo as seguintes etapas: 1. Um par de contraditórios (A, não-A) situado num certo nível de realidade é unificado por um estado T [de terceiro incluído] situado num nível de Realidade imediatamente vizinho; 2. Por sua vez, este estado T está ligado a um par de contraditórios (A’, não-A’), situado em seu próprio nível; 3. O par de contraditórios (A’, não-A’) está, por sua vez, unido por um estado T’ situado num nível diferente de Realidade, imediatamente vizinho daquele onde se encontra o ternário (A’, não-A, T). O processo interativo continua infinitamente até o esgotamento de todos os níveis de Realidade conhecidos ou concebíveis. Em outras palavras, a ação da lógica do terceiro incluído sobre os diferentes níveis de Realidade induz uma estrutura aberta (...) do conjunto dos níveis de Realidade.” (2001, pp. 56-57) Também é interessante a relação que Patrick Paul (2001, p. 209) estabelece entre a disciplinaridade e o terceiro excluído, uma vez que ela se caracteriza “pela exclusão e a diferenciação pluralizável”, apoiando-se na epistemologia positivista; entre a multidisciplinaridade (eu diria, entre a pluridisciplinaridade) e o terceiro excluído, mas com um início de atualização da interação entre as disciplinas que enriquece o objeto; entre a interdisciplinaridade e o terceiro incluído (eu diria, com as lógicas paraconsistentes), com uma atualização ainda maior, que transfere métodos e, em certas abordagens interdisciplinares, inclui o sujeito; entre a transdisciplinaridade e o terceiro incluído e ao terceiro secretamente incluído.55 Segundo ele, “a lógica transdisciplinar de terceiro incluído tenta se desprender dos dois raciocínios precedentes [a lógica formal aristotélica e a dialética de Hegel, Marx e Engels], para se engajar numa lógica dialética do contraditório, que englobaria aquelas que a precedem como modalidades particulares de uma possibilidade mais larga de análise” (ibid., p. 202), e lembra que, se olharmos para a história das ciências e da filosofia, encontraremos esse tipo de raciocínio em vários momentos e bem antes dos tempos modernos, como, por exemplo, em Empédocles, Heráclito de Éfeso, Platão, Nicolau de Cusa.

55 O terceiro secretamente incluído enuciado por Nicolescu corresponde ao que ele chama de nível ou à zona de não-

resistência absoluta (além de qualquer lógica e de qualquer representação), na qual desemboca a estrutura aberta dos níveis de realidade. Retonarei a esses conceitos no próximo item.