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Riso e lágrimas que não têm planos: o sujeito lacerado e a experiência interior, segundo Georges Bataille

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Academic year: 2021

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CENTRO DE CIENCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

ANDERSON BARBOSA CAMILO

RISO E LÁGRIMAS QUE NÃO TÊM PLANOS: o sujeito lacerado e a experiência interior, segundo Georges Bataille

NATAL 2020

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RISO E LÁGRIMAS QUE NÃO TÊM PLANOS: o sujeito lacerado e a experiência interior, segundo Georges Bataille

Tese apresentada ao curso de Pós-graduação em Filosofia, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Aníbal Pellejero.

NATAL 2020

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Sistema de Bibliotecas – SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Camilo, Anderson Barbosa.

Riso e lágrimas que não têm planos: o sujeito lacerado e a experiência interior, segundo Georges Bataille / Anderson Barbosa Camilo. - Natal, 2020.

213f.: il. color.

Tese (doutorado) - Centro de Ciência Humanas, Letras e Artes, Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2020.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Aníbal Pellejero.

1. Experiência interior - Tese. 2. Intensidade - Tese. 3.

Limites - Tese. 4. Angústia - Tese. 5. Êxtase - Tese. 6. Erotismo - Tese. I. Pellejero, Eduardo Aníbal. II. Título.

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RISO E LÁGRIMAS QUE NÃO TÊM PLANOS: o sujeito lacerado e a experiência interior, segundo Georges Bataille

Tese apresentada ao curso de Pós-graduação em Filosofia, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Filosofia.

Aprovada em: 19/02/2020

BANCA EXAMINADORA

______________________________________ Prof. Dr. Eduardo Aníbal Pellejero

Orientador(a)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

______________________________________ Prof. Dr. Sergio Luís Rizzo Dela-Savia

Membro interno

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

______________________________________ Profa. Dra. Imaculada Kangussu

Membro externo

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Membro externo

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

______________________________________ Prof. Dr. Daniel Galantin

Membro externo

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Aos meus pais, Terezinha Barbosa Camilo e Rizeudo Camilo da Silva, pelo apoio dado a mim, em todos os sentidos, desde o começo de minha jornada na filosofia. Também agradeço a Brenda e a Bernadete pela grandiosa ajuda e compreensão de minha ausência nos momentos finais da escrita da tese. A todas essas pessoas sou imensamente grato.

Ao professor Dr. Eduardo Pellejero, que acompanha minha pesquisa desde a época da graduação, vindo a ser um grande amigo e paciente interlocutor que, em muitas conversas, em meio a improvisos musicais, me fazia voltar para casa cheio de questões e insights sobre a obra de Bataille.

Aos professores Dr. Vinícius Honesko, Dr. Gilson Iannini, Dr. Sergio Dela-Savia, Dr. Daniel Galantin e Dra. Imaculada Kangussu, pelas críticas contundentes e sugestões oportunas no momento da qualificação e da defesa final desta tese.

Ao professor Dr. Federico Sanguinetti, pelas aulas e conversas sobre a filosofia de Hegel e outros assuntos transversais.

A todos os meus amigos e amigas do grupo Penumbras que, em muitos encontros despojados, contribuíram de uma maneira ou de outra para a elaboração desta tese. A esse grupo também incluo Carol e Danilo, pela amizade, empatia e solidariedade.

A Leonardo Silva Dias, por me socorrer muitas vezes acerca das questões formais deste trabalho.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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Quando eu canto o seu coração se abala Pois eu sou porta-voz da incoerência

Desprezando seu gesto de clemência Sei que meu pensamento lhe atrapalha Cego o sol seu cavalo de batalha E faço a lua brilhar no meio-dia Tempestade eu transformo em calmaria E dou um beijo no fio da navalha Pra dançar e cair nas suas malhas Gargalhando e sorrindo de agonia Se acaso eu chorar não se espante O meu riso e o meu choro não têm planos Eu canto a dor, o amor, o desengano E a tristeza infinita dos amantes Don Quixote liberto de Cervantes Descobri que os moinhos são reais Entre feras, corujas e chacais Viro pedra no meio do caminho Viro rosa, vereda de espinhos Incendeio esses tempos glaciais (Alceu Valença, Agalopado)

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Escrever não é mais que um jogo jogado com uma realidade inapreensível. (Georges Bataille, Le coupable)

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Esta tese tem como objetivo abordar o problema da experiência interior na perspectiva crítica elaborada por Georges Bataille. Este trabalho privilegia os volumes de La somme atéologique e aborda a experiência interior como experiência que nega qualquer autoridade exterior, isto é, como experiência soberana. Para Bataille, a autoridade da experiência interior é a própria experiência, mas tal autoridade se expia. A experiência é um movimento constante de contestação dos dogmas e o sujeito que vive por esta contestação é um sujeito dos limites da angústia e do êxtase. Como assinalou Foucault em Prefácio à transgressão, a experiência interior para Bataille é uma experiência dos limites, o excesso comanda a experiência, que é experiência da perda do sujeito. Nesse sentido, o pensamento de Bataille critica a negatividade pensada por Hegel, pois a negação da experiência interior expressa uma negatividade sem emprego. Bataille quis pensar uma filosofia oposta à de Hegel, uma filosofia que põe a si mesma na colocação em questão do discurso. A escrita sobre a experiência interior reflete a difícil tarefa de abordar a experiência que escapa das formas discursivas. Como resposta às dificuldades do discurso da experiência, Bataille realiza algumas operações no seio da linguagem, como figurações e evocações de imagens no intento de expor um sujeito lacerado nas vias da alteração das formas discursivas. Além disso, nos propomos discutir nesta tese o erotismo como manifestação da experiência interior e inscrição do corpo no domínio da violência dos desejos, abordando os conceitos de transgressão e interditos, ou transgressão e limites.

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This thesis aims to explore the problem of inner experience involved in Georges Bataille’s approach. This work focuses on the Atheological summa and discusses the inner experience as experience that denies the external authority, i.e. as sovereign experience. For Bataille, the authority of the inner experience is the own experience, but the authority expiates itself. The experience is a constant movement of dogma’s contestation and the subject that lives by this contestation is a subject of the anguish and ecstasy’s limits. As Foucault claims in his Preface to the transgression, the Bataille’s inner experience is a limit-experience, the excess commands the experience that is the experience of a subject loss. Thus, Bataille’s thought is a critique of Hegel’s negativity, because the negation of inner experience is useless negativity. Bataille wanted to think a philosophy opposite to Hegel’s, a philosophy that puts itself into the discursive question. The writing about the inner experience reflects the hard quest to discuss the experience that escapes from the discursive forms. Answering the experience discourse difficulties, Bataille does some operation in the essence of language, like figurations and evocations of some images in order to expose a lacerated subject through altered discursive forms. Furthermore, we claim in this thesis to discuss the eroticism as a manifestation of the inner experience and body inscription into the field of the desire violence, covering the concepts of transgression and prohibitions, or transgression and limits.

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Figura 1 – Femme en chemise assise dans un fauteuil (1913) Figura 2 – Portrait d’une danseuse (Danseuse espagnole) (1928) Figura 3 – Campanuele des Açores (Camapnula vidalii)

Figura 4 – Crosse de Fougère (Blechnum spicante) Figura 5 – Mariage. Seine-et-Marne (1905)

Figura 6 – Fotomontagem de atrizes Figura 7 – Baigneuses (1928) Figura 8 – Nu féminin (1928)

Figura 9 – Le miel est plus doux que le sang (1927) Figura 10 – Fotomontagem da revista Documents (1929)

Figura 11 – Fotomontagem da revista La Révolution surréaliste (1924) Figura 12 – Gros orteil, sujet masculin, 30 ans.

Figura 13 – L’acrobate (1930)

Figura 14 – Aux abattoir de La Villette

Figura 15 – Desenho de André Masson (Capa do primeiro número da revista Acéphale) Figura 16 – Fou Tchou Li

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INTRODUÇÃO ... 13

CAPÍTULO 1 – O PRIMEIRO CENÁRIO: DESPROPORÇÃO E AUSÊNCIA DA FORMA IDEAL EM DOCUMENTS ... 22

1.1 O círculo de Breton ... 26

1.2 Documents e o embate entre Bataille e Breton: as sementes de um pensamento aberto à experiência ... 32

1.2.1 Sordidez e linguagem das flores ... 34

1.2.2 A negação da forma humana ideal ... 38

1.2.3 Uma questão de derrisão: da forma humana à matéria e da matéria à forma humana .... 50

CAPÍTULO 2 - EXPERIÊNCIA: ÚNICA AUTORIDADE, ÚNICO VALOR ... 65

2.1 Às voltas com Acéphale ... 65

2.2 A experiência interior ... 70

2.2.1 Ir fundo na angústia ... 80

2.2.2 Em torno da noção de trabalho ... 84

2.2.3 O trabalho e a libido ... 101

2.2.4 Excesso e desejo ... 105

2.2.5 Outra vez a angústia ... 114

2.2.5.1 Da angústia à delícia... 115

2.2.6 A comunicação e o drama... 123

CAPÍTULO 3 – EXPERIÊNCIA E ESCRITA: O PROBLEMA DO DISCURSO ... 129

3.1 A fissura do sentido ... 136

3.2 Da escritura dispendiosa ... 151

3.2.1 Figuração e desaparecimento de si na escrita ... 163

CAPÍTULO 4 – DO EROTISMO COMO MANIFESTAÇÃO DA EXPERIÊNCIA ... 176

4.1 O erotismo (in)fundado na transgressão ... 176

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INTRODUÇÃO

Georges Bataille (1897-1962) é um autor cuja obra está estreitamente ligada à sua vida. Tal como um leitor de Nietzsche, Kafka ou Dostoievsky, aquele que se depara com as obras de Bataille sente um forte desejo de saber quem é o seu autor, que gostaria, antes de tudo, de ver seus escritos classificados como malditos. Livros desconcertantes, angustiantes em demasia, como L’histoire de l’œil, Madame Edwarda, L’expérience intérieure, L’érotisme etc., refletem a afirmação de uma vida turbulenta, efervescente, no contexto de narrativas ou visões de mundo expressas num pensamento que dialoga com a filosofia, com a psicanálise, com a antropologia e sociologia francesas. Sabemos muito bem que seus projetos intelectuais, parcerias, sociedades “secretas”, livros etc., podem ser pensados como reflexos de exigências da sua vida, e é preciso demarcar esta característica tanto em sua literatura quanto em sua obra “filosófica e crítica”. Vale salientar que as palavras “filosófica” e “crítica” estão entre aspas para indicar a dificuldade de classificação dos escritos bataillianos, e isto se deve à proposta investigativa do autor de proporcionar um “pensamento móvel”, como ele mesmo expõe em La théorie de la religion, livro redigido em 1948, mas não publicado em vida: “Gostaria de ajudar meus semelhantes a terem a ideia de um movimento aberto da reflexão. Este movimento não tem nada a dissimular, nada a esconder” (BATAILLE, 1976b, p. 356) 1.

Os livros de Bataille transparecem esta “abertura”, mobilidade que não se encerra. Eles estão sempre no limite – sua literatura está no limite da filosofia, sua filosofia está no limite da literatura (DURANÇON, 1976) –, movendo-se em inúmeras direções. Sua obra filosófica versa sobre erotismo, soberania, psicanálise, história das religiões, economia, antropologia, sacrifício, crítica à metafísica, ou seja, a obra de Bataille é marcada pela fragmentação, fragmentação esta que não se dá somente pelo conteúdo, mas sobretudo pela forma, pelo modo de exposição do seu pensamento: comentários filosóficos emendados em abordagens antropológicas, revezado em confissões na forma de diário, súplicas inventadas pelo próprio Bataille, súplicas aos céus numa espécie de simulacro místico, narração de anedotas ou piadas, evocação de imagens etc. Algo estranhíssimo acontece em relação à sua obra literária, sobretudo pelo fato de alguns livros, em sua maioria, terem sido publicados sob pseudônimos: o autor assinava com seu próprio nome as introduções das literaturas

1 Todas as citações de Bataille nesta tese são traduções a partir dos textos originalmente em francês: os textos da

revista Documents aqui utilizados pertencem à reedição organizada por Denis Hollier em 1991; os textos da revista Acéphale pertencem aos exemplares da década de 1930; os demais textos de Bataille utilizados nesta tese pertencem aos volumes das obras completas, publicados pela Gallimard. Vale salientar que, quando utilizados textos de comentadores que se encontram em língua estrangeira, também realizamos a devida tradução.

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publicadas por ele mesmo sob pseudônimos, como no caso do prefácio de Madame Edwarda. Qualquer leitor que pretenda prestar contas com sua obra terá grandes dificuldades2.

Por mais que a fragmentação caracterize a obra e o pensamento do autor de L’histoire de l’œil, a questão que deriva desta problematização é a existência de uma coerência que se faz presente nos percalços, certos fios condutores que atravessam as turbulentas décadas da primeira metade do século XX. Bataille sabia disso, declarando precisamente que, apesar de suas incoerências, ele se via dentro de um pensamento rigorosamente ordenado, como ele mesmo afirma: “Toca-me profundamente em meus escritos uma ordenação tão rigorosa que, depois de um ano, a picareta acerta no mesmo lugar (negligenciando os resíduos)” (BATAILLE, 1976b, p. 356). Que local é esse onde a picareta sempre atinge? Essa afirmação está em Le coupable (1944), escrito em maio de 1943, e trata-se de uma afirmação confessional do diário de estadia em Vézelay. Em 1943, Bataille publica o primeiro volume de La somme atéologique, intitulado L’expérience intérieure. Nesse mesmo ano continua a escrever os diários que darão luz ao segundo volume da somme, Le coupable.

Tudo indica que 1943 foi um ano conturbado para Bataille: marcado pela publicação de um livro polêmico (L’expérience intérieure) ocorrida no mesmo ano em que o ilustre filósofo francês Jean-Paul Sartre lançava seu famoso tratado L’être et le néant. Sartre redigiu uma extensa resenha crítica e polêmica sobre o livro de Bataille acerca da experiência interior. Além disso, Bataille estava doente de uma tuberculose adquirida em 1942, o que o levou a passar meses em Vélezay, longe da Paris ocupada pelos nazistas.

Em meio a tudo isso, Bataille afirma que está impressionado pelo fato de a picareta voltar a acertar o mesmo lugar. “Um sistema de uma precisão de relógio ordena meus pensamentos (mas nesse trabalho inacabado, me esquivo sem fim)” (BATAILLE, 1973b, p. 356, grifo do autor). As últimas palavras dão a entender como se relacionam essa fragmentação do pensamento e da obra batailliana com a sua coerência e ordenamento. Nos longos doze volumes das obras completas – de fato, Bataille escreveu muito –, cada um tendo em torno de seiscentas a setecentas páginas, vemos o autor perseguir as mesmas concepções e retornar várias vezes aos mesmos problemas. No entanto, o faz segundo outros vieses, alternando entre a literatura, a economia, o excesso e o erotismo, que podemos resumi-los numa proposta intelectual e existencial mais geral, a saber: liberar a experiência humana para

2 “A dificuldade em prestar contas com o conjunto da sua obra é, ao menos em parte, devida ao caráter

fragmentário, descontínuo dos seus escritos. Livros assinados com um pseudônimo, porém com introduções assinadas por Georges Bataille; livros abandonados e retomados que se movem sobre os terrenos mais diversos” (RELLA, 2010, p. 22).

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o desencadeamento de si mesma, isto é, uma liberdade soberana que permita o desencadeamento de uma experiência sem compromissos a não ser consigo mesma, que a experiência simplesmente seja3. A empreitada de Bataille é abordar a experiência em seu livre desencadeamento, afirmando as suas mais diversas formas: eróticas, artísticas, sacrificiais, soberanas, sagradas.

A experiência desencadeada, interior, e o estatuto do sujeito lacerado, posto em questão, são os temas aos quais esta tese se lança. Dito isso, é válido salientar: qualquer um que pretende situar a partir de uma leitura crítica um determinado problema no pensamento de um autor, está disposto a fazer recortes. Normalmente esses recortes levam à exclusão, ou pelo menos ao escamoteamento, de certas noções em detrimento de outras. Além disso, se for o caso de interpretar a obra de algum pensador segundo um recorte, pode-se cair em certos problemas e o mais perigoso deles talvez seja que tal interpretação, pelo foco delimitado, se dê de forma incompleta, isto é, uma determinada noção que sirva de chave interpretativa (a do recorte) pode não estar no início do pensamento do autor, ou pode por ele ter sido abandonada ao longo de sua obra. O caso de Bataille está imerso nessa complexidade, mas tem um certo agravamento no trato de suas questões. Se aqui nos propomos a falar sobre a noção de experiência em Bataille, não nos isentamos de circunscrever o trajeto e “montar o cenário” que a noção de experiência ocupa nos diversos momentos de sua obra, mas com isso não deixamos de cair no constrangimento de dar uma “forma” a um pensamento que se quis aberto, móvel e transgressor, em constante movimento de ruptura.

A noção de experiência pode ser uma chave interpretativa da obra de Bataille e o fato de a discriminarmos como apenas uma implica, aqui, afirmar que há várias. Insistimos nesse ponto a fim trazer à tona outra característica de sua obra: as noções centrais de seu pensamento comunicam-se entre si de uma forma tão estreita que a fragmentação nos abre caminho e permite adentrá-lo sob qualquer viés ou noção própria a ele. O léxico batailliano pertence a vários lugares os quais sua obra habita: à filosofia, à teologia, à psicanálise, à sociologia etc. Em suma, termos como “economia geral”, “dispêndio”, “experiência interior”, “soberania”, “sagrado”, “profano”, “transgressão”, entre outros, podem ser a porta de entrada e a esteira pela qual podemos percorrer o pensamento de Bataille4. No entanto, o vocabulário

3 Lembremos o que Eduardo Pellejero (2017, p. 39) diz sobre Bataille em meio às guerras da primeira metade do

século XX: “Numa época em que o homem se descobria no-mundo, como parte de uma estrutura intersubjetiva complexa, que exigia a sua solidariedade para a realização da humanidade na história, Bataille postulava a soberania de um desejo sem compromissos, totalmente autônomo na sua consumação sem objetivos”.

4 “Os escritos de Bataille não podem ser lidos senão começando, quase gratuitamente, por um texto qualquer. No

entanto, este método rigorosamente ametódico revela em cada ocasião uma insistência em certos temas e, sobretudo, uma maneira de abordá-los que assinalam um pensamento sustentado” (MATONI, 2011, p. 32).

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aí existente assume a própria mobilidade do pensamento5, é um vocabulário móvel que se expõe nos limites de seus sentidos no rigor da obra, como bem afirma Michel Surya: “Uma coisa portanto é certa: da filosofia, e até mesmo da teologia, ele [Bataille] soube fazer daquela mais do que uma noção que confere a comunicação de seus textos, de modo que noções sejam empregadas frequentemente desviadas de seu uso” (2012, p. 389). A fragmentação, concebida como sinônimo de turbilhão ou de desordem, é tão rigorosamente pensada que pode ser considerada como sistemática (SURYA, 2012).

Uma espécie de sistematicidade do assistemático. Vários caminhos e modos de tratar os mais variados conceitos acabam tocando no “pensamento móvel” de Bataille. A picareta o acerta. Somos tentados a pensar que essa mobilidade de seu pensamento também reflete a ausência de repouso de sua vida, pois sabemos que ela se passava frequentemente nos excessos dos bordéis, das bebidas e das apostas. Mas, para não parecer de antemão um tratamento biográfico abusivo, o próprio Bataille era lúcido em relação ao impacto que seu pensamento sofria pelas suas experiências, o contraste entre o rigor e a incoerência. Diz ele sobre si mesmo, em terceira pessoa:

Se o pensamento e a expressão do pensamento se transformou em seu domínio privilegiado, isso não se dá sem ter antes multiplicado, na medida de seus meios, experiências aparentemente sem coerência, mas que, justamente, a incoerência significa um esforço para embaralhar a totalidade dos possíveis, mais precisamente, para rejeitar sem lassidão cada possibilidade excludente de outras (BATAILLE, 1976c, p. 462).

Uma vida de experiências levadas aos limites nos bordéis, apostas e touradas, em decênios ao longo de duas grandes guerras mundiais, que se ligam ao esforço do pensamento de ir rigorosamente o mais longe possível; experiências que parecem refletir um pensamento obsessivo sobre a experiência. Sendo assim, como não falar da experiência? Na realidade, como falar da experiência? Como falar de Bataille? Como falar daquele que foi, segundo Foucault, um dos escritores mais importantes de seu século6? Essa foi a dificuldade que

muitos tiveram ao falar do pensamento batailliano, e que sem nenhuma restrição a confessaram, alguns com mais ênfase, outros com menos. Vemos essas primeiras aparições na década de 1970 – década em que se concretizou a publicação das Obras Completas de

5 “A aparente simplicidade do vocabulário batailliano não deve iludir: o pensamento de Bataille, como aquele de

Nietzsche, só é fácil em aparência. Sob formas estranhas à linguagem convencional, Bataille se lança a uma paciência e trabalho herético de distorção” (SURYA, 2012, p. 389).

6 Foucault assina a apresentação das Obras Completas de Bataille, sendo um dos responsáveis pela organização dos textos. Ver FOUCAULT, M. Presentation. In: BATAILLE, G. Œuvres Complètes Vol. I. Paris : Gallimard, 1970.

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Bataille, apresentadas por Michel Foucault –, nos livros La prise de la concorde (1974) e Georges Bataille (1976), escritos por Dennis Holier e Jean Durançon, respectivamente. Mas não nos esqueçamos dos célebres ensaios da década de 1960 que expunham um tratamento demasiadamente difícil do pensamento batailliano, são eles: “Prefácio à transgressão” (1963), de Michel Foucault, e “Da economia restrita à economia geral: um hegelianismo sem reserva” (1967), de Jacques Derrida. Se em muitos momentos Bataille sentia grande desconforto ao escrever seus livros (BATAILLE, 1973a), talvez não seja menor o mal-estar que invade aquele que se propõe a falar de um pensamento que admitia o fracasso de seu intento: é o mal-estar de falar de Bataille.

Falar sobre algo, discursivamente, implica uma vontade que parte de um suposto lugar de segurança. Visando a inteligibilidade, segundo Hollier, o discurso impõe uma forma ao que é dito: “[...] o discurso ‘sobre’ [sur] é o exemplo mesmo do discurso certo [sûr]” (1974, p. 53). Não queremos aqui problematizar uma teoria da correspondência da verdade, mas assinalar que invade o sujeito falante uma crença de que o que se fala corresponde àquilo sobre o que se fala e isso o leva a certo sentimento, não tão descarado, mas existente, de posse do objeto referido na fala. O discurso toma o objeto para si, a ele o objeto pertence. “Escrever sobre [sur] é fazer um truque que é quase sempre aquele do proprietário, aquele do mestre que domina ‘seu’ assunto, mas, ao mesmo tempo, um passe de mágica que o esconde” (HOLLIER, 1974, p. 53). Se o discurso tem uma pretensão de encerramento, como escrever, então, sobre algo que não foi encerrado, que se colocava como escorregadio a qualquer encerramento?

Numa tentativa de reconstruir o pensamento de Bataille a partir de sua relação com a escrita, Durançon o põe sob a perspectiva da provocação: o pensamento de Bataille é um pensamento provocante. Falar sobre obras provocantes pode levar ao silêncio e ao mutismo, mas pode levar “talvez também a responder – mais próximo do silêncio – à provocação que elas nos endereçam” (DURANÇON, 1976, p.11). Abraçar a possibilidade do fracasso, mesmo numa tentativa de apontar certas chaves de leitura, já se coloca em vias de responder à provocação de Bataille. Se também assumimos, junto com o autor, um certo rigor no seu pensamento, cuja leitura nos propicia várias portas de entrada para o mesmo, isso não impede o trabalho de escrita desta tese, que almeja ser uma chave interpretativa possível. Assim, vislumbrando certas possibilidades, essa vontade está presente como esforço na confrontação da colocação em jogo, pois retomar Bataille é também retomar um pensamento móvel que intenta o questionamento. E, para operar o questionamento, é preciso que reste o que deve ser questionado: o discurso.

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Se afirmamos o rigor do pensamento de Bataille, não podemos negligenciar de nenhum modo o caráter irregular e fragmentário de sua obra, na qual essa rigorosidade faz a sua morada. Como dito, não é que tudo seja assistemático, mas os escritos batallianos se assemelham a um caramujo que anda sobre a lâmina da navalha: o caminho é trilhado ao preço do desmantelamento do sujeito falante, é a exposição da tensão de pôr numa narrativa coerente o incomensurável que foi visado. Bataille escreve:

Me represento uma série de visões no instante simultâneo a elas, onde minha experiência do riso, aquela do erotismo, do êxtase, enfim, aquela da morte, se inscrevem numa perspectiva única: esta perspectiva tem somente um sentido para mim, mas traduzi-la em livros representa um esforço esgotante, interminável... (1987c, p. 636).

Escrever sobre a experiência que coloca o sujeito em questão não é tarefa fácil. Mas, admitindo esse postulado e aceitando os trabalhos de Hércules, esta tese de doutorado é composta por quatro capítulos. No primeiro capítulo nos propusemos a recriar uma espécie de cenário sobre o início das preocupações e questões do pensamento de Bataille, que o levaram, na década de 1940, ao tratamento do problema da experiência. Notadamente, visando o escopo do trabalho, houve delimitações na recriação desse cenário. Partimos da polêmica relação entre Bataille e o surrealismo francês em meados da década de 1920, culminando com sua saída do movimento liderado por André Breton. Logo após a sua saída, Bataille se juntou a outros dissidentes do movimento surrealista e com eles criou Documents, uma revista heterogênea sobre arte e etnografia, que tinha como um dos principais propósitos ser o oposto da revista oficial do surrealismo, La révolution surréaliste. Nascem na época de Documents muitas noções centrais sobre a questão da experiência. Há nos textos de Bataille de 1929 e 1930, anos em que a revista era dirigida por ele, uma preocupação por uma existência menos regrada, limitada, de modo que o autor nega veementemente qualquer imagem essencialista do ser humano. De modo extremo, Bataille desacredita de qualquer ideal que possa dar um sentido à figura humana, fazendo uso das artes de vanguarda do início do século XX, como os quadros de Dalí e Picasso.

No segundo capítulo, há no seu início a retomada de alguns anos que antecederam a escrita dos volumes de La somme atéologique: trata-se da segunda metade da década de 1930, período da revista Acéphale, na qual Bataille escreve muitos textos, de demasiada inspiração nietzschiana, sobre a liberação de uma vida exuberante, tendo como imagem o deus acéfalo (ou Dioniso), desenhado por André Masson nos periódicos lançados. Esse deus acéfalo, ou AntiDeus, como prefere Fernando Scheibe (1973), faz referência ao Dioniso dos livros de

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Nietzsche. Acéphale foi ocasião, sobretudo, da reparação da obra de Nietzsche sob a apropriação fascista. Nos periódicos de Acéphale há muitos textos, não só de Bataille, que argumentam contra a relação convergente entre o nazismo e Nietzsche. É na esteira desse contexto de reparação a Nietzsche e da afirmação da vida exuberante, como uma dança que obriga a dançar de modo fanático, que adentramos no tratamento da questão da experiência.

A maior parte do segundo capítulo desta tese se propõe a expor e problematizar as principais noções da experiência que Bataille intitulou de “experiência interior”, trazendo à tona de que modo a experiência interior, como experiência de extrema contestação das autoridades alheias, afirma o sujeito numa contestação de si mesmo, pois a autoridade da experiência é ela mesma – mas tal autoridade, como afirma Bataille, se expia. O sujeito aí é um sujeito intranquilo numa experiência que não concebe repouso, pois é extrema contestação de si mesma e de tudo o que lhe é externo.

A experiência interior se configura, assim, como experiência de angústia, mas a angústia de que fala Bataille não é a mesma de que fala Heidegger, pois, para aquele, o sujeito na experiência vai ao limite da angústia, lançando-se no êxtase. Da experiência interior resulta o não-saber, nela o sujeito desconhece qualquer sentido e, nesse não-saber, comunica o êxtase. O sujeito do ultrapassamento da angústia, na realidade, é aquele da perda de si mesmo. Mas a angústia ultrapassada ainda é angústia, “alegria angustiante”, o que denota o caráter não resolvido do sujeito da experiência, pois ele é mobilidade constante, extrema contestação, ausência mesma de repouso, que é o que há de forte no tratamento da experiência por Bataille: a imagem de uma subjetividade cindida, fragmentada, insuficiente, que desconhece um sentido dado a ela mesma e está aberta para os possíveis da existência. A experiência interior se coloca em oposição ao mundo do trabalho, da utilidade, do primado do futuro. Nesse capítulo ainda abordamos a noção de trabalho para Bataille, recuperando os fundamentos filosóficos nos quais o autor desenvolve sua crítica. Tais fundamentos filosóficos são aqueles presentes na abordagem da conquista da independência e da certeza de si mesma por parte da consciência na filosofia de Hegel, da qual Kojève, em Paris, durante a década de 1930, fez explanação em forma de seminários. Bataille esteve presente nesses seminários de Kojève e deles tirou a concepção de que o trabalho e o medo da morte são as formas a partir das quais a humanidade, no mais alto grau, se realizará como humanidade. Bataille instaura em sua obra, via Kojève, um debate crítico concernente a Hegel, num confronto entre as noções de experiência interior e trabalho, do qual o discurso é a sua linguagem articulada.

No terceiro capítulo, tratamos do problema da escrita sobre a experiência. A experiência se coloca nas antípodas do encadeamento discursivo. Esse capítulo apresenta as

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problematizações sobre a relação entre experiência e discurso do ponto de vista da inscrição do sentido no não-sentido, segundo o ensaio de Derrida de 1967, “Da economia restrita à economia geral: um hegelianismo sem reserva”. A linguagem da experiência é, também, uma linguagem colocada em questão, refletindo o objeto a ser pensado por Bataille: a experiência de uma vida exuberante. O modo de falar dessa experiência só pode ser através de uma operação de alteração do discursivo, chamada pelo autor de “operação soberana”, alinhada à noção de experiência interior, aquela de colocação em questão do sujeito envolvido. A operação soberana no nível do discurso é a colocação em questão da linguagem submissa ao sentido, a do mundo do trabalho, a da humanidade enquanto projeto. Nesse terceiro capítulo, além de tratarmos da escrita da experiência como operação soberana, também nos propusemos mostrar como essa operação acontece na “espacialidade” do texto batailliano. Assim foram expostas as realizações de várias estratégias de Bataille de fazer transparecer no texto a colocação em questão da própria linguagem como fornecedora de sentidos, como o uso de figurações, sobretudo em Le coupable, segundo volume de La somme atéologique.

No quarto e último capítulo desta tese, abordamos a noção de erotismo em Bataille, no intuito de desenvolver uma problematização acerca do erotismo como manifestação da operação soberana, mas no nível do corpo, trazendo à tona a discussão de Foucault sobre a transgressão e o limite, feita em seu ensaio de 1963. No último capítulo muitas noções da obra de Bataille se cruzam e se alinham: a operação soberana com a transgressão e a experiência interior. Esse cruzamento nos faz perceber que, mesmo em tempos diferentes de escrita, com vocabulários diferentes, a “picareta” bate no mesmo lugar, na afirmação de uma experiência de mundo na qual o sujeito paga o preço do questionamento de si e de seus limites.

O sujeito da experiência é aquele alheio ao logocentrismo, aberto também para o que não é coerente e coeso. O movimento da subjetividade, segundo Bataille, é um movimento de negação, mas não de uma negação determinada, operadora, como a negação de cunho hegeliano. Trata-se, em Bataille, de uma negação des-obrada, que não constrói nada, que não faz o sujeito durar em sua história, mas, ao contrário, coloca o sujeito numa existência de intensificação que põe a si mesmo em risco, em questão. Trata-se da abertura para a vida soberanamente sensível, para o “universo risível”, a realidade inapreensível, pois é a experiência que não se delimita à luz clara da consciência.

Portanto, é na perspectiva de abordar a noção de experiência interior e do estatuto do sujeito lacerado na obra de Bataille que esta tese foi escrita, levando em consideração o “cenário” dos primeiros insights do autor sobre a noção de experiência, passando pelo seu tratamento filosófico, problematizando o desafio, por parte do autor, de falar da experiência

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interior que implica o questionamento daquele que a enuncia, e, por último, propondo ler a atividade sexual erótica como lugar de realização da experiência de ultrapassamento de si.

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CAPÍTULO 1 – O PRIMEIRO CENÁRIO: DESPROPORÇÃO E AUSÊNCIA DA FORMA IDEAL EM DOCUMENTS

Agente de experiências que o levaram ao limite e ao esgotamento, Bataille tentou representa-las no texto, pôr no papel, significando um esforço tremendo. Essas experiências estão refletidas em sua obra, como vemos nos volumes que compõem La somme atéologique, nos quais a escrita está impregnada de relatos pessoais de um sujeito abalado e com o espírito mutilado pela Segunda Grande Guerra, sempre à mercê do acontecimento da chance da experiência (BATAILLE, 1973).

A negação de uma forma acabada do homem já é colocada como propósito em seus primeiros textos, escritos nos anos de 1929 e 1930, para a revista Documents. Nessa época Bataille investe numa crítica ao idealismo das formas, tanto em relação ao mundo humano quanto ao universo. Afirmando a relação dos homens entre si como não assegurada por nada, por nenhuma essencialidade, Bataille pertence ao que Eliane Moraes chama de “crise humanista ocidental europeia” (MORAES, 2010, p. 56). Segundo Mcfarlane, essa crise humanista europeia diz respeito à afirmação clássica dos primeiros anos do modernismo, no final do século XIX, a qual remete a figura humana à sua natureza “[...] esquiva, indeterminada, múltipla, muitas vezes implausível, infinitamente variada e essencialmente irredutível” (MCFARLANE, 1999, p. 63).

O contexto que alimentou a crise cultural humanista foi a transformação das formas tradicionais de vida anteriores ao final do século XIX. Podemos afirmar, conforme Allan Bulock, que alguns dos acontecimentos urbanos que proporcionaram o questionamento das formas de vida tradicionais, foram:

- o motor de combustão interna, o motor a diesel e a turbina a vapor;

- a eletricidade, o óleo e o petróleo como novas fontes de energia; - o automóvel, o ônibus motorizado – os primeiros ônibus a motor de Londres surgiram em 1905 –, o tratos e o aeroplano;

- o telefone, a máquina de escrever e o gravador, a organização do sistema moderno de escritórios (BULLOCK, 1999, p. 45).

Junto com o desenvolvimento urbano dos grandes polos econômicos da Europa, como Londres e Paris, a tecnologia avançava rapidamente e trazia produtos novos para a vida das pessoas. Além disso, acontecimentos intelectuais na passagem para o século XX, como a

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psicanálise, colocavam em questão o sujeito inabalável conhecedor de si, trazendo outra “verdade” sobre o ser humano. Com acontecimentos sociais catastróficos, como a Primeira Guerra Mundial, o sentimento de desintegração da inabalável imagem do ser humano foi levado a escalas maiores. Como afirma Moraes:

Entre a década de 1870 e o início da Segunda Grande Guerra Mundial, a Europa assistiu a uma crise profunda no humanismo ocidental, com radical impacto sobre a política, a moral e a estética. Os homens da época vivenciaram uma complexa transformação da mentalidade europeia, marcada sobretudo por um sentimento de instabilidade (MORAES, 2010, p. 56).

O humano não é mais parâmetro nem para si mesmo. A realidade cotidiana estava passando por diversas transformações. Assim como a literatura do final do século XIX, as artes modernas europeias da primeira metade do século XX refletem essa crise humanista. Trata-se do “espírito moderno”, o espírito da fragmentação da forma nas artes: “Fragmentar, decompor, dispersar: essas palavras se encontram na base de qualquer definição do ‘espírito moderno’” (MORAES, 2010, p. 56).

Trazer uma nova concepção do homem na história, diferente daquela dos séculos anteriores, foi o propósito das vanguardas artísticas europeias. Mirian Tavares afirma que “[o] que as vanguardas pretendiam era fazer explodir as formas de expressão até então conhecidas e expressar a angústia de um tempo que se iniciava sob os escombros de uma Guerra Mundial [a primeira]” (TAVARES, 2016, p. 16). Nessa perspectiva, a sensibilidade artística girava em torno do instantâneo e do efêmero, deixando para trás as ambições das “obras duradouras”. A arte moderna, especialmente na França, situava-se em um momento de transição, saindo dos antigos modelos para uma representação do que é descontínuo e decomposto, expressando formas fraturadas, ambiguidades, justaposições inesperadas (MORAES, 2010, p. 56). Artistas como Picasso e sua Femme en chemise assise dans un fauteuil (1913) expressam esse espírito, do qual Bataille estava plenamente ciente ao estar inserido no meio artístico de Paris da década de 19207.

7 O livro O corpo impossível, de Eliane Robert Moraes, trata de revisitar esse imaginário da

decomposição das formas e da figura na França da primeira metade do século XX, inserindo Bataille como pertencente e continuador desse imaginário guiado pelo espírito moderno. Como diz a autora: “Para grande parte dos artistas e dos intelectuais do período a sensibilidade era, por excelência, de transição. Mas não se chegava a lugar nenhum: o espírito moderno concentrava-se nos pontos de passagem e, paradoxalmente, fixava-se num estado de permanente suspensão” (MORAES, 2010, p. 56).

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Nesse quadro do final da fase cubista de Picasso vemos, sentado numa poltrona de tonalidade rosada, um corpo feminino completamente desfigurado. As formas onduladas e coloridas caídas na vertical, à esquerda, nos remetem ao que seria um cabelo, mas uma reprodução dessas ondas também se encontra na horizontal, à direita. As partes corporais estão transformadas em formas geométricas, mas ao mesmo tempo algumas indicam sua pertinência humana, como no caso dos seios-ponta-de-lápis e do umbigo-botão no centro do quadro. Mesmo que o nome do quadro nos remeta a uma mulher vestindo uma camisa, o que vemos são formas de tecidos amarrotadas no “colo” da figura feminina, que parece não estar vestindo nenhuma camisa, pois seus “seios” estão à mostra. O pano cai como um amontoado de tecido de cortina, escondendo o sexo da mulher. A tonalidade da cor da pele dessa figura desvestida contrasta explicitamente com a cor da poltrona, cujo encosto confunde-se com o fundo espectral: o que está sentado ali é um corpo cujas formas estão completamente embaralhadas, alegoricamente referidas a uma humanização quase impossível. É um quadro cujas formas humanas estão decompostas.

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Figura 1 – Femme en chemise assise dans un fauteuil (1913)

Fonte: Coleção do website art-picasso.com8.

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Bataille se deixou influenciar pelo “espírito moderno”, pela desfiguração das formas humanas previsíveis, mas foi extremamente crítico a ele, pois via que tal espírito moderno não levava o jogo das transposições simbólicas o mais longe possível, fazendo apenas um uso retórico nas práticas da literatura e da pintura, com demasiado pudor ao que é abjeto e vil (BATAILLE, 1930c). Isso está no contexto dos anos de 1929 e 1930, época em que encabeçava a elaboração da revista Documents, que analisava obras artísticas, documentos etnográficos, numismáticos, entre outros, a partir do que é inconveniente e inquietante9. Michel Leiris, que também participou da revista, dá a Documents o estatuto de “impossível”, na medida em que nela se abordava um material nunca visto em outra “revista de arte” – La Gazette des Beaux-Arts, por exemplo. O corpo de colaboradores também era extremamente diverso, composto por Bataille (bibliotecário), Carl Einstein (poeta e estudioso da estética alemã), Georges-Henri Rivière (subdiretor do Museu de Etnologia do Trocadero) e etc.

Documents tornou-se, assim, um espaço para as mais diversas confrontações do saber: na capa, logo abaixo do título da revista, se encontravam as palavras “arqueologia”, “belas artes”, “etnografia” e “variedades”. Mesmo com o distinto “avizinhamento” que tais saberes operavam, a revista cumpria, sob a forma do desvio, seu papel de revista sobre arte, se colocando como um cavalo de batalha contra La révolution surréaliste, revista dirigida por André Breton. Vários integrantes de Documents eram dissidentes do movimento surrealista, inclusive o próprio Bataille. Em dezembro de 1929, no Second manifeste du surréalisme, após oito meses da publicação do primeiro número de Documents, “M. Bataille” é referido por Breton como alguém que “[...] faz profissão de só querer considerar no mundo o que há de mais vil, de mais desencorajador e de mais corrompido” (BRETON, 1972b, p. 144). Breton qualifica esse “deleite” de Monsieur Bataille como “sujo”, “senil”, “rançoso”, “atrevido” e “caquético”. Esta posição de Breton se refere especificamente a Bataille, por encabeçar Documents e ser uma espécie de “alma” do interesse comum dos dissidentes surrealistas de colocar o surrealismo como alvo das críticas mais severas.

1.1 O círculo de Breton

O asco de Breton ao que há de mais sujo e odioso vem de tempos mais antigos, desde meados de 1925, e nos remete à tensão entre os grupos surrealistas que se encontravam nas

9 Como afirma Bataille: “As obras de arte as mais irritantes, ainda não classificadas, e certas

produções heteróclitas, negligenciadas até aqui, serão o objeto de estudos tão rigorosos e tão científicos quanto aqueles da arqueologia” (BATAILLE apud LEIRIS, 1963, p. 689).

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ruas Fontaine e du Château com os membros das reuniões no ateliê de André Masson, na rua Blomet. Naquelas se reuniam os surrealistas que reprovavam as atitudes morais mais baixas, sendo Breton o mais expressivo, e na rua Blomet se reuniam aqueles que pertenciam à boemia parisiense: homossexuais, adeptos da libertinagem e usuários de drogas (ópio):

A rua Fontaine e a rua du Château (diferentemente da rua Blomet) tinham em comum o ódio à boemia e aos seus extravasamentos (a droga, a homossexualidade), a denúncia da libertinagem, tinham em comum fazer uma regra do amor único, ter concedido geralmente à moral uma determinação de todos os instantes (SURYA, 2012, p. 99).

Muitos dos frequentadores do ateliê de André Masson estavam ligados discretamente ao surrealismo, assim como discordavam de certas ideias de Breton, tal como era o caso de Bataille, que nesse grupo gozava de certa influência (VERGARA, 2013, p. 41). Ao contrário, nas ruas Fontaine e du Château as regras morais eram fortemente ditadas por Breton e rigorosamente obedecidas. Como disse Thirion, membro do surrealismo na época:

A rua do Château e a rua Fontaine sentiam um horror pelos excessos da boemia artística que as rodeava. O uso da droga e a homossexualidade eram objetos de reprovação [...] A libertinagem era mal vista [...] A regra de ouro era o amor-paixão, com preferência fatal, entre dois indivíduos do sexo oposto. [...] O rigor moral da rua Fontaine, que ia endurecendo-se, visava preservar a disponibilidade de cada um a pureza do conjunto (THIRION apud VERGARA, 2013, p. 40).

Breton, com sua personalidade de mestre controlador do movimento surrealista – no qual Masson via uma espécie de organização religiosa, cujo papa era Breton (SURYA, 2012) – impunha sua vontade de pureza aos objetivos do movimento. Tratava-se de uma vontade de transformação do homem sob a forma da crítica e da revolução a fim de resgatar a pureza humana, na esperança de se atingir o “maravilhoso”. A esperança numa imaginação que encontre uma segura “liberdade espiritual”10 traduz o encontro com o maravilhoso e,

10 André Breton afirma: “A única palavra de liberdade é toda aquela que ainda me exalta. Acredito que

é próprio dela conservar, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Ela responde sem dúvida à minha única aspiração legítima. Entre tantas desgraças que herdamos, certamente é preciso reconhecer que a maior liberdade de espírito nos foi deixada. [...] Reduzir a imaginação à escravidão, mesmo quando haveria aquilo que chamamos grosseiramente de felicidade, é se subtrair a tudo aquilo que se acha, no fundo de si, de justiça suprema. Somente a imaginação me faz perceber aquilo que pode ser, muito mais para suspender um pouco o terrível interdito; muito também para que eu me abandone a ela sem angústia de me enganar (como se pudéssemos nos enganar mais). Onde ela começa a se torna má e onde termina a segurança do espírito? Para o espírito, a possibilidade de errar não é antes a contingência do bem?” (BRETON, 1972a, p. 12-13, grifo do autor).

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“precisemos: o maravilhoso é sempre belo, não importa o que, o maravilhoso é belo, distinto do maravilhoso não há nada que seja belo” (BRETON, 1972a, p. 24, trad. nossa).

O maravilhoso transforma o espírito humano. Ao se debruçar nessa busca do maravilhoso, Breton critica e nega os “equívocos morais”, aqueles que caracterizam uma vida vil ou depravada. Como apontados acima, a libertinagem e a boemia são objetos de condenação, pois seriam obstáculos para o cumprimento dos objetivos do surrealismo. Sobre a purificação, Breton afirma, em Second manifeste du surréalisme:

[...] se ele [o surrealismo] declara poder, por seus métodos próprios, arrancar o pensamento de uma servidão sempre mais dura, remetendo-o sobre a via da compreensão total, volta-o à sua pureza original. É demasiado justificado julgar o surrealismo pelo que ele tem feito e pelo que lhe resta fazer para ter sua promessa (BRETON, 1972b, p. 77).

É válido ressaltar que entre o primeiro e o segundo manifesto os objetivos do surrealismo foram ficando cada vez mais distantes de seu cumprimento. Os interesses internos entraram em conflito fazendo Breton acreditar na impossibilidade da promessa do surrealismo antes do segundo manifesto. “A espera do maravilhoso é uma coisa horrível, impossível”, dizia Breton, desiludido, em 192611. A decisão de revigorar os objetivos do surrealismo o levou a ser repressivo em relação a alguns membros, de modo a realizar expulsões do movimento, como no caso de Robert Desnos, custando-lhe a perda da admiração e da amizade.

Em Second manifeste du surréalisme, a promessa do movimento é reforçada: a transformação do homem em direção à sua pureza deveria estar ancorada nos valores das “virtudes morais”: “Antes de proceder, todavia, à verificação desses assuntos, importa saber a qual tipo de virtudes morais o surrealismo faz exatamente apelo [...]” (BRETON, ibid., p. 78). Em 1929, esse tipo de horizonte moral “superior”, das virtudes, respondia à preocupação surrealista da situação humana em meio à crise ocidental, oriunda da Primeira Guerra, e que se tornaria mais presente ainda no surgimento dos movimentos fascistas que culminaram na Segunda Grande Guerra.

O surrealismo, em 1929, devia se inscrever no seu próprio tempo, abandonando o apelo atemporal da experiência onírica como fundamento da arte, presente no primeiro Manifeste du surréalisme (1924), e ir em direção a uma espécie de “retorno ao concreto”

11 Como afirma Michel Surya (2012, p. 151), essa declaração foi dada a Marko Ristic, surrealista

iugoslavo, que acrescenta: “Breton havia perdido muitas de suas ilusões, e uma parte de sua fé no que poderia esperar do surrealismo” (RISTIC apud SURYA, 2012, p. 151).

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(MORAES, 2010). Com isso, Breton visava a reconciliação dialética numa unidade da percepção que abarcasse o interior e o exterior, o subjetivo e o objetivo, como assinalado no Segundo Manifesto: “Tudo leva a crer que existe em certo ponto do espírito em que a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro etc..., deixam de ser percebidos contraditoriamente” (BRETON, 1972b, p. 72-73, trad. nossa).

A afirmação dessa reconciliação obedece à definição bretoniana do surrealismo no Primeiro Manifesto:

Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de toda outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética moral (BRETON, 1972a, p. 37, trad. nossa).

Esse automatismo é o do pensamento inserido em seu próprio movimento, concebendo formas sem hierarquização, notadamente aberto à espontaneidade dos conteúdos do inconsciente. É interessante notar que a reconciliação do real com o imaginário leva o sujeito a conceber os objetos sem sua presença previsível, sem a objetificação já esperada. Retorno ao concreto é trazer para a imaginação o sem sentido dos objetos. Nessa perspectiva, Eliane Moraes (2010) fala de um objeto ausente, pois a esse objeto o homem se colocaria como criador, mesmo que a presença material e pressuposta do objeto estivesse ausente12.

A unidade que reconcilia o real e o imaginário tinha como via de realização a subversão do sentido da presença material dos objetos, que o quadro surrealista Portrait d’une danseuse (Danseuse espagnole) de 1928, criado por Joan Miró, nos faz vislumbrar. Numa tela virgem, sem nenhuma gota de tinta, uma pluma é fixada por um alfinete. Onde está a dançarina espanhola? Perante o título esperaríamos ver as formas corporais já conhecidas, por exemplo, do bolero ou do flamenco. Mas se, perante o quadro-objeto de Miró, e ignorantes acerca de seu título, escutássemos que o autor lhe concedeu o subtítulo de “Dançarina espanhola”, prontamente nossa imaginação entraria em conflito, pois o que se vê inicialmente não é o esperado pelas palavras que nomeiam o quadro. Essa obra suprime toda uma linguagem pictural, questiona as formas das pontas ondulosas e esvoaçantes do vestido, da sensualidade das mãos femininas da dançarina. A dançarina espanhola é um objeto ausente e nessa ausência a imaginação vai fundo na materialidade presente no quadro, pluma e alfinete,

12 Eliane Robert Moraes afirma que o objeto ausente nos remete à própria profundidade do homem,

àquela que não é consciente. “O objeto ausente responderia, assim, aos desejos mais inconscientes do homem, atingindo suas nostalgias mais profundas” (MORAES, 2010, p. 65).

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para aí ver, na supressão da hierarquia dos objetos, a presença da dançarina. Como diz Eliane Moraes (2010, p. 65), “a mulher não precisava mais ser descrita para aparecer, suntuosa e radiante, no centro daquele mundo transparente que a projetava como objeto do desejo”. Em Miró, o imaginário está relacionado ao desejo de, na busca pelo objeto, realizá-lo. É nesse sentido que Eliane Moraes (2010, p. 66) ainda afirma: “Ausente, o objeto se revelava na condição de fantasma, devolvendo o desejo a sua origem para realçar sua potência imaginária”.

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Figura 2 – Portrait d’une danseuse (Danseuse espagnole) (1928)

Fonte: Coleção de Joan Miró no acervo digital do Centre Pompidou13.

Apesar da mudança de tom entre o primeiro e o segundo manifesto, tornando-se este mais violento, e mesmo passando a ter uma orientação política declarada, que gerou uma tensão interna com artistas como Marx Ernst e Miró, pode-se perceber que os objetivos do surrealismo permaneceram os mesmos em seu fundamento. Como diz Vergara esses objetivos eram “[...] provocar uma crise de consciência, liberar o pensamento de sua servidão ao

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racional” (2013, p. 29). No entanto, alguns integrantes do movimento não se subordinaram às suas ordens políticas, principalmente em relação às artes. Em 1926, no sétimo número de La Révolution Surréaliste, Breton e Aragon denunciaram Miró e Ernst por “dar armas aos piores partidários do equívoco moral” (BRETON; ARAGON apud VERGARA, 2013, p. 29), referindo-se à participação dos pintores na decoração de Romeu e Julieta dos Balés Russos, em Paris. Os surrealistas já sabiam da posição crítica de Breton em relação às atividades artísticas e ao pensamento indexado ao dinheiro. Mas é preciso trazer à tona que, um ano antes, Breton e Aragon publicaram uma carta intitulada “Hommage a Picasso”, defendendo o pintor das possíveis críticas dos surrealistas por sua participação no ballet Mercure. Tendo isso em vista, uma aura de suspeita se instaura em relação a Breton como moralista. Desnos, um dos integrantes do movimento, um daqueles que o tinha como “profissão de fé”, talvez não tenha se equivocado ao afirmar que “[é] curioso constatar que os únicos pintores dos quais [Breton] fala bem sem restrições são aqueles com os quais foi possível realizar seus negócios” (DESNOS apud VERGARA, 2013, p. 30).

1.2 Documents e o embate entre Bataille e Breton: as sementes de um pensamento aberto à experiência

Por mais que o surrealismo tivesse como objetivo desenlaçar o pensamento do logocentrismo, que era visto como sinônimo de pobreza espiritual, e de subverter a utilidade dos objetos, Bataille concordava com essas finalidades apenas em parte. Eis um dos pontos fulcrais do embate entre Bataille e Breton: a relação do surrealismo com a moral. Não se tratava de uma adesão surrealista à moral em voga. Pelo contrário, o surrealismo é uma denúncia da moral presente, mas em prol de valores morais superiores. Isso concerne, em especial, à própria noção de erotismo, pois o que está em voga, para Breton, como um dos valores morais superiores, é o amor redentor, conciliador, notadamente aquele entre homem e mulher14. Como diz Moraes: “Com seu voto de fé no elevado ideal do amor único entre homem e mulher, o surrealismo circunscreve de forma clara os limites de sua abordagem: ‘o amor recíproco é o único de que nos ocupamos’, confirmam os criadores do movimento” (MORAES, 2010, p. 51).

14 Sobre a diferença entre a concepção de erotismo de Breton e a de Bataille, Moraes salienta: “Não é

difícil perceber que a erótica dos surrealistas guarda visível distância da concepção de Bataille: os primeiros concebem a fusão dos amantes como ponto de partida da criação, ao passo que o segundo enfatiza seu caráter destrutivo” (MORAES, 2010, p. 51). No último capítulo desta tese trataremos da noção de erotismo em Bataille.

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Para Breton, a figura da mulher torna-se o ideal de redenção para o sem sentido da existência, para a consciência da morte como iminente à vida, sobretudo ao ser marcado pela Segunda Guerra Mundial, quando lança Arcane 17, em 1944. Há uma espécie de linha, a qual não se cruza sob o risco cair no abismo, que faz os pés pararem antes da queda: a redenção pelo amor recíproco da figura feminina. Para Breton, foi o encontro com Elisa.

Uma mão de mulher, sua mão em sua palidez de estrela, somente para te ajudar a descer, refrata seu raio na minha. Ao menor contato se faz árvore em mim e vai explicar em um instante, essas cúpulas aos nossos pés, o céu invertido mescla suas folhas azuis. Ao que posso consagrar, de minha parte, essa remissão de uma dor que tantos outros sofrem sem se sentir mais culpados do que eu me sinto agora? Antes de conhecer-te, havia reencontrado a dor, o desespero. Antes de conhecer-te, sejamos sinceros, estas palavras não tinham sentido. Tu bem sabes que, ao te ver pela primeira vez, te reconheci sem dúvida alguma. E que quais confins, os mais terrivelmente guardados, tu vinhas; aquela iniciação na qual ninguém ou quase ninguém é aceito, havia consagrado ao que tu és (BRETON, 2001, p. 31-32, trad. nossa).

Trazer à luz esse embate entre Bataille e Breton circunscreve o espaço ocupado por Documents e pelas críticas bataillianas operadas nos anos de 1929 e 1930. Interessante também é lembrar que Bataille, mesmo tendo pertencido discretamente ao surrealismo, concordava em parte com a proposta de ir aos limites, notadamente ditados por uma racionalidade hegemônica: “não há dúvida sobre sua concordância com o furacão revolucionário da atividade surreal, com sua habilidade de ‘ultrapassar os limites’ e, em particular, os limites impostos pela razão” (MORAES, 2010, p. 157). No entanto, a ida aos limites foi operada mais intensamente por Bataille, que considerava Breton uma espécie de “leão castrado”, idealista, um pretenso revolucionário com atitudes de polícia e cuja empreitada revolucionária era falida; representava uma tentativa de libertação, mas controlada.

Bataille empreende, em Documents, uma luta contra todo idealismo15, seguindo uma guinada etnográfica de nada excluir, como já dizia Rivet16. Os objetos ou assuntos a serem tratados em Documents não são amenizados por nenhuma restrição de fala, que evoque alguma moral ou mecanismos de assujeitamento, ditando até onde se pode ou não falar algo. Aí vemos no pensamento de Bataille uma preocupação de falar do mundo e do ser humano

15 Michel Surya (2012) ressalta esse caráter da empreitada de Bataille, realizada em Documents. 16 “É capital que o etnógrafo, como o arqueólogo, como especialista na pré-história, estude tudo o que

constitui uma civilização, que ele não negligencie nenhum elemento, por mais insignificante que seja” (RIVET, 1929, p.133).

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em todos os seus aspectos de maneira irrestrita, salientando uma noção de abertura da experiência de mundo que permanece escancarada para o que o homem é, assim como tudo o que lhe rodeia. Nos escritos dessa revista percebemos uma operação de opor o real ao ideal e isso necessariamente implica a oposição entre a aceitação ao que é, aceitação que é uma de espécie de Sim incondicional, e a resignação frente ao mundo em nome de um dever ser.

Com Bataille, não sendo fundada para ser mais uma Gazette des beaux-arts17, Documents abre licença para chocar, para nada esconder. Os conteúdos presentes na revista, suas “variedades” – documentos, fotografias, quadros, verbetes de um “dicionário crítico” etc. – compunham um amálgama heteróclito, um conjunto de heterogeneidades a ser analisado e discutido ao longo dos seus números. Esse espírito que animava a Documents refletia e, podemos dizer, era liderado pelo espírito de Bataille, na época secretário geral da revista18. Era um espírito decidido a explorar e deter-se sobre o que é vil, escandaloso, sujo e excêntrico. Os objetivos da revista, portanto, obedeciam a uma vontade de “deslocar, perturbar e despojar de toda pretensão de autenticidade as categorias comuns do entendimento humano” (VERGARA, 2013, p. 78).

1.2.1 Sordidez e linguagem das flores

A postura de ataque ao surrealismo, portanto, expressa a condenação de todo e qualquer ideal. O surrealismo era o inimigo a ser combatido por Bataille e disso ele fez a empreitada de Documents, unindo-se a vários dissidentes do movimento liderado por Breton. Se este afirmava que o maravilhoso é o belo e que não pode ser nada diferente do belo, Bataille vê nessa afirmação uma espécie de exclusão da outra faceta do que existe, aquilo que não é belo.

Bataille expressa uma desconfiança em relação à proposta que se quer negação do princípio de identidade, de insistência na experiência de um eu errante, como vemos em Nadja, que não se coloca no limite, no extremo19. Ora, a postura reivindicada pelos surrealistas, não passando de um idealismo para Bataille, cerceava o que se colocava como

17 Na realidade, a proposta da revista pensada por d’Espezel e Wildenstein era, desde o início, fazê-la

aos moldes da Gazette des beaux arts, cujo propósito foi executado quando Documents voltou a ser publicada sem a colaboração de Bataille, nos anos de 1933 e 1934 (VERGARA, 2013, p. 77).

18 d’Espezel estranhou bastante os primeiros números da revista, sendo, em carta, o primeiro a se

referir a Bataille como alguém com problemas mentais: “ele [d’Espezel] que inaugura a lista de ilustre analistas que gratuitamente ofereceram [a Bataille] seu diagnóstico” (VERGARA, 2013, p. 76).

19 O maravilhoso tem que ser belo, o que implica uma hierarquização de formas puras a serem

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possibilidade outra da existência, cerrava os olhos para os diversos modos em que a experiência pode se desencadear. Visando o “possível da imaginação”, hierarquiza-se como alto e ideal o maravilhoso, o belo, a poesia, o amor. Contrapondo a isso, o “impossível do real” não esconde o baixo, o vil, o sujo, o ignóbil.

Em “Le langage des fleurs”, publicado em 1929, no número 3 de Documents, Bataille nos remente à linguagem das flores, o que elas “falam”, às atribuições simbólicas provenientes do espírito humano. As aproximações do dente-de-leão à noção de expansão, do narciso ao egoísmo, do absinto à amargura, ou da aquiléa à tristeza, revelam muito mais aproximações feitas à vontade pelas pessoas do que uma revelação do secreto sentido das flores (BATAILLE, 1929a, p. 160).

Algumas dessas aproximações são bastante “duráveis” em meio à vida social – por exemplo, a de que uma bela mulher nos remeter a uma rosa vermelha. O que faz uma rosa vermelha nos remeter à beleza feminina? Para Bataille, remeter uma flor à beleza feminina é uma disposição guiada pelo ideal de beleza. Se as flores são belas, “[...] é porque elas parecem conformes ao que deve ser, isto é, elas representam, pelo que elas são, o ideal humano” (BATAILLE, 1929a, p. 162, grifo do autor). É nesse sentido que a beleza da flor obedece a um ideal de belo, limitado à existência humana. Se abstrairmos o ser humano dessas designações sobre a beleza, não sobra nada dela.

Essas designações das flores se referem sempre às corolas, jamais as suas raízes. O espírito é afetado pela disposição das pétalas, assim o restante da flor é esquecido pelo enfeitiçamento oriundo da corola. Muitas flores, como diz Bataille (1929a, p. 162), têm aspectos desagradáveis, têm o desenvolvimento “medíocre”; outras, normalmente as mais bonitas, “[...] são afeadas no centro por uma mancha peluda dos órgãos sexuais”. Arrancadas as pétalas, por trás de suas frágeis camadas que provocam as mais arbitrárias aproximações, vemos nas flores “um tufo de aspecto sórdido”.

É interessante notar que, em “Le langage des fleurs”, o texto está circundado pelas fotografias de Blossfeldt, imagens ampliadas de flores com pétalas arrancadas, como o caso da Campânula dos Açores, ressaltando seu aspecto cadavérico, e até mesmo de brotos de samambaia murchos e contorcidos.

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Figura 3 – Campanuele des Açores (Camapnula vidalii)

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Figura 4 – Crosse de Fougère (Blechnum spicante)

Fonte: BATAILLE, 1929a.

Há uma configuração estética da revista que emparelha imagem e texto de uma forma dilacerante. Pelas imagens em questão somos conduzidos a uma relação visual desconcertante, laceração iconográfica que por vezes joga com o irrepresentável (DIDI-HUBERMAN, 2015). Nessa perspectiva, o que deve ser ressaltado, além do caráter de projeção humana acerca das flores, é o aspecto ignóbil que as flores e outras plantas têm, sobretudo suas raízes, como as mandrágoras. O que é responsável pela absorção dos nutrientes é uma parte voltada para a podridão dos estercos. Os órgãos sexuais das flores têm aspectos perturbadores, de modo que algumas orquídeas carnosas, tão bonitas, possuem um aspecto esquisito, “[...] plantas tão suspeitas que ficamos tentados a atribuir a elas as

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