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CAPÍTULO 3. TRANSDISCIPLINARIDADE

3.4 O surgimento do termo “transdisciplinaridade”

O Dicionário Oxford e muitos pesquisadores indicam que o termo apareceu pela primeira vez no Seminário de Nice indicado no item anterior, o I Seminário Internacional sobre a Pluridisciplinaridade e a Interdisciplinaridade, realizado na Universidade de Nice (França), de 7 a 12 de setembro de 1970, organizado pelo Centro para a Pesquisa e a Inovação do Ensino (CERI), e patrocinado pelo Ministério da Educação Francês e pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) (cf. Klein 2002).

Basarab Nicolescu relata que, embora vários participantes tenham empregado a palavra “transdisciplinaridade” em suas comunicações, “Guy Michaud, um dos organizadores do encontro, e também André Lichnerowicz confirmaram verbalmente a mim que foi Piaget quem inventou a palavra e pediu aos outros para pensarem sobre o significado dela” (Nicolescu, 2003, p. 1).

Além disso, a primeira definição conhecida de transdisciplinaridade foi dada por Piaget em sua comunicação nessa Conferência: “...à etapa das relações interdisciplinares, podemos esperar ver sucedê-la uma etapa superior que seria ‘transdisciplinar’, que não se contentaria em encontrar interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situaria essas ligações no interior de um sistema total, sem fronteira estável entre essas disciplinas”45. E essa definição serviu de base

para a que foi adotada pela Conferência. Conforme Klein:

45 "Enfin, à l'étape des relations interdisciplinaires, on peut espérer voir succéder une étape supérieure, qui serait

‘transdisciplinaire’, qui ne se contenterait pas d'atteindre des interactions ou réciprocités entre recherches spécialisées, mais situerait ces liaisons à l'intérieur d'un système total sans frontières stables entre les disciplines" (page 144).

“Alguns participantes quiseram que ‘transdisciplinaridade’ estivesse no título da Conferência. Os organizadores foram da opinião de que ‘pluridisciplinaridade’, conotando justaposição de disciplinas, e ‘interdisciplinaridade’, conotando integração de conceitos e métodos, acomodavam a diversidade de sistemas educacionais existentes no mundo. No entanto, a Conferência adotou uma definição básica de transdisciplinaridade: ‘estabelecendo um sistema comum de axiomas para um conjunto de teorias’. (...) Três participantes [dessa conferência] desenvolveram o conceito primeiro, revelando dois maiores focos de interesse. Jean Piaget e Andre Lichnerowicz colocaram o foco nas dinâmicas internas da ciência, enquanto Erich Jantsch enfatizou objetivos externos”. (2002)

Nicolescu relata que também foi Piaget quem sugeriu que a palavra “transdisciplinaridade” aparecesse no título do evento, mas que isso não foi aceito pelos organizadores (2003, p. 1).

Conforme Klein, os dois primeiros, Piaget e Lichnerowicz, consideraram que a transdisciplinaridade poderia fornecer um quadro conceitual que atravessaria as disciplinas. Como psicólogo, Piaget estava interessado nas interações e acreditava que o amadurecimento da compreensão das estruturas gerais e dos padrões do pensamento conduziria a uma teoria geral das estruturas e dos sistemas. Previu que, quando a física do inanimado pudesse entender o sistema do animado, como no caso, por exemplo, do sistema nervoso em atividade, se aproximaria da biologia e da psicologia e “poderia se tornar uma verdadeira ciência ‘geral’” (2002). Com isso, uma “transdisciplinaridade plena” seria alcançada.

Andre Lichnerowicz, físico e matemático, considerou que a linguagem que atravessaria as diferentes disciplinas seria a matemática. “Além de uma linguagem comum coerente, ela prometia a possibilidade de encontrar estruturas elementares comuns. A matemática não era apenas uma ferramenta universal. Era um instrumento do pensamento.” (Ibid.) Lichnerowicz considerava que o desenvolvimento dessa estrutura teórica matemática que atravessaria a ciência e a tecnologia “imporia a transdisciplinaridade”. Vemos que essa abordagem de Lichnernowicz se aproxima mais de algumas definições de interdisciplinaridade ou de um grau baixo de transdisciplinaridade.

Se Piaget e Lichnerowicz colocaram o foco de suas reflexões transdisciplinares nas interações entre as ciências, Erich Jantsch o colocou nas interações com o humano e o social. Jantsch, do mesmo modo que Piaget, considerou a inter e a transdisciplinaridade “como princípios organizacionais”, porém, seu modelo incluía não só o sistema da ciência (de todas as disciplinas e interdisciplinas),

mas também o “da educação e o da inovação”, e alcançava não só o “nível empírico, pragmático e normativo”, como também os níveis propositivos. “O último grau de coordenação requereria uma intensificação mútua das epistemologias (...). Jantsch concordava que a coordenação transdisciplinar de um sistema multidimensional e multifinalístico era um ideal que estava além do alcance completo da ciência.” (Ibid.) No entanto, “frisava que o conceito de transdisciplinaridade poderia guiar a ciência em seus desenvolvimentos”. Segundo Klein, dentre os três, o modelo mais amplo de Jantsch tornou-se o mais influente.

Dois pesquisadores interdisciplinares americanos escreveram sobre a transdisciplinaridade no fim da década de setenta e no início da década de oitenta. “Um deles foi Joseph Kockelmans, filósofo contemporâneo e editor de um livro sobre a interdisciplinaridade na educação superior (1979)46.” (Ibid.)

Embora ele colocasse a ênfase de sua reflexão transdisciplinar no ensino da ciência e na filosofia da ciência, considerava que a transdisciplinaridade deveria “tornar a educação e a pesquisa mais relevantes socialmente”, deveria ajudar a resolver “problemas concretos que emergiam da sociedade”. Além disso, afirmava que a transdisciplinaridade não era uma constructo teórico, mas uma atitude na qual todas as disciplinas cooperariam para uma reflexão supra-científica (cf. ibid.). Kockelmans fez uma pesquisa sobre as diversas definições que diferentes autores davam para transdisciplinaridade: uns a associavam com a unificação das ciências humanas, outros a definiam como uma busca de uma unidade de visão de mundo, incluindo o campo da cultura, da ciência e da educação.

Identificou quatro objetivos principais daqueles que postulavam a inter e a transdisciplinaridade: (1) reorganização da educação superior, uma vez que esta era incapaz de tratar do sentido da totalidade da existência humana; (2) renovação da reflexão filosófica sobre os pressupostos e sobre a unidade do conhecimento teórico de todas as disciplinas; (3) reorganização do conhecimento teórico para tratar dos problemas básicos do mundo moderno, restauração do antigo sentido de ‘ensinar’ versus ‘treinar’, dando ênfase na educação superior; (4) valorização do sentido e da função da ciência no mundo moderno.

46 Kockelmans, J. Interdisciplinarity and Higher Education. University Park: Pennsylvania State University Press,

O outro pesquisador interdisciplinar americano, Raymond Miller, num artigo de 1982,47 escreveu que concordava com Kockelmans, quando este afirmava que a transdisciplinaridade era uma estrutura geral, mas não concordava com a idéia de que ela seria uma filosofia destinada a abarcar tudo.

“Ao apresentar uma tipologia das abordagens interdisciplinares nas ciências sociais, Miller definiu a transdisciplinaridade como ‘quadros conceituais articulados’ que transcendiam o escopo estreito da perspectiva disciplinar. Com um intento holístico, eles proporiam uma reorganização da estrutura do conhecimento, envolvendo metaforicamente as partes dos campos materiais que as disciplinas manejam separadamente.” (Ibid.)

Segundo ele, as abordagens predominantes postulavam uma natureza interrelacionada e interdependente, apoiando-se muito no estruturalismo e na Teoria Geral dos Sistemas. Essa definição que Miller dá para o conceito de transdisciplinaridade também fica no meio caminho entre a interdisciplinaridade forte e o conceito de transdisciplinaridade definido pelos congressos internacionais da década de 90.