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CAPÍTULO 2 EXPERIÊNCIA: ÚNICA AUTORIDADE, ÚNICO VALOR

2.2 A experiência interior

2.2.3 O trabalho e a libido

Quando a existência é ditada por algo externo, por uma autoridade alheia à própria existência, o modo de vivê-la é a realização consciente do sentido postulado: se faz da existência um projeto de vivê-la conforme um sentido dado de antemão. O que é trazido à baila na noção de projeto, segundo Bataille, é um modo de relação com a vida que a coloca numa progressão temporal na qual viver está subordinado ao objetivo que a progressão se destina. Bataille afirma: “[...] o progresso nega o êxtase, o pecado, confunde a vida e o projeto, santifica o projeto (o trabalho): no mundo do progresso, a vida é somente uma infantilidade lícita, uma vez o projeto reconhecido como a seriedade da existência” (1973a, p. 61). Vivências que se desajustam à realização do objetivo colocado exteriormente como autoridade da experiência não são contabilizadas no progresso apontado.

Para realizar os objetivos do projeto, qualquer que seja – a salvação, a supressão da dor etc. – é preciso agir em prol dele. Entra aqui uma lógica da eficácia, própria da ação que se coloca inteiramente à mercê do projeto, como afirma Bataille: “A ‘ação’ está, inteiramente, na dependência do projeto” (1973a, p. 59). Uma vontade de ordenação temporal comanda o espírito, de tal modo que não se quer abrir, no projeto, a possibilidade de desencadeamento de atividades que não possam ser aproveitadas segundo o que se projeta como finalidade do tempo vivido, de onde o mandamento “tempo é dinheiro”, por exemplo, tira sua razão de ser. Para Philippe Joron,

[a] acepção reconhecida dessa noção de projeto evoca, necessariamente, um pseudocontrole do tempo, uma gestão escrupulosa do capital tempo. Ela deixa de solidarizar, assim, a existência útil com o instante prometido a todas as fugas. Projetar algo volta de alguma forma a limitar o propagamento da existência não previsional, daquela que as expressões seguintes exprimem em parte: “gastar o seu tempo sem contar”, “perder seu tempo não fazendo nada”. O projeto faz assim penetrar a eflorescência do tempo, esforçando-se a contê-lo, no eflúvio capitalista da intelecção progressista (JORON, 2013, p. 86-87).

Da concepção de projeto aqui ressaltada, nota-se que uma normatividade se faz ver: normatividade do aproveitamento do tempo. Esse tema é central no pensamento de Bataille, ele ocorre ao longo de suas obras na medida em que é no projeto onde os sujeitos da experiência (L’expérience intérieure), do erotismo/transgressão (L’érotisme), da literatura (La littérature et le Mal), do dispêndio (La part maudite) etc., estão localizados. O que Bataille preconiza, podemos afirmar, é a abertura da normatividade arraigada na vida social, vazão nas fissuras do projeto, onde ele vê aí a afirmação da vida no instante. A ação, que está nos percalços do projeto, é o meio pelo qual a vida é colocada a longo prazo, retardando o máximo possível os instantes de fruição. Dessa forma, “[o] projeto não é somente o modo da existência implicado pela ação, necessário à ação, é uma maneira paradoxal de ser no tempo: é a reposição da existência para mais tarde” (BATAILLE, 1973a, p. 59). Adiamento da existência muitas vezes em nome da conservação da própria vida, por isso é uma maneira paradoxal da existência temporal. Nega-se a vida em eflorescência para salvá-la.

Nessa perspectiva, para Bataille, o prolongamento da vida humana através do trabalho só é possível na medida em que é refreada a violência dos desejos que muitas vezes não correspondem às exigências da realidade do trabalho. Ele afirma: “O trabalho exige uma conduta onde o cálculo do esforço, ligado à eficácia produtiva é constante. Ele exige uma conduta razoável, onde os movimentos tumultuosos que se liberam na festa e, geralmente, no jogo não são admitidos” (1987a, p. 44). Há uma racionalidade calculadora que organiza o tempo e os meios materiais para dar seguimento à obra do labor humano, exigindo um comportamento que não contrarie a realidade do trabalho.

O trabalho é considerado por Bataille o fundador a humanidade (1987a, p. 44), uma vez que projeta a vida humana nas balizas de conservar a si mesma em detrimento da recusa da violência permanente da natureza e dos desejos humanos: o trabalho é, objetivamente, o que permite o ser humano se resguardar dos perigos externos e de si mesmo. O propósito é se abster de sofrer, tendo em vista que o sofrimento nos ameaça por todos os lados e, frente a isso, tentarmos operar a supressão da dor. Objetivamente, o ser humano é pressionado o tempo todo pelas possibilidades do sofrimento. Segundo Freud,

[o] sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humano (FREUD, 2010, p. 31).

Nota-se que nas considerações sobre a iminência do sofrimento, somos colocados como sujeitos do sofrimento e, ao mesmo tempo, como agentes. Somos sujeitos do sofrimento porque só existe sofrimento para alguém que o sente (FREUD, 2010, p. 31), podendo ser a fonte do sofrimento externa (natureza e outros sujeitos) ou interna (“impulsos instintuais”). O que Freud coloca em questão é a economia libidinal à qual o sujeito se presta na medida em que se relaciona com o mundo externo e com outros sujeitos e, exatamente aí, surge uma problematização que está presente em Bataille. Com um vocabulário um pouco diferente do freudiano, Bataille relaciona os instintos selvagens, ainda não domesticados pelo deslocamento da libido através do princípio de realidade, à violência dos desejos. No corpo social, a violência dos desejos é cerceada na atividade laboral, mas o que fica como um ponto de confronto – que será, no fundo, uma injunção – entre Freud e Bataille é que, para aquele, a restrição da satisfação dos instintos selvagens, na economia libidinal, visa redirecionar, deslocar, as “metas dos instintos” ao trabalho. De acordo com Freud:

Nenhuma outra técnica para a condução da vida prende a pessoa tão firmemente à realidade como a ênfase no trabalho, que no mínimo a insere de modo seguro numa porção da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que oferece de deslocar para o trabalho e os relacionamentos humanos a ele ligados uma forte medida de componentes libidinais — narcísicos, agressivos e mesmo eróticos — empresta-lhe um valor que não fica atrás de seu caráter imprescindível para a afirmação e justificação da existência na sociedade. A atividade profissional traz particular satisfação quando é escolhida livremente, isto é, quando permite tornar úteis, através da sublimação, pendores existentes, impulsos instintuais subsistentes ou constitucionalmente reforçados. E, no entanto, o trabalho não é muito apreciado como via para a felicidade. As pessoas não se lançam a ele como a outras possibilidades de gratificação. A imensa maioria dos homens trabalha apenas forçada pela necessidade, e graves problemas sociais derivam dessa natural aversão humana ao trabalho (2010, p. 36).

A aparente confrontação problemática entre Freud e Bataille sobre esse ponto se dá na medida em que, para Bataille, a relação entre o trabalho e os momentos de violência do desejo se expressa da seguinte maneira: “Se não pudéssemos refrear esses movimentos, não poderíamos trabalhar, mas o trabalho introduz a razão de os refrear” (BATAILLE, 1987a, p. 44). O trabalho, portanto, na perspectiva batailliana, visa refrear os desejos, anulá-los, não considerando uma espécie de aproveitamento dessa violência para outras atividades a partir do deslocamento próprio da economia libidinal. Ora, esses tipos de asserções se fundamentam na concepção de que a violência dos desejos é própria da intensificação da vida, ao passo que o regramento pertencente ao trabalho visa a duração da vida. Ambas propensões, violência

dos desejos e ação laboral, são incompatíveis; o pensador francês exprime esse problema a partir da incompatibilidade entre vida sem medida e ação sem medida. Mas Freud, ao falar sobre a dificuldade do homem se satisfazer no trabalho, agindo na maioria das vezes por necessidade e não por desejo, admite que não sabe até que ponto o trabalho de fato contribui para o sucesso do deslocamento da “meta dos instintos” na economia libidinal. Ele afirma: “Não é possível, nos limites de um panorama sucinto, examinar satisfatoriamente a importância do trabalho para a economia libidinal” (FREUD, 2010, p. 36).

Para Bataille, fica claro que a realidade do trabalho é incompatível com o aproveitamento da violência dos desejos na medida em que o excesso é o que anima a turbulência dos desejos no interior de cada pessoa – e é próprio do que excede não poder ser aproveitado (BATAILLE, 1976d). O excesso impele-nos à realização imediata dos desejos, constituindo uma espécie de efervescência interior, tumulto mesmo, que jamais se postergará em nome de um objetivo a ser alcançado no futuro. O tumulto só quer o instante, contrário a isso é esfriamento, ou, como prefere Bataille, “domesticação”:

Desde os tempos mais remotos, o trabalho introduziu uma trégua, através da qual o homem cessava de responder ao impulso imediato que comandava a violência do desejo. É arbitrário, sem dúvida, sempre opor o distanciamento, que está na base do trabalho, a movimentos tumultuosos cuja necessidade não é constante. O trabalho começado cria, nada menos, que uma impossibilidade de responder a essas solicitações imediatas, que podem nos tornar indiferentes aos resultados desejáveis, mas cujo interesse [do trabalho] só diz respeito ao tempo ulterior. A maior parte do tempo, o trabalho é a ocupação de uma coletividade, e a coletividade deve se opor, no tempo reservado ao trabalho, a esses movimentos contagiosos de excesso nos quais nada existe mais senão no abandono imediato ao excesso. Isto é, à violência (1987a, p. 44).

O trabalho é o meio pelo qual a vida humana se tornou possível e se mantém assim. A ação é a atividade própria ao mundo do trabalho que se dá enquanto negação da violência do excesso existente no sujeito. Segundo o pensamento de Bataille, o homem é sujeito cindido entre o excesso que anima a violência dos seus desejos e a necessidade de trabalhar para poder conservar-se vivo, trabalhar e agir para se manter no prolongamento temporal, recusando a violência que anima os homens. Mas será que o trabalho consegue refrear a efervescência do sujeito? Se o excesso não pode ser aproveitado, o trabalho não parece lograr sucesso na tentativa de refrear a violência dos desejos.

O excesso é constitutivo do ser e impossibilita qualquer limitação. Assim, a experiência interior se dá como experiência dos limites, pois nos abre para a ausência de

clausura, rompe com horizontes limitadores (autoridades externas) que a determinam. O pensamento do limite considera a vida em seu excesso, indo em direção à própria saturação, pois o excesso desconhece onde deve parar: a vida é sempre mais vida: “A vida é em sua essência um excesso, ela é a prodigalidade da vida” (BATAILLE, 1987a, p. 44). Ora, querer refrear a violência dos desejos, animada pelo excesso que leva o sujeito aos limites de si, parece refletir uma vontade de colocar-se contra a própria vida, uma vez que ela, em essência, é excesso. O trabalho que imprime na ação sua razão de ser, isto é, estar nas dependências do projeto, vai na contramão da vida, mesmo que seja para conservá-la.

Portanto, o pensamento de Bataille traz à tona esse aspecto da vida social, o da negação do próprio desencadeamento vital em meio à vida social que se faz como projeto, uma espécie de “estrangulamento cultural” próprio à vida em comum, como vemos nas letras de Philippe Joron: “[...] uma das principais originalidades desse pensamento reside no fato de procurar a origem asfixiada da humanidade por uma participação apoiada na obstinação de um estrangulamento cultural” (2013, p. 98). Mas, se o pensamento de Bataille tem esse apelo à origem da humanidade, buscando mostrar o que está implicado no fundamento do ser cultural, isto é, o estreitamento vital do ser isolado, é para lançar-se na liberação de uma experiência contrária à ação e ao projeto.