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CAPÍTULO 2. FORMAÇÃO

2.4 Entre a auto, a hetero e a ecoformação

2.4.2 Entre a auto e a ontoformação

Se no item 2.4 vimos uma definição geral do conceito de autoformação, por sua pertinência numa reflexão sobre a formação transdisciplinar, parece-me relevante retornar a ele, buscar algumas de suas origens mais recentes, citar outras acepções atuais, e em seguida, aprofundá-lo um pouco mais. Couceiro lembra que se “a noção de autoformação tem os seus inícios ao longo dos anos sessenta” (2001, p. 35), as raízes dessa noção podem ser encontradas em Rousseau, na tradição de autodidatismo na Europa do século XIX, no pedagogo norte americano John Dewey (1859-1952), e, também nos EUA, mais contemporaneamente, em Rogers (1902-1987), e em Lindeman e de Knowles (1990), dois autores que trabalharam com a formação de adultos. No entanto, é “só ao longo dos anos oitenta que se vai começando a consolidar a utilização do termo, quer na Europa, quer nos EUA e Canadá” (ibid., p. 36). É dessa época o trabalho pioneiro de Gaston Pineau: “Produir sa vie” (1983), que pode ser considerado um marco para o aprofundamento dessa noção e das noções vizinhas de hetero e ecoformação. Nessa mesma época, começam a surgir nos EUA trabalhos sobre “self-directed learning”, conceito que pode ser considerado próximo do conceito de autoformação.

Couceiro também chama a atenção para o fato de que “muitas expressões, quer em língua francesa, quer em língua inglesa, são utilizadas como sinônimo de autoformação” (ibid., p. 37) e cita P. Carré

que, em 1992, a partir da análise de publicações européias e norte-americanas da década de 80, identifica sete tendências constitutivas deste campo da formação por si mesmo:

• a autoformação como prática autodidática ⎯ utilizando o critério de ordem institucional, o autor agrega nesta denominação as práticas de aprendizagem exteriores às instituições educativas;

• a autoformação como pedagogia individualizada ⎯ em torno do critério tecnológico, ou seja, da existência de instrumentos e percursos pedagógicos concebidos para uso individual, o autor reúne o conjunto de investigações e de práticas que se traduzem na individualização da formação;

• a autoformação como formação metacognitiva ⎯ o critério aqui utilizado é de ordem cognitiva, sendo a expressão "apprendre à apprendre" [aprender a aprender] característica do conjunto de práticas inseridas nesta corrente, que valoriza os meios de aquisição de autonomia intelectual; • a autoformação como formação pela experiência ⎯ o critério é o da proximidade conceptual entre as noções de autoformação e de formação experiencial, na medida em que as exigências de auto-reflexividade, de ligação entre a experiência e o autos, introduzem um caráter "auto- referencial" nestas práticas;

• a autoformação como organização autoformativa do trabalho ⎯ trata-se aqui de um critério ligado ao modo de organização do trabalho enquanto contexto de aprendizagens formais ou informais;

• a autoformação como aprendizagem autodirigida ⎯ o critério é o do poder atribuído ao sujeito numa situação de formação, nomeadamente no que diz respeito ao grau de controle na autodireção da aprendizagem;

• a autoformação como auto-educação permanente ⎯ o critério é a permanência, evidenciando uma concepção existencialista da autoformação "comme processus permanent de production de ses propres savoirs, d'appropriation de sa formation formelle et informelle" [ como processo permanente de produção de seus próprios saberes, de apropriação de sua formação formal e informal].

Quatro anos mais tarde, a partir das perspectivas de autoformação apresentadas nas comunicações do segundo colóquio europeu sobre a autoformação, Carré atualiza a sua sistematização. As sete tendências da autoformação, citadas acima, passam a ser sistematizadas em cinco grandes famílias (Carré, citado por Couceiro, 2001, p. 40):

• autoformação integral ⎯ remetendo para a corrente do autodidatismo e privilegiando todas as formas autônomas de aprendizagem exteriores ao sistema educativo;

• autoformação existencial ⎯ encarando a autoformação como um processo de formação de si por si, "permanente, holística e crítica", a estender-se por toda a existência, remetendo para uma perspectiva fenomenológica de "aprender a ser" (Faure) e de "produire sa vie" [produzir a sua vida], segundo a fórmula de G. Pineau, e privilegiando práticas das histórias de vida ou práticas vizinhas; • autoformação educativa ⎯ correspondente a uma perspectiva educativa capaz de facilitar o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos e traduzindo-se em práticas e dispositivos pedagógicos renovados e promovendo aprendizagens autônomas;

• autoformação social ⎯ remetendo para todas as formas de aprendizagem autônoma fora dos contextos educativos, mas no quadro da participação em grupos sociais múltiplos, sejam eles o contexto de trabalho ou redes socio-culturais;

• autoformação cognitiva ⎯ reunindo concepções que privilegiam os mecanismos psicológicos em jogo, como a auto-direcção da aprendizagem e a capacidade de "aprender a aprender".

Sem dúvida, não é o caso aqui de optar por uma das sete ou das cinco definições enunciadas por Carré, considerando que a abordagem transdisciplinar busca ser inclusiva e procura encontrar os diferentes níveis da aplicação das definições de cada conceito, de modo que cada uma delas pode ser constitutiva, em maior ou menor grau, do processo da autoformação. No entanto, é importante aprofundarmos a segunda das cinco, a chamada “autoformação existencial”, considerando que é esta perspectiva que temos enfatizado no CETRANS, apoiando-nos nos trabalhos de Gaston Pineau sobre o modelo tripolar da formação e na produção de Pascal Galvani sobre a autoformação.

Antes de aprofundar a chamada “autoformação existencial”, é pertinente observar aqui que, como veremos no próximo item, se os próprios conceitos que se avizinham da noção de formação podem corresponder a diferentes níveis da formação, esses diferentes níveis da formação nos remeteriam a diferentes níveis da autoformação, da heteroformação e da ecoformação.

Como descreve Gaston Pineau: “Entre a ação dos outros (heteroformação) e a do meio ambiente

(ecoformação), parece existir, ligada a estas últimas e dependente delas, mas à sua maneira, uma terceira força de formação, a do eu (autoformação). Uma terceira força que torna o decurso da vida

mais complexo e que cria um campo dialético de tensões, pelo menos tridimensional, rebelde a toda a simplificação unidimensional”. (1988, p. 65).

Para prosseguir a reflexão sobre esse três pólos, convém retomar a definição de Pineau sobre a autoformação:

“Pelo seu impulso fundamentalmente pulsional (...) a autoformação ultrapassa os quadros sociais de vida. Ela parece ser a expressão de um processo de antropogênese que extravasa as estratificações sociais e educativas tradicionais. Compreender e trabalhar este processo obriga-nos a apoiar a reflexão sobre a autoformação nos elementos das teorias das formas e nas ciências emergentes da autonomização. (...) A autoformação nas suas fases últimas corresponde a uma dupla apropriação do poder de formação; é tomar em mãos este poder ⎯ tonar-se sujeito. Mas é também aplicá-lo a si mesmo: tornar-se objeto de formação para si mesmo. Esta dupla operação desdobra o indivíduo num sujeito e num objeto de um tipo muito particular, que podemos denominar de auto-referencial. Este desdobramento alarga, clarifica e aumenta as capacidades de autonomização do interstício, do intervalo, da interface entre a hétero e a ecoformação que é, a princípio, o indivíduo. Cria-se um meio, um espaço próprio, que oferece ao sujeito uma distância mínima que lhe permite tornar-se e ver-se como objeto específico entre os outros objetos, diferenciar-se deles, refletir-se, emancipar-se e autonomizar-se: numa palavra, autoformar-se” (ibid., pp. 66-67).

Portanto, a concepção mais larga da autoformação, atualmente, é a que a considera em sua dimensão existencial (Galvani, 1991, p. 24). Pineau chama essa corrente de bio-epistemológica, porque (1) ela tem em vista a formação como processo vital (bio) que define a forma de todo ser vivo e (2) a ação do sujeito (auto) é sempre reflexiva (epistemológica).

Além dessa corrente bio-epistemológica, Pascal Galvani (1991, p. 20) distingue outras duas: a corrente sócio-pedagógica e a corrente técnico-pedagógica.

A primeira, que parte de um ponto de vista mais teórico e filosófico, é representada por autores como Gaston Pineau e Matias Finger. A segunda, que considera o processo da formação como um produto social e um projeto de transformação social, é representada principalmente por Joffre Dumazedier. A terceira privilegia a adaptação dos indivíduos às evoluções do emprego e das

tecnologias do trabalho e é representada por inúmeros autores (ibid., p. 53). As fontes teóricas dessas três correntes são, respectivamente, o romantismo alemão, a filosofia iluminista e a teoria da informação, onde vemos três teorias do conhecimento diferentes: holismo, racionalismo e empirismo.

Portanto, a autoformação é vista de diversas maneiras, conforme a corrente pedagógica que a aborde, pois cada uma delas define o conceito de formação de maneira mais fraca ou mais forte. Na corrente bio-epistemológica, em que se inscreve Pineau, a autoformação vê a pessoa conduzindo sua própria formação para a interioridade e as diferentes dimensões do sujeito (para os diferentes níveis da autos), para suas relações com a sociedade e com o meio ambiente. Na corrente socio- pedagógica, a questão central da autoformação é a gestão autônoma dos objetivos, dos métodos e dos meios para favorecer a relação do indivíduo com a sociedade, de maneira autônoma e consciente. Na corrente técnico-pedagógica, a autoformação é vista apenas como um meio para a readaptação profissional do indivíduo, conduzida por ele mesmo, a fim de fazer face às mudanças tecnológicas, econômicas e sociais.

Nessa perspectiva da corrente bio-epistemológica, na qual ele também se inscreve, Galvani observa que a “autoformação não é concebida como um processo isolado” (2002, p. 96), pois não se trata da egoformação proposta por certas correntes individualistas, mas como um dos pólos do processo tripolar, pilotado pelos pólos da auto (si), da hetero (os outros) e da eco (o meio e as coisas) formação, no qual a pessoa toma consciência dos diferentes níveis de cada um desses pólos e de sua interação recíproca. Se o círculo reflexivo da autoformação inclui o eu psicológico, a pessoa, enquanto lugar de relação, e o sujeito consciente, Galvani afirma que uma “perspectiva transdisciplinar, abrindo para os diferentes níveis de realidade, permite que consideremos que esse prefixo [auto] remete a diferentes níveis de consciência, cada um dos quais tendo suas próprias leis e sua própria coerência” (ibid. p. 101), e cita os três níveis do sujeito definidos pelo filósofo Luis Lavelle: o sujeito psicológico, o sujeito transcendental e o sujeito absoluto27.

27 "A palavra sujeito (...) não designa nada mais senão o centro em relação ao qual examinamos o real considerado em

sua totalidade. O sujeito psicológico é o centro de toda perspectiva individual; o sujeito transcendental, o centro de toda perspectiva em geral; o sujeito absoluto, o centro sem perspectiva, conseqüentemente, não mais o centro abstrato de todas as perspectivas particulares, mas o centro concreto que as aboli ao mesmo tempo que as fundamenta. Ora, onde está a consciência? (...) A consciência resulta, poderíamos dizer, de uma circulação entre esses três aspectos do mesmo sujeito. O sujeito psicológico reconhece sua própria individualidade no momento em que ele percebe sua limitação, isto é, no momento em que o sujeito transcendental o toma como objeto e o ultrapassa; o sujeito transcendental, por sua vez, só pode ser definido pela limitação do caráter perspectivo, em geral, que faz com que ele seja, mas que o obriga a se ultrapassar. O que, numa linguagem mais elementar, implica que a consciência sempre resulta da relação viva que se

É no âmbito desse sentido cada vez mais forte do conceito de formação ⎯ dessa polissemia transdisciplinar dos conceitos onde seus diferentes sentidos não se excluem mutuamente ⎯ e que o aproxima do conceito platônico e do conceito de Bildung, que Patrick Paul agrega mais um prefixo ao processo de antropoformação, ao processo da formação do homem global, e forja o termo ontoformação, onde a “realidade do ‘Onto’ revela a especificidade, a medida verdadeira do ser individualizado” (2001, p. 427). Estabelece então uma relação entre esses quatro termos (cf. Paul, 2001, pp. 381-406) e três etapas da formação do homem global: (1) a relação entre eco e heteroformação correspondendo ao “trajeto psico-genético”, à estruturação psico-físico-social do sujeito; (2) a relação entre hetero e autoformação correspondendo ao “trajeto imaginal”, à estruturação da imaginação criadora diurna e à hermenêutica (à interpretação) da linguagem da imaginação noturna dos sonhos; (3) a relação entre auto e ontoformação correspondendo ao “trajeto teofânico28”, às contemplações (supra-racionais) sucessivas que o sujeito transcendental pode ter do sujeito absoluto, (e) do Ser transcendental e do Ser Absoluto29, bem como das primeiras formas que deles emanam. Esses três trajetos correspondem às diferentes etapas descritas por Platão na metáfora da caverna (República, VII/515b).

Como observa Paul, é a dialética entre os diferentes pólos da formação e a travessia desses três trajetos da antropoformação que recompõem a Imago Dei como arquétipo criador do ser” (ibid., p. 394). No entanto, se, como define Galvani, a formação é “um processo vital e permanente de morfogêneses e metamorfoses” (2002, p. 96), a passagem entre cada nível desse trajeto de antropoformação se dá por rupturas, por transformações cognitivas e perceptivas radicais, pois,

estabelece em cada um de nós entre o indivíduo, o homem (ou, mais precisamente, o ser finito em geral) e o ser absoluto, sem que seja possível atribui-lo a nenhum dos três termos senão em sua relação com os outros dois. (...) Não pode haver sujeito puramente psicológico, pois ele deve ter do sujeito transcendental a consciência que ele tem de si mesmo. Eu só tenho consciência de mim mesmo porque um nível superior (sujeito transcendental) me permite me pensar como eu entre outros eus e, portanto, integrar a possibilidade de outros centros de perspectiva sobre o real. Mas, além disso, essa possibilidade de todas as perspectivas sobre o real só se justifica pelo sujeito absoluto estranho a todas as perspectivas e que contém a todas. (Lavelle, citado por Galvani, 2002, p. 101).

28 “O termo [teofania], que significa ‘visão de Deus’, é aplicado por Scoto Erígena (século IX) ao mundo como

manifestação de Deus. (...) Teofania é também toda obra da criação, enquanto manifesta a essência divina que, com isso, resulta visível nela e através dela.” (Abbagnano, 1997, p. 1123)

29 O Ser transcendental e o Ser absoluto, dois princípios metafísico, sendo o primeiro, o Ser transcendental, a primeira

manifestação do Sobre-ser ou do Ser absoluto, correspondente ao Uno de Plotino, à Deitas de Eckhart e ao Sem-fundo de Jacob Boehme e ao terceiro secretamente incluído de Nicolescu. Voltarei a tratar desses princípios no item “Os diferentes níveis de realidade e as cosmologias tradicionais”.

como lembra Paul, as diferentes etapas do processo de antropoformação correspondem, em sentido contrário, às etapas do processo cosmogenético (de criação do mundo), às etapas da emergência dos diferentes níveis de realidade. E, como veremos no capítulo sobre a transdisciplinaridade, “dois níveis de Realidade são diferentes se, passando de um ao outro, houver ruptura das leis e ruptura dos conceitos fundamentais” (Nicolescu, 2001, p. 29), estabelecendo entre os diferentes níveis uma descontinuidade, que só poderá ser ultrapassada com um salto, com uma ruptura, com uma metamorfose da percepção e da consciência do sujeito.

Voltarei a este tema na conclusão do Capítulo 5, que trata da problemática, pois quando terminei de tratar os dados empíricos desta pesquisa, o que Paul chama de “epistemologia da ruptura” mostrou- se um tema forte para a análise dos dados.