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CAPÍTULO 2 EXPERIÊNCIA: ÚNICA AUTORIDADE, ÚNICO VALOR

2.2 A experiência interior

2.2.2 Em torno da noção de trabalho

O ser diferenciado, isolado, particularizado, está precisamente no modo de existência do projeto, que é análogo ao mundo do trabalho. Bataille aborda essa questão com mais profundidade em L’érotisme, quatorze anos após L’expérience intérieure, a partir do diálogo com a psicanálise freudiana. O “trabalho”, para o autor, é a atividade que permitiu a humanidade permanecer viva, prolongando sua presença a partir da criação e do desenvolvimento de ferramentas que melhorassem sua sorte na terra, isto é, amenizando os efeitos da violência da natureza bruta, como já havia afirmado Freud (2010, p. 61) no seu escrito de 1930, O mal-estar da civilização. Mas é preciso salientar que as diversas discussões sobre o conceito de trabalho que Bataille levanta ao longo de sua obra, na realidade, nos remetem a uma questão filosófica fundamental colocada por Hegel na Fenomenologia do espírito, a saber: o trabalho como o meio pelo qual a consciência segue rumo à efetivação e à compreensão da liberdade humana na história (HEGEL, 2014). Essa atenção dada à noção de trabalho certamente está inserida no modo específico de como Bataille dialoga com Hegel.

Notadamente, a relação mais profícua de Bataille com Hegel se dá por intermédio de Alexandre Kojève, personalidade que exerceu grande influência no ensinamento e propagação da filosofia hegeliana na França, ao lado de Koyré e Hypollite, durante a primeira metade do século XX, e que influenciou o pensamento desta geração de intelectuais franceses34. Assim, torna-se mister afirmar que o Hegel trazido ao debate por Bataille é o “Hegel de Kojève”, o “[...] do saber absoluto e circular”, como bem disse Raymond Queneau (1963, p. 700). É bastante conhecida a interpretação demasiado “humanística” de Hegel operada por Kojève, uma versão antropológica da filosofia hegeliana35, que toma o capítulo IV, “A verdade da 34 Como sustenta Michel Surya (2012, p. 220) acerca da importância dos cursos de Kojève: “À n’en

pas douter quelques-unes des œuvres les plus considérables de l’après-guerre eurent en commun cette origine”. Como assíduo frequentador dos cursos de Kojève, com quem manteve uma longa amizade, Bataille compartilhava os assentos com um público presente nas aulas, que figurava nomes como Maurice Merleau-Ponty, Jacques Lacan, Eric Weil, Roger Callois, Raymond Queneau e, esporadicamente, André Breton e Sartre (ibidem). Como fruto desses cursos, foi publicado em 1947, na França, o livro Introdução à leitura de Hegel, cuja autoria é de Alexandre Kojève, contando com a organização dos textos (introdução, resumo dos cursos e apêndices) por parte e Raymond Queneau.

35 DESCOMBES, V. Lo mismo y lo outro: cuarenta y cinco anos de filosofía francesa (1933-1978).

certeza de si mesmo”, da parte “Consciência-de-si”, da Fenomenologia do espírito, como centro ao redor do qual gravita o pensamento de Hegel. A atenção dada por Kojève à dialética entre senhor e escravo, ou senhorio e servidão, denota a importância do papel da negatividade e do trabalho para a realização da consciência de si e de sua liberdade.

Kojève (2002, p. 11) parte da prerrogativa de que, para Hegel, o ser humano sabe de si mesmo, é consciente de si, e age no mundo numa relação de desejo. É através do desejo que nos mantemos vivos, que comemos e bebemos, que criamos diversas formas de manter a vida. Em suma, agimos para satisfazer os desejos, e o estatuto da ação é de transformação do objeto desejado, sua negação. Ele afirma: “Oriunda do desejo, a ação tende a satisfazê-lo, e ela só pode fazer isso pela negação, pela destruição ou, ao menos, pela transformação do objeto desejado: para satisfazer a fome, por exemplo, é preciso destruir ou, em todo caso, transformar o alimento” (KOJÈVE, 2002, p. 12, grifo do autor). A ação é negadora por excelência, pois transforma o objeto do desejo, o destrói enquanto coisa dada. Mas essa transformação, negatividade que o ser humano opera no mundo graças à ação e movido pelo desejo, não tem por objeto somente a natureza ou as coisas materiais que estão aí. Nesse sentido, Kojève é lapidar:

O Ser do homem, o Ser consciente de si, implica e supõe o desejo. A realidade humana só se pode constituir e manter no interior de uma realidade biológica, de uma vida animal. Mas, se o desejo animal é condição necessária da consciência-de-si, não é condição suficiente. Sozinho, esse desejo constitui apenas o sentimento de si (2002, p. 11, grifo do autor).

A natureza desse outro objeto, alheio ao que está dado, é ser também outro desejo. Desejar o desejo do outro, isto é, desejar ser objeto de desejo do outro é o que garante que o Eu desejante não seja um simples Eu animal, mas que vá além de seu Ser estático, dado, natural. O outro como horizonte no qual se cumpre as exigências do desejo implica a vida humana em comunidade. A possibilidade da existência de um Eu desejante que deseja outros desejos só é possível através de uma vida múltipla de desejos de outros, isto é, uma vida em rebanho onde muitos também desejam, mas que passa a ser uma vida em sociedade quando os seres desejantes do rebanho desejam os desejos uns dos outros. Podemos ler em Kojève:

O homem, portanto, só pode aparecer na Terra dentro de um rebanho. Por isso a realidade humana só pode ser social. Mas, para que o rebanho se torne uma sociedade, não basta apenas a multiplicidade de desejos; é também preciso que os desejos de cada membro do rebanho busquem – ou possam buscar – os desejos dos outros membros. Se a realidade humana é

uma realidade social, a sociedade só é humana como conjunto de desejos desejando-se mutuamente como desejos. O desejo humano, ou menlhor, antropogênico – que constitui um indivíduo livre e histórico consciente de sua individualidade, de sua liberdade, de sua história e, enfim, de sua historicidade –, o desejo antropogênico difere portanto do desejo animal (que constitui um Ser natural, apenas vivo [...]) pelo fato de buscar não um objeto real, “positivo”, dado, mas um outro desejo (2002, p. 13, grifo do autor).

Somente num plano da experiência intersubjetiva de sujeitos que se desejam é que a realidade humana se dá, realizando a história e a liberdade. O papel da negatividade é essencial nessa perspectiva, posto que os seres humanos intersubjetivamente transformam e criam o mundo. No entanto, aí se levanta um problema: se o desejo leva à ação negadora, como fica a situação entre sujeitos que se desejam? Como é possível uma vida que tem por objeto da negação outros sujeitos desejantes? Como fica a vida de um sujeito desejante que é objeto de outro desejo que é essencialmente negador? É exatamente aí que se configura uma espécie de “drama” na narrativa histórica da humanidade – narrativa de luta, pois no plano da experiência da vida, “plano fenomenológico”, para Kojève, a luta é a primeira manifestação da realidade humana (2002, p. 511).

Na Fenomenologia do espírito, o contexto do conflito que põe desejos como objeto de sujeitos (consciências) desejantes, ponto central para Kojève, aparece no tratamento que Hegel faz da figura da consciência-de-si. A consciência em seu percurso dialético de relação com o objeto passa a ser consciência-de-si quando sabe que a verdade do objeto, seu conceito, isto é, o em-si do objeto, está para ela mesma. A consciência passa a saber que ela é o em-si do objeto negado, mas também em-si para um Outro, no caso ela mesma. Como afirma Hegel:

Com efeito, o Em-si [do objeto] é a consciência, mas ela é igualmente aquilo para o qual é um Outro (o Em-si): é para a consciência que o Em-si do objeto e seu ser-para-um-Outro são o mesmo. O Eu é o conteúdo da relação e a relação mesma; defronta um Outro e ao mesmo tempo o ultrapassa; e este Outro, para ele, é apenas ele próprio (HEGEL, 2014, p. 135).

A consciência assume a posição autoconsciente da relação na qual ela é objeto para si mesma: ela é o conteúdo da relação e o próprio movimento do saber. Mas nesse momento inicial da consciência-de-si a natureza dessa relação é tautológica, a consciência não experimenta uma diferença essencial nessa relação dela consigo mesma. A diferença é suprassumida, pois o objeto que a faria voltar a si mesma a partir de um Outro, na realidade, é ela mesma. Como afirma Hegel: “A diferença não é; e a consciência-de-si é apenas a tautologia sem movimento do ‘Eu sou Eu” (HEGEL, 2014, p. 136). Nesse sentido, a

consciência apenas se sabe como em-si que tem por objeto ela mesma e não faz experiência de ser para-si (saber que ela é para uma outra consciência-de-si), e, assim, não experiencia a sua diferença a partir de uma alteridade. Ela precisa experienciar sua própria autonomia na relação de desejo com esse Outro, também consciência-de-si, como afirma José Henrique Santos (2007, p. 188): “É importante sublinhar a necessidade de a consciência-de-si experimentar seu objeto – outra consciência-de-si, – como objeto independente, no qual ela veja refletida sua própria autonomia”. A consciência como autônoma e negadora necessita se ver refletida em outro objeto que não seja absolutamente algo dado, mas sim sujeito (SANTOS, 2007). A questão é que, na autoconsciência, a consciência-de-si quer negar essa outra consciência-de-si com a qual se confronta. Mas a consciência-de-si como objeto do desejo, de negação, é também um negativo, subtraindo-se à negação da consciência-de-si que o faz, por sua vez, objeto de seu desejo. Conforme Santos:

Eis o momento essencial da elevação da consciência à consciência-de-si: sabendo-se um eu autônomo, ela experimenta o alter ego como um eu que se subtrai à negação. Enquanto em-si e para-si, ele é suficientemente independente para resistir à violência da supressão; fechando-se como um ouriço, escapa ao assédio da outra consciência (2007, p. 188).

Esse movimento de supressão do Outro como objeto independente expressa a natureza desejante (apetitiva) da consciência-de-si e garante para ela a certeza de si mesma, a sua verdade, na satisfação de seu desejo, desejo de suprassumir. Mas no confronto com outra, a consciência-de-si tem a experiência da independência do seu objeto posto na relação de desejo, de modo que, em linhas gerais,

[...] a consciência-de-si é certa de si mesma, somente através do suprassumir desse Outro, que se lhe apresenta como vida independente: a consciência-de- si é desejo. Certa da nulidade desse Outro, põe para si tal nulidade como sua verdade; aniquila o objeto independente, e se outorga, com isso, a certeza de si mesma como verdadeira certeza, como uma certeza que lhe veio-a-ser de maneira objetiva.

Entretanto, nessa satisfação a consciência-de-si faz a experiência da independência de seu objeto (HEGEL, 2014, p. 140).

Dessa maneira, vêm à luz a situação na qual a consciência-de-si se encontra, uma situação de luta, pois o seu objeto independente (outra consciência-de-si) lhe oporá resistência à satisfação do desejo de suprassunção. Somente na disposição de uma consciência-de-si para outra consciência-de-si é que se dá a verdade da autoconsciência, pois nessa relação vem a ela “a unidade de si mesma em seu ser outro”, fazendo a experiência de ser espírito, “substância

absoluta que na perfeita liberdade e independência de sua oposição – a saber, das diversas consciências-de-si para si essentes – é a unidade das mesmas: Eu, que é Nós, Nós que é Eu” (HEGEL, 2014, p. 142). O âmbito da experiência intersubjetiva da consciência-de-si é onde a sua verdade acontece, mas a simples relação entre as consciências-de-si não garante a realização de sua verdade, pois esta relação é de luta, conflito, havendo aí a duplicação de consciências-de-si que são por si antagônicas, negadoras, e cada uma toma a outra como objeto de seu desejo de suprassunção. Se uma consciência-de-si cabalmente negar a outra, não haverá mais espaço para a realização de sua verdade. É preciso que ambas existam, uma para outra numa relação dialética, a fim de experimentarem em sua duplicação a unidade de ser em si (desejantes) e para si (desejadas). Hegel afirma categoricamente:

A consciência-de-si é em si e para si quando e por que é em si e para si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido. O conceito dessa unidade em sua duplicação, [ou] da infinitude que se realiza na consciência- de-si, é um entrelaçamento multilateral e polissêmico. Assim seus momentos devem, de uma parte, ser mantidos rigorosamente separados, e de outra parte, nessa diferença, devem ser tomados ao mesmo tempo como não diferentes, ou seja, devem sempre ser tomados e reconhecidos em sua significação oposta (2014, p. 142).

É no reconhecimento que a consciência-de-si alcançará sua verdade e se lançará para a liberdade efetiva. Entretanto, a relação de reconhecimento é conflituosa e cada consciência se colocará diferentemente uma para outra, que Hegel abordará sob a forma de um duelo, nos termos de senhorio e servidão. Há vários desdobramentos de ação intersubjetiva por parte das consciências nessa relação. Inicialmente, ao se confrontar com outra, a consciência-de-si vem a ser fora de si, perdendo-se, pois se intuirá nessa outra consciência. Ao mesmo tempo, em sua reflexão, ela suprime (conservando) a outra consciência, pois não a verá como um ser independente em sua essencialidade, “[...] não vê o Outro como essência, mas é a si mesma que vê no Outro” (HEGEL, 2014, p. 143, grifo do autor). Assim, para ter a sua certeza, a consciência-de-si precisa suprassumir a si mesma enquanto ser-outro, refletida no outro.

Desse “primeiro encontro” resulta um duplo retorno a si por parte da consciência-de- si. Por um lado, ela retorna a si mesma ao suprimir a outra (consciência-de-si) enquanto essência independente: “[...] a consciência retorna a si mesma mediante esse suprassumir, pois se torna de novo igual a si mesma mediante esse suprassumir do seu ser-Outro” (HEGEL, 2014, p. 143, grifo do autor). Por outro lado, a consciência “[...] restitui também a ela mesma a outra consciência-de-si”, isto é, o Outro se põe para a consciência outra vez sem nele estar o ser-Outro desta consciência, o que para Hegel deixa este Outro, a outra consciência-de-si,

livre de novo (HEGEL, 2014). O autor salienta que esse movimento, assim visto, é unilateral (é o agir de uma só consciência), mas na realidade esse agir é duplo, pois o Outro aí é uma consciência viva independente que realiza o mesmo movimento, age da mesma maneira.

Delineia-se aí um campo de experiência intersubjetiva necessário para a consciência- de-si alcançar a sua verdade, campo esse totalmente diferente da simples vida natural que a consciência leva, uma vez que é somente no confronto com outra igual a si, e não somente com a natureza, que a consciência tem sua vida posta à prova. Como afirma José Henrique Santos, “[a] natureza não oferece à consciência-de-si a certeza de sua verdade (pois a verdade natural é apenas genérica), assim é preciso que ela experimente a diferença que a torna consciente de si” (2007, p. 198). A consciência sendo capaz de “desprezar a vida”, tanto a sua como a alheia, pode descobrir a verdade de sua não naturalidade, fazendo surgir a diferença por meio da qual a consciência terá a certeza de si mesma. É preciso, pois, que a consciência negue seu ser enquanto objeto, isto é, que se afirme como consciência independente e não encerrada na mera vida natural (SANTOS, 2007, p. 198).

O movimento que caracteriza a conquista da certeza só pode se dar numa relação intersubjetiva, onde o agir das consciências é duplo – uma faz o que se espera que a outra faça – e cada uma delas dirige-se para a morte da outra. É nesse quadro que se configura a relação de conflito pelo reconhecimento, pois a conquista da verdade da certeza de si demanda expor- se ao risco da morte. No entanto, nesse contexto, a realização efetiva da morte anula completamente a possibilidade de conquista da certeza de si em geral (HEGEL, 2014, p. 146), pois uma consciência morta não é capaz de agir, ela foi absolutamente negada, e também estando morta não se coloca como objeto de desejo por outra consciência, isto é, a morte impossibilita – tanto numa consciência morta como em outra que mata – a experiência intersubjetiva pela qual se alcança a certeza da verdade de si mesma.

A negatividade da morte é uma negatividade absoluta, a qual Hegel se refere como abstrata e que não é a negatividade dialética que a consciência opera, de suprassumir conservando o ser suprassumido. Hegel diz: “Sua operação [da morte] é a negação abstrata, não a negação da consciência, que suprassume de tal modo que guarda e mantém o suprassumido e com isso sobrevive a seu vir-a-ser-suprassumido” (2014 p. 146, grifo do autor). A experiência intersubjetiva entre consciências é possível estando a efetividade da negatividade abstrata mantida alhures, conforme o seguinte quadro: a relação entre duas consciências se dá enquanto estas são autoconscientes (de si mesmas) e precisam colocar à prova a certeza desse saber. Primeiramente, elas se apresentam como dois seres vivos (essentes) que se lançam a colocar em risco a própria vida, isso partindo da não aceitação de

serem apenas essentes. Trata-se de uma luta, pois implica a negação de um outro. Esta luta de vida e morte pode findar com a morte de uma das duas consciências, ou com a morte de ambas (KOJÈVE, 2002). No entanto, mesmo a vida (enquanto essente) sendo negada pela autoconsciência, é ela necessária para a existência da autoconsciência: a autoconsciência precisa do suporte natural, ser essente, para realizar a verdade, certeza de si mesma, isto é, fazer a experiência da essencialidade da vida. Ela tem por objeto, primeiramente, a outra consciência enquanto essente (Eu simples), e pela mediação desse Outro, volta a si tendo a unidade que caracteriza a consciência como Eu simples (essente) dissolvida: “A dissolução daquela unidade simples é o resultado da primeira experiência” (KOJÈVE, 2002). Esse “momento” da relação aqui descrita parece ser, para Hegel, um momento de confrontação pragmática entre as consciências, pois uma age em relação a outra no horizonte do desejo e da satisfação, implicando a realização de fins práticos, como ressalta Vladimir Safatle (2012, p. 30).

Passada a dissolução de saber-se (a consciência) como somente essente frente a outra consciência, tomada também como essente, tipos diferentes e pragmáticos de consciência-de- si surgem, uma dominadora e outra servil, conforme Hegel afirma:

[...] mediante essa experiência se põem uma pura consciência-de-si, e uma consciência que não é puramente para si, mas para um outro, isto é, como consciência essente, ou consciência na figura da coisidade. São essenciais ambos os momentos; porém como, de início, são desiguais e opostos, e ainda não resultou sua reflexão na unidade, assim os dois momentos são como duas figuras opostas da consciência: uma, a consciência independente para a qual o ser-para-si é a essência; outra, a consciência dependente para a qual a essência é a vida, ou o ser para um Outro. Uma é o senhor, [a] outra o escravo (HEGEL, 2014, p. 146-147).

No embate entre vida e morte como momento de colocar à prova o saber da certeza de si, uma consciência enfrenta o risco desprezando a sua própria vida, no sentido de não temer pelo seu fim, aceitando voluntariamente a fatalidade e tendo como o essencial a independência do ser-para-si. A outra consciência se apega à vida como algo essencial, por medo de perdê-la, tornando-se um ser-para-outro dependente. Isso acarretará a relação de senhorio e servidão, objeto de análise da parte “Independência e dependência da consciência- de-si: dominação e escravidão”, presente no capítulo IV da Fenomenologia do espírito, que trata os modos diferentes de relação que as consciências-de-si têm uma com a outra, de domínio e subserviência, expressas pelas figuras do senhor e do escravo.

Na luta, o senhor conseguiu suprassumir a natureza, a vida natural, pondo-se no seu extremo, realizando o conceito de seu ser-para-si. Mas isso se dá pela mediação de um outro, o escravo. Como afirma Santos: “O senhor é a consciência mediada consigo por uma outra consciência sintetizada com a natureza (ou a coisa em geral) que, por medo da morte, não conseguiu sobressumir” (2007, p. 200). A consciência do senhor existe para si superado o medo da morte, já a do o escravo existe para um outro, pois ficou dependente da vida natural.

Na relação de dominação para com o escravo, o senhor agora tem por objeto de desejo tanto a coisa em geral quanto o escravo. Afirma Hegel: “O senhor se relaciona com estes dois momentos: com uma coisa como tal, objeto do desejo, e com a consciência para a qual a coisidade é o essencial” (2014, p. 147, grifo do autor). É preciso notar que o desejo do senhor tem uma relação mediada com seus objetos, pois o escravo está entre ele (o senhor) e a coisa (objeto do desejo), ao passo que a coisa está entre o senhor e o escravo, em suma: para o senhor o escravo está anteposto (como termo médio) à coisa e a coisa está anteposta (como termo médio) ao escravo. Hegel afirma: “O senhor se relaciona mediatamente com o escravo por meio do ser independente [coisa como objeto do desejo a ser suprassumido], pois justamente ali o escravo está retido”; continua mais adiante: “O senhor também se relaciona mediatamente por meio do escravo com a coisa” (2014, p. 147).

O senhor tem, portanto, uma relação imediata com a certeza de si, mas na realidade essa relação se dá na dependência do outro que é inessencial, pois seu ser (do escravo) é para um outro (o senhor). Por um lado, o escravo nega a coisa pelo trabalho, mas não a nega até a aniquilação (HEGEL, 2014, p. 147), esta é a realização da negatividade do escravo para com a coisa, enquanto que o senhor, por sua vez, se mantém dependente do escravo para satisfazer seu desejo com a coisa, de modo que essa satisfação do senhor se caracteriza como gozo. Conforme Hegel:

[...] para o senhor, através dessa mediação, a relação imediata vem-a-ser como a pura negação da coisa, ou como gozo – o qual lhe consegue o que o