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Da circularidade das ciências à fragmentação disciplinar

CAPÍTULO 1. BREVE HISTÓRICO DO PENSAMENTO E DA EDUCAÇÃO NO

1.5 Da circularidade das ciências à fragmentação disciplinar

A educação e a pesquisa disciplinares são relativamente recentes. Instituíram-se, no século XIX, em decorrência do positivismo e da especialização crescente do trabalho na civilização industrial em construção. Mesmo se, desde o século XVII, quando nasce a ciência moderna, o saber começa a ser fragmentado, devido às metodologias científicas propostas pelas epistemologias racionalistas e empiristas, até o século XVIII todos os grandes pensadores tinham uma formação universal. Newton, Pascal, Descartes e Leibniz escreviam tanto sobre a matemática e a geometria como sobre a teologia e a graça. Até Kant, não era possível imaginar um filósofo que não fosse, ao mesmo tempo, físico (cf. Kourilsky, 2002, p. 19).

A divisão disciplinar do século XIX e XX teve origem em fraturas anteriores no corpo do conhecimento. A primeira delas foi causada pela entrada das obras de Aristóteles no Ocidente, que estabeleceu uma divisão entre uma Teologia mística ⎯ também chamada de Teosofia ou Gnose ⎯ e uma Teologia racional, entre uma hermenêutica (interpretação) espiritual (multidimensional, simbólica e esotérica21) dos livros sagrados e uma hermenêutica racional (bi ou unidimensional e exotérica), causando uma ruptura entre fé e contemplação22 ou entre fé e iluminação. A partir do século XIV, a teologia racional foi se tornando predominante, causando uma segunda divisão, uma segunda ruptura no corpo do conhecimento, dessa vez entre razão e fé. Como as faculdades cognitivas do homem, que dariam acesso aos níveis supra-sensíveis (a intuição, a inteligência, a imaginação verdadeira, a contemplação e o êxtase) tinham sido descartadas, a razão foi elevada à

Aristóteles (compilação de trechos de obras de Plotino e de Proclo) ⎯ tinha sido escrita pelo Estagirita, essa ruptura não aconteceu.

21 “Os dois adjetivos exotérikos e ésotérikos pertencem ao vocabulário filosófico da Grécia antiga; designam e

distinguem, ao mesmo tempo, os aspectos exteriores e interiores de um mesmo ensinamento, dispensado conforme o desenvolvimento dos alunos.” (Laurant, L’ésoterisme, Paris, Cerf, 1993, p. 15) Essa distinção entre o ensinamento exotérico e o esotérico também pode ser encontrada nas primeiras escolas cristãs, nas ordens de cavalaria cristãs e nas organizações de ofício da Idade Média. Os escritos de um dos primeiros pais da Igreja, Clemente de Alexandria (150- 217 d.C.), por exemplo, sobre a pedagogia e a gnose cristãs, preparam os alunos “por graus para receberem a doutrina secreta dos Apóstolos” (ibid., p. 21). Os diferentes níveis de interpretação das Escrituras Sagradas também eram clássicos desde Orígenes de Alexandria até Hugo de São Vítor: o sentido literal, o moral, o alegórico e o espiritual ou anagógico, mas este último (“esotérico”) foi se perdendo a partir do século XIII.

22 “Conhecimento de Deus e das realidades divinas, não por vias e métodos discursivos e, sim, pela vivência.” (Novo

condição de faculdade cognitiva suprema. Começou-se, então, a fragmentar o mundo sensível, com a razão e com os sentidos, para compreender suas partes separadamente, tornar a juntá-las e poder ter um conhecimento global do cosmo sensível. A partir do século XVII começa a ser gestada outra fratura, agora entre ciência e filosofia, o que suscitou, no século XVIII, a separação de algumas universidades européias em Faculdade de Ciências e Faculdade de Letras, e, posteriormente, a divisão do conhecimento em duas grandes áreas: ciências exatas e ciências humanas.

Vimos que a antiga educação grega ignorava a distinção entre religião, cultura e educação, entre

mythos e logos, pois estava toda ela enraizada na religião, no modelo mitológico.

Foi com o surgimento da polis que os sofistas, pela primeira vez, organizaram os saberes de maneira “disciplinar”, para retransmiti-los à nova classe dirigente,23 enfatizando a formação intelectual (retórica e oratória) em detrimento da espiritual. O sistema de educação superior, estruturado por eles, continha, além da retórica, a gramática, a dialética, a aritmética, a geometria, a música e a astronomia, o que suscitou o surgimento de especialistas e de obras especializadas nessas ciências, e gerou, também, dois grandes caminhos pedagógicos: a transmissão de um saber enciclopédico ou a formação do espírito nos seus diversos campos.

Platão, na República, divide o saber em três níveis. Formação básica, destinada a todos, e composta pela Ginástica, para a beleza do corpo, e pela Música, para a beleza da alma. Formação média, destinada aos guerreiros, composta pela Logística (ciência do cálculo), Aritmética (ciência dos números), Geometria Plana, Astronomia (ciência dos sólidos em movimento), Música (num sentido superior ao da formação básica). Formação superior, destinada aos filósofos governantes, composta pela Dialética, que conduz à ciência perfeita, a Gnose: conhecimento das Idéias e do Bem supremo. Divide, além disso, todas elas em ciências vulgares e filosóficas, conforme estivessem voltadas para o mundo sensível ou para o mundo inteligível e para conduzir a alma ao Ser supremo. Enumera também, no Filebo, as Artes manuais, que não são chamadas de ciências, e que estão subordinadas às Matemáticas (Aritmética, Logística e Geometria): Música, Medicina, Agricultura, Navegação, Estratégia Militar e Construção.

23 A virtude heróica e cavalheiresca da nobreza antiga é substituida pela virtude política dos novos dirigentes: “Todas as

questões de interesse geral que o Soberano tinha por função regularizar e que definem o campo da arché são agora submetidas à arte oratória e deverão resolver-se na conclusão de um debate; é preciso, pois, que possam ser formuladas em discursos (...)”. (Vernant, 1984, p. 35)

Aristóteles dividiu as ciências em (1) Especulativas ou Teóricas: Física, Matemática e Filosofia Primeira ou Metafísica; (2) Práticas: Moral ou Ética, Economia e Política; (3) Poéticas: Poética, Retórica e Estética. Correspondiam ao saber, ao agir e ao produzir. Como em Platão, todas dialogavam entre si, para a construção de um conhecimento global.

Todos esses conhecimentos gregos foram levados para a Europa por Roma e organizados nas chamadas sete artes liberais, que, a partir do século V, com Marciano Capella,24 foram divididas em trivium (gramática, retórica e dialética) e quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia).

A Universidade medieval se organizou em dois níveis e quatro Faculdades. A Faculdade de Artes (trivium e quadrivium) era o nível preparatório para as outras três: Faculdade de Teologia, Faculdade de Direito e Faculdade de Medicina. O nível teórico preparatório das sete artes liberais podia conduzir o aluno a outro nível teórico de formação, a teologia ⎯ uma vez que, desde o advento do cristianismo, a teologia substituíra a filosofia ou a dialética no topo da hierarquia das ciências ⎯, ou a duas opções de formação prática, direito ou medicina.

Foi no século XIV que as ciências “técnicas”, até então chamadas de artes, passam a ser chamadas disciplinas, “para destacar que a aprendizagem exige a submissão a uma ‘disciplina’” (Resweber, 2000, p. 11), submissão às regras práticas da vida do cidadão e às regras técnicas de cada ciência. A ruptura entre as ciências exatas (quadrivium) e as ciências humanas (trivium) só ocorreu no século XVIII, a partir da reorganização da universidade francesa, que passou a ser estruturada em Faculdade de Letras e Faculdade de Ciências.

O Iluminismo, na metade do século XVIII, apoiando-se no racionalismo, reforça a separação dos saberes conforme os objetos do conhecimento, mas ainda afirma a necessidade da existência de um diálogo entre eles, como indica o próprio nome da obra paradigmática desse movimento, a

Enciclopédia (kyklos, círculo, e paidéia, cultura), que significa encadeamento circular de conhecimentos.

O século XIX aprofunda essa fragmentação disciplinar. Para “colocar ordem nas desorganizações trazidas pelas revoluções sociais e intelectuais” (Pineau, 1980, p. 12) do século anterior ⎯ a

Revolução Francesa (1789) e o Iluminismo ⎯, Augusto Comte, apoiando-se numa epistemologia positivista e no desenvolvimento da sociedade industrial, estabelece uma nova estrutura hierárquica das ciências que, em seguida, passará a ser “amplamente adotada no mundo ocidental” (ibid.). Ele as organiza em ciências fundamentais (matemáticas, astronomia, física, química, biologia e sociologia); em ciências descritivas (zoologia, botânica, mineralogia, psicologia) e ciências aplicadas (engenharia, agricultura e educação). As seis ciências fundamentais são organizadas por níveis de complexidade: “Quanto mais os fenômenos são simples e gerais, menos eles dependem dos outros e, portanto, mais autônoma é a ciência que deles se ocupa” (ibid., p. 14), o que estabelece o critério hierárquico que vai da matemática, que trata dos fenômenos mais simples, à sociologia, que trata dos fenômenos mais complexos. Também são divididas em três subgrupos: a ciência dos fenômenos simples (a matemática), as ciências dos corpos brutos (astronomia, física e química) e as ciência dos corpos organizados (fisiologia e física social, que ele chamará de sociologia). As ciências descritivas são aplicações das ciências fundamentais, a botânica, por exemplo, é a aplicação da biologia às plantas e a zoologia é a aplicação da biologia aos animais. As ciências aplicadas são as artes que aplicam os dados das ciências fundamentais às diversas ações humanas; por exemplo, a engenharia é uma aplicação da matemática e da física, e a medicina é uma aplicação da biologia e da fisiologia. Foi então que se passou “de um paradigma enciclopédico dos conhecimentos a um paradigma pragmático” (Resweber, 2000, p. 17).

Porém, essa fragmentação crescente do saber só se transformou numa hiper-especialização disciplinar na metade do século XX, como conseqüência final do histórico citado e, além disso, pelo crescimento exponencial do volume e da complexidade dos conhecimentos, e pela multiplicação e sofisticação das tecnologias. Até o início do século XX a divisão do saber ainda era circular: as ciências ainda dialogavam entre si, como sempre tinham feito, a pesar de, desde o século XIV, sua circularidade constituir círculos cada vez menores, devido à exclusão progressiva de vários campos do saber: a exclusão da gnose no século XIII, da religião no século XVIII, e da filosofia ou a metafísica no século XIX.

No entanto, se cada disciplina nasce e se organiza, primeiro, ao redor de uma problemática, agrupando um conjunto de questões ou problemas teóricos e práticos (cf. ibid., p. 30) que emergem em práticas novas ou antigas, e depois cria um conjunto de modelos e conceitos capazes de dar conta da inteligibilidade do seu objeto de estudo, com o passar do tempo ela se esclerosa, caso não se renove com conceitos novos, forjados a partir dos seus modelos de base ou emprestados de outras disciplinas (cf. ibid., p. 31). Portanto, se isso tende a levar a disciplina nascente a delimitar suas fronteiras, assim como os modelos, conceitos e técnicas que ela utiliza, ao longo do tempo,

tende a fazer com que ela se abra, se aproxime das fronteiras de outras disciplinas, estabeleça diálogos interdisciplinares, intercambiando métodos, modelos e conceitos, e criando novas disciplinas.