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CAPÍTULO 6. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

6.2 Os instrumentos metodológicos da pesquisa

Utilizei, com os dois grupos, dois instrumentos: um questionário e um brasão. Quando comecei a consolidar os dados que emergiram, descartei duas das quatro perguntas que fiz ao Grupo I, pois as respostas que obtive não me trouxeram dados significativos (detalharei essa modificação no item 6.2.1, “Operacionalização da pesquisa com o Grupo I”) e vi que seria conveniente fazer algumas perguntas complementares muito precisas, para que as pessoas explicitassem melhor alguns itens que colocaram no brasão (ver item 6.3.1).

6.2.1 O questionário

Optei pelas perguntas abertas, pois minha intenção foi repassar ao meu público a minha questão de partida, “Como ocorre a formação transdisciplinar?”, pois o público dos dois grupos tinha passado

por diferentes processos de formação transdisciplinar e eu queria ouvir deles essa resposta, de maneira totalmente aberta, para ver se o que emergiria iria ou não na direção dos meus pressupostos (5.4).

Fiz apenas uma pergunta fechada, para o Grupo II, que passou por um processo de formação mais curto, e explicarei o motivo de ter optado por fazê-la, assim que explicitar as perguntas que dirigi aos dois grupos.

Ao Grupo I, fiz, inicialmente, quatro perguntas: 1) Como ocorre a formação transdisciplinar?

2) Como você teria respondido a essa pergunta antes do início do CETRANS?

3) Como você teria respondido a essa pergunta antes do início do curso O Pensamento Transdisciplinar?

4) Quais são as diferenças mais marcantes entre essas respostas e a resposta que você dá a ela agora: após a sua participação na elaboração e implementação do curso O Pensamento Transdisciplinar? Como disse há pouco, após uma primeira leitura das repostas que chegaram, vi que os dados que emergiam das duas últimas eram bastante pobres, de modo que os descartei. Voltarei a esse assunto no item 6.4.1, sobre a operacionalização da pesquisa com o Grupo I, e no Capítulo 7, que corresponde ao tratamento e análise dos dados.

Ao Grupo II, fiz três perguntas:

1) Como ocorre a formação transdisciplinar?

2) Se você tivesse respondido a esta pergunta pouco antes do início do curso, haveria diferenças sensíveis entre a resposta que você daria e a resposta que você deu?

3) Em caso afirmativo, quais teriam sido as diferenças principais?

A primeira pergunta foi a mesma para os dois grupos e a terceira do Grupo II (“Em caso afirmativo, quais teriam sido as diferenças principais?”) foi análoga à segunda do Grupo I (“Como você teria respondido a essa pergunta antes do início do CETRANS?”). A segunda pergunta do Grupo II, embora não seja fechada, tende a levar a uma resposta fechada: sim, não, ou em parte, o que de fato ocorreu em todas as respostas dadas pelo público do Grupo II a essa segunda pergunta.

Minha intenção inicial foi justamente essa, pois isso me permitiria uma quantificação imediata das respostas. Se a grande maioria do público pesquisado respondesse que haveria diferenças sensíveis

na resposta que dariam a essa pergunta se a respondessem antes do início do curso ou depois do fim do curso, isso seria um indicador facilmente mensurável de que o curso tinha tido alguma eficácia formativa, ao menos num nível primeiro da formação: o da instrução.

6.2.2 O brasão projetivo

Além das questões abertas, empreguei também, com esses dois grupos, outro instrumento de pesquisa: o brasão. André de Peretti (1986), inspirando-se nos brasões simbólicos da heráldica, criou um método de animação e de formação de grupos, que consistia em propor a pessoas ou a grupos a realização de um brasão pessoal de formador, mas sem seguir as regras da ciência heráldica.110 Nesse método, cada pessoa, subgrupo ou grupo deve preencher os diferentes espaços do brasão de acordo com o que é solicitado em cada um dos espaços ou casas (Peretti, citado por Galvani, 1991, p. 83). Algumas casas pedem uma resposta escrita sobre diferentes aspectos de análise do tema proposto, outras pedem que a resposta seja dada com um desenho (ibid.).

Apoiando-se no método de André de Peretti, Pascal Galvani (1991, p. 84) construiu um brasão dividido em sete espaços (casas), a serem preenchidos pelo público de uma pesquisa que realizou sobre o conceito de “autoformação” com um grupo de formadores dos Ateliês Pedagógicos Personalizados (A.P.P.), criados pelo Ministério do Trabalho francês, com a finalidade de “assegurar uma formação geral e uma cultura técnica de base (...) aos jovens de 16 a 25 anos” (ibid., p. 70).

Seis dessas sete casas deveriam ser preenchidas de forma escrita e uma, com uma imagem ou um símbolo:

110 Uma descrição excelente da heráldica tradicional pode ser encontrada no livro de Gerard de Sorval, Le langage

secret du blason, 1981. A heráldica “é a arte ou ciência cujo objeto é o estudo da origem, evolução e significado dos emblemas brasônicos, assim como a descrição ou a criação de brasões”. (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001)

Uma divisa:

4 dificuldades: 2 meios:

1 imagem ou símbolo: 2 referências:

2 qualidades: À sua escolha

Adaptei o modelo criado por Pascal Galvani, introduzindo algumas mudanças para adequá-lo à minha pesquisa. Adaptei primeiro o brasão a ser entregue para o Grupo II, uma vez que foi respondido em novembro de 2002 e o brasão do Grupo I, em maio de 2003. O brasão que foi entregue ao Grupo I sofreu apenas adaptações mínimas em relação ao que foi entregue ao Grupo II, pois todas as casas permaneceram basicamente iguais.

O brasão do Grupo II ficou assim:

Uma palavra ou uma frase para descrever o curso:

3 experiências de formação transdisciplinar mais Uma imagem ou um símbolo para expressar o curso

marcantes durante o curso: (desenhar):

3 características centrais da formação 3 dificuldades principais do curso e da formação

transdisciplinar: transdisciplinar:

* Adaptado dos trabalhos de André de Peretti e de Pascal Galvani

O brasão do Grupo I ficou assim:

Uma palavra ou uma frase para descrever os anos de sua participação como membro fundador e pesquisador-formador do CETRANS de 1999 a 2003:

3 experiências de formação transdisciplinar Uma imagem ou um símbolo para expressar o

mais marcantes durante esses quatro anos: processo formativo vivido no CETRANS (desenhar):

3 características centrais da formação 3 dificuldades principais da formação transdisciplinar: transdisciplinar:

* Adaptado dos trabalhos de André de Peretti e de Pascal Galvani

Optei por utilizar, além do questionário aberto, esse método projetivo dos brasões, por três motivos principais.

Assim como, na heráldica, na qual o brasão de cada cavaleiro remete às características essenciais de seu portador, a metodologia projetiva que utiliza os brasões como instrumento permite “uma expressão individual das representações sob formas comunicáveis e comparáveis” (Galvani, 1991, p. 83). Portanto, essa metodologia pede que a expressão da pessoa seja extremamente sucinta, o que facilita o tratamento quantitativo e comparativo dos dados obtidos.

Outro motivo foi a possibilidade de esse instrumento, por suscitar respostas sucintas e essenciais, permitir que surgissem dados surpreendentes, que trouxessem elementos absolutamente novos de resposta à minha pergunta de base. A presença de uma casa que tinha de ser preenchida com uma imagem ou um símbolo poderia ampliar ainda mais essa possibilidade, mesmo que isso trouxesse, também, um elemento complicador para a análise dos dados, pois cada símbolo, por sua própria natureza, contém múltiplos níveis de significados.

De fato, a presença dessa casa ao mesmo tempo dificultou a análise do seu conteúdo e enriqueceu os dados, devido à natureza simultaneamente sintética e polissêmica dos símbolos. No entanto, como já indicado, a dificuldade desse aspecto foi, em grande parte, superada com perguntas suplementares de explicitação do significado da imagem (e de outros elementos de outras casas do brasão) pela própria pessoa que a desenhou.

O terceiro motivo foi o fato de o brasão heráldico ser um dos elementos constantes nas formações heróicas e cavalheirescas, que, em suas origens, sempre remetiam ao conceito forte de formação, enquanto busca da Forma arquetípica individual e enquanto Forma arquetípica da humanidade em geral. Conforme Sorval, a palavra brasão “significava ao mesmo tempo ‘escudo’, ‘glória’ e ‘bela linguagem para celebrar’ (1981, p. 20). “Por sua própria forma, o brasão é a figura emblemática evocadora do coração da pessoa, isto é, do lugar no qual sua consciência espiritual e sua liberdade se acoplam” (ibid., p. 32). Isso faz com que “o brasão remeta às características essenciais de um indivíduo, ao sopro (espírito) que o anima” (Galvani, 1991, p. 83) ou, conforme Paul, a “uma representação simbólica da identidade” (2001, p. 843). 111

111 É importante não confundir o brasão com o escudo. O escudo é o suporte físico da expressão simbólica do brasão. O

escudo pode não ser um brasão, pode ser apenas uma proteção física para o cavaleiro, enquanto o brasão é uma proteção e uma expressão simbólicas.

Como vimos no Capítulo 1, as formações heróicas e cavalheirescas existiram em muitas culturas do Ocidente e do Oriente, em diferentes momentos da história, e nelas a produção do brasão era vista como um dos elementos centrais desse processo formativo. “Nas culturas indígenas da América do Norte, a autoformação está intimamente ligada ao processo visionário: a busca da visão. Esse processo conduz a uma prática de elaboração do brasão, isto é, a uma simbolização das realidades espirituais que caracterizam a pessoa” (Galvani, 1997, p. 142).

Portanto, o terceiro motivo da minha escolha foi essa pertença do brasão a formações que remetem aos diferentes níveis do sujeito e, além disso, o fato de ele ser um instrumento heurístico e hermenêutico transcultural. Esses dois fatores tornam coerente a sua utilização numa pesquisa transdisciplinar como esta.

Um estudo antropológico dos brasões mostra que, em muitas civilizações, inclusive na Europa ocidental medieval, os símbolos desenhados nos brasões emergiam de um processo visionário, de símbolos revelados ao cavaleiro ou guerreiro em visões ou em sonhos, símbolos esses que tinham de ser interpretados por quem os tinha recebido, num longo processo hermenêutico no qual buscava-se o sentido dos símbolos que lhe tinham sido revelados, por Deus ou pelos gênios. Portanto, a segunda etapa da pesquisa com os brasões projetivos, ou seja, as perguntas complementares que fiz, devolveram aos próprios “deuses” a hermenêutica da imagem que tinham criado para expressar o processo formativo que tinham vivido.

Com isso, não fui só eu o hermeneuta, o que aumentaria em muito os riscos do distanciamento entre a interpretação e o significado. Se, num primeiro momento, tratei as imagens mais freqüentes que emergiram nos brasões com dicionários de símbolos, o que me ofereceu dados bastantes ricos, num segundo momento pedi que eles mesmos interpretassem suas imagens, o que permitiu que um universo enorme de dados novos viessem à luz. Dados revelados pelos próprios “deuses” das imagens.

É claro que não se deve confundir a metodologia dos brasões heráldicos como aquela dos brasões projetivos, que foi a que empreguei aqui. A estrutura, o contexto e o objetivo delas são muito diferentes. No entanto, há, como vimos, algumas “ressonâncias” que também não devem ser descartadas. Ao contrário, foram justamente elas que reforçaram a minha escolha deste instrumento.