• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 EXPERIÊNCIA: ÚNICA AUTORIDADE, ÚNICO VALOR

2.2 A experiência interior

2.2.6 A comunicação e o drama

Há uma noção central na abordagem do problema da experiência para Bataille: a noção de comunicação. Não se pode considerar o êxtase sem considerar o sentido da comunicação. Comunicação é o conceito que Bataille usa para dar nome ao acontecimento da experiência como perda de si. A experiência que se dá na angústia é a experiência da ida aos

limites da própria angústia, isto é, do êxtase. O êxtase só é possível pela comunicação, trata-se de uma perda do sujeito pelo excesso que não permite limitação e clausura da experiência. Na comunicação o sujeito nada sabe, ele é o sujeito do não-saber pela indeterminação de qualquer conhecimento sobre a experiência. O problema da contestação do saber abre a perspectiva para o extremo da experiência que vai do desespero à delícia, tendo como movimento a perda de si comunicada pelo êxtase. Conforme Bataille:

Poderia dizer a mim mesmo: o valor, a autoridade, é o êxtase; a experiência interior é o êxtase, o êxtase é, parece, a comunicação se opondo ao aperto sobre si mesmo, do qual falei. Teria da sorte sabido e encontrado (foi um tempo onde acreditei saber, ter encontrado). Mas nós chegamos ao êxtase por uma contestação do saber (1973a, p. 24, grifo do autor).

Diferente do não-saber, o saber exige conteúdos assimilados, mas esses conteúdos se perdem no extravasamento que coloca o sujeito em questão, em jogo, como o riso, o erotismo, a poesia, o sacrifício etc. Dessas formas de dispêndio se define “[...] uma lei de comunicação regrando os jogos do isolamento e da perda dos seres” (BATAILLE, 1973a, grifo do autor). Nesse sentido, segundo Mitchell e Winfree, “[...] é, de fato, o isolamento e a dissolução que estabelece os parâmetros do pensamento de Bataille sobre a comunicação” (2009, p. 8). Meditando sobre a comunicação – deslizamento do ser isolado rumo à perda de si, ou dissolução – se erige um pensamento sobre a experiência que repele a clausura do saber e é isto o que leva à conquista do êxtase. Mas se há conquista do êxtase, há retenção, petrificação, repouso. Se assim for, as considerações de Bataille sobre a experiência não parecem fazer sentido, pois, conquistando o êxtase, o sujeito permanece nele, implicando um estacionar em meio a ida ao extremo do possível. Mas o não-saber impossibilita a retenção do êxtase. O que está em baila a todo momento é a perda. Bataille diz:

Que eu me detenha no êxtase e saiba alguma coisa dele, por fim eu o defino. Mas nada resiste à contestação do saber e vi, no fundo, que a própria ideia de comunicação deixa nu, não sabendo nada. O que seja ela, falta de uma revelação positiva em mim presente no extremo, não posso dar a ela nem razão de ser nem finalidade. Permaneço no intolerável não-saber, que não tem outra saída senão o próprio êxtase (BATAILLE, 1973a, p. 24-25).

Fica claro que o não-saber não define o êxtase, ou o retém. Na realidade, o não saber o comunica, e isto quer dizer que o estatuto do êxtase comunicado pelo não-saber é o da perda. Tudo em Bataille, como afirma Foucault (2009), está em ruptura de transitividade. A experiência rejeita a disposição da ascese, pois é nítida aí sua domesticação: a experiência

exige, autenticamente, a “liberdade de humor”, a do “cavalo que nunca foi montado” (BATAILLE, 1973a, p. 36).

O que sustenta os questionamentos de Bataille no tratamento da experiência é, nas esteiras de Nietzsche, um Sim incondicional. Nessa medida, “[a] experiência é a denúncia da trégua, é o ser sem adiamento” (BATAILLE, 1973a, p. 61). Como mencionado, trata-se da dissolução do aperto em que o sujeito vive. Se a perda de si na fusão é a comunicação42, uma vez que nela o sujeito sai do seu aperto, nada se resguarda no plano da identidade subjetiva que se vê diferenciada de tudo o que lhe é outro. E isso não significa um amparo numa identidade com o mundo. O sujeito aí não é mais o sujeito individual, mas o sujeito aberto, perdido de si, no movimento dolorosamente extático da comunicação que nada retém, onde nada está resolvido.

A concepção de fusão para Bataille, portanto, não é o resultado nem de uma apropriação do outro ou uma expropriação de si mesmo numa identidade com o mundo, mas a introdução de algo outro no núcleo de si. Fusão não é algo que a comunicação evita, mas, ao contrário, sinônimo dela. Lançada em termos de fusão, a comunicação vem dar nome à indigestibilidade do outro, a persistência do estranho no coração do mesmo. Se a fusão traz o outro para “dentro de mim”, deve-se lembrar que esse “mim” está sempre fora de si mesmo (MIETCHEL; WINFREE, 2009, p. 11).

O estatuto do sujeito na experiência é o laceramento de suas idiossincrasias. A abertura do sujeito na experiência para o que é outro de si mesmo como o sentido da perda na comunicação se dá na saída do aperto individual. Bataille dá um nome para o acontecimento da saída do aperto da vida vivida no projeto, trata-se da dramatização43. Dramatizar a existência, para Bataille, é se colocar em experiências que desafiem o horizonte de tranquilidade da existência. Essa noção está dissolvida na questão da experiência interior, porque o sujeito do não-saber está mergulhado em formas de vida ardentes que, no extremo, atinge o êxtase. Segundo Bataille: “[...] só atingem estados de êxtase ou de arrebatamento dramatizando a existência em geral” (1973a, p. 22,).

Mesmo no projeto, é pela dramatização que a humanidade formou para si meios de sair do isolamento, de entrar em paixões fortes, como a crença do Deus caído no desespero que morre por nós (1973a, ibid.). Formas de dramatização também são a poesia e o erotismo,

42 Segundo Mitchel e Winfree, a fusão no pensamento de Bataille é sinônimo de comunicação.

43 A dramatização tem dois sentidos no pensamento batailliano. O primeiro deles é a saída do

isolamento; o segundo, a saída do aperto do discurso, uma espécie de derivação do primeiro (BATAILLE, 1973a, p. 22-26). No terceiro capítulo desta tese trataremos mais do segundo sentido da dramatização.

às quais Bataille se detém profundamente em sua obra. Mas é preciso ressaltar que a preocupação subjacente ao problema da dramatização é que a vida não se resume à lógica da utilidade, por isso a necessidade de afirmar formas de vida ardentes, turbulentas, pois na realidade do trabalho a vida é servil. Dessa forma, “[quando] ela se tornou interior e geral, ela [a dramatização] caiu numa autoridade exclusiva, ciumenta [...]. Tudo isso para que o ser não se aperte sobre si mesmo, não acabe como um lojista avaro, um velhote depravado” (BATAILLE, 1973a, p. 23).

Nisso transparece outra vez a questão da autoridade da experiência que só pode se dar a partir de sua vivência de dentro, interior, soberana, tendo ela mesma como única autoridade de seus desencadeamentos, mas jamais identitária, individual, pois o sujeito vai à perda de si. Como afirma Nikolopoulou:

Dramatização é mais o movimento pelo qual somos atraídos a um acontecimento (um dromenon, um evento), de modo que nos abandonamos a nossa própria solidão para sofrermos o evento em comum, para a experiência de compaixão. Dramatização é o movimento do deslizamento (2009, p.100).

O sujeito que vai à perda de si e à saída de seu aperto, dramatizando e comunicando, é um sujeito colocado em derrisão que na realidade não consuma isso de fato. A impossibilidade da realização plena da saída de si e do isolamento é o sentido mesmo da ida deslizante aos limites. É a confrontação com os próprios limites, e deve ser dada atenção à noção de confrontação, pois confrontação não quer dizer destruição. Se a experiência interior é o desequilíbrio dado na vida enquanto projeto, isto é, enquanto possibilidade de manter vida, é porque a experiência aponta para os limites da vida que levam à morte na comunicação da fusão.

Comunicando o êxtase, o sujeito desliza para o próprio limite, ele é posto em jogo na experiência. A perda de si exige a morte, pois a morte é o que está lá quando o sujeito, ao se perder de si, antevê o resto que não é ele mesmo, o resto confrontado no extravasamento, no transbordamento excessivo de si mesmo. Conforme Bataille: “O que liga a existência a todo o resto é a morte: qualquer um que olha a morte cessa de pertencer a um quarto, aos seus próximos, e se rende aos livres jogos do céu” (1973b, p. 283). Mas, ainda segundo Bataille – que faz alusão a Hegel – a obra da morte é difícil de suportar. Difícil de suportar a quem? Ao sujeito imerso na duração da vida, nas possibilidades de prolongá-la, em suma, ao ser isolado. Essa morte é aquela que no êxtase o sujeito toca. No êxtase o objeto ante o qual o ser isolado se depara é dilacerante, pois é objeto da comunicação, da fusão. A existência individual se vê

nas vias da dissolução, nas vias do que põe a vida em questão, e é para a existência individual que o objeto do êxtase está posicionado. Podemos ler em Bataille:

A ideia de uma existência individual é favorável à posição do objeto em torno do qual a existência é dirigida (a posição do objeto pode, em último caso, precisar sua descoberta no êxtase). Essa posição não é menos um limite detestável: na centelha do êxtase, os marcos necessários, sujeito-objeto, devem ser necessariamente consumidas, eles devem ser aniquilados (1973b, p. 283).

Trata-se do ser isolado jogado nas vias da perda de si pelo objeto próprio ao êxtase. Mas tudo isso é êxtase, sentido próprio do riso para Bataille. Resta-nos perguntar qual a natureza desse objeto dilacerante do êxtase, como diz Susanna Mati: “Este é o êxtase – uma experiência sem objeto” (2010, p. 64). O objeto da experiência extática, a delícia como sentido de L’expérience intérieure, não é somente dilacerante, mas também dilacerado, e isto caracteriza fundamentalmente a experiência que Bataille afirma em La somme atéologique, pois o sujeito de uma vida sem subterfúgio é sujeito nas vias do dilaceramento, vivente de uma vida sem sentido, sem dogma, sem redenção. O tratamento do objeto do êxtase é o mesmo do referente à experiência sem subterfúgios. O desamparo da ausência de resposta ao qual o sujeito é remetido caracteriza a angústia que desemboca no êxtase. O objeto dilacerado-dilacerante é colocado na noite da ausência, noite onde também se dá o não-saber que desnuda o êxtase. A imagem do homem subjacente nessas considerações é a do homem como ferida aberta que jamais se fecha, como afirma Bataille em letras garrafais:

O OBJETO DO ÊXTASE É A AUSÊNCIA DE RESPOSTA ADVINDA DE FORA. A INEXPLICÁVEL PRESENÇA DO HOMEM É A RESPOSTA QUE A VONTADE SE DÁ, SUSPENSA SOBRE O VAZIO DE UMA NOITE ININTELIGÍVEL; ESTA NOITE, DE UM EXTREMO A OUTRO, TEM A IMPUDÊNCIA DE UM GANCHO (1973b, p. 320). Assim se dá a consideração sobre o êxtase na experiência, ou sobre a experiência do êxtase, uma experiência onde o sem sentido do homem se afirma. A empreitada batailliana é levar o mais longe essas considerações, ir ao extremo do possível, como mesmo afirma Franco Rella (2010). Dessa forma, se torna imprescindível considerar os excessos da experiência, estando o excesso ligado ao dispêndio, isto é, ao que não pode ser aproveitado. Essa noção, que já havia sido tratada no texto “La notion de dépense”, de 1933, volta em La somme atéologique, nas noções de comunicação e dramatização, que implicam a perda de si e a saída do isolamento nos excessos. Bataille afirma:

Se dou minha vida à própria vida, à vida a viver, à vida a perder (não gosto de dizer: à experiência mística), abro os olhos sobre um mundo onde não tenho sentido senão ferido, dilacerado, sacrificado, onde a divindade, do mesmo modo, é somente dilaceramento, levada à morte, sacrifício (1973b , p. 282).

A vida considerada em seus excessos, no extremo de todas as suas possibilidades, só pode abdicar das garantias externas. Se a comunicação e a dramatização são, na realidade, características da intensificação da vida, quando ela deixa de permanecer no aperto da racionalidade do projeto, a existência só pode se desencadear soberanamente, isto é, sendo ela própria a legisladora do seu sem sentido como sentido de si mesma.

Portanto, essa experiência de dilaceramento de modo nenhum é a da salvação, mas a da angústia. Todavia, mesmo sendo angústia, ela ultrapassa a si mesma e se torna experiência do riso, do riso que é uma gargalhada, da “alegria angustiante”. O riso da dor, o riso que desfaz as belas formas é o riso perante o abismo de um mundo ao qual se abre uma experiência sem sentido e sem redenção44. Mas como é possível um sujeito falar da experiência do riso? Como o discurso, que se dá também como projeto, pode carregar o sem sentido do dilaceramento da experiência sem subterfúgios? É preciso pensar quais os dispositivos que Bataille opera na sua escrita para tratar da experiência. Fica aberto à investigação se de fato há um dilaceramento de si por parte do autor em sua escrita, se de fato seu nome é apagado no trabalho das letras em virtude da experiência, do riso, do êxtase. La somme atéologique se propõe a isso em seus três volumes, registra tanto experiências de jorro extático quanto o andar em desequilíbrio de um sujeito fragmentado e desesperado, aberto para o que a experiência pode ser enquanto autoridade de si mesma, sempre querendo a chance, imergir no não-saber. Assim, veremos como a escrita batailliana expõe um sujeito totalmente avesso à satisfação do espírito, colocando-se nos antípodas de qualquer sujeição a um sentido dado a ele – sentido que é, para o autor, sinônimo de repouso.

44

A noção de riso como o ápice da experiência sem redenção carrega consigo o movimento dialético que põe em realização esta experiência. Trata-se de uma dialética sem resolução das partes antitéticas, pois a negação do movimento dialético não é determinada, mas “desoperada” (désœuvré). Foucault chamará essa dialética de “transgressão” (FOUCAULT, 2009) e irá pensá-la no contexto do erotismo, que é uma das formas da experiência interior. No que concerne ao riso, nele a dialética transgressiva, sem conciliação das partes, é expressa do seguinte modo por Susanna Mati: “O riso representa uma paradoxal verdade “sintética”, metafisicamente universal (contra a unilateralidade do dogma), mas, ao mesmo tempo, subversiva, lancinante; é o ápice de uma dialética que coloca inesperadamente a nu o vértice não como conciliação ou superação, mas, sim, como dilaceração, e o ápice como a ferida em que se escancara o abismo” (2010, p. 64). Trataremos especificamente da transgressão, como um dos problemas centrais no pensamento de Bataille, no último capítulo desta tese.