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CAPÍTULO 2 EXPERIÊNCIA: ÚNICA AUTORIDADE, ÚNICO VALOR

2.2 A experiência interior

2.2.1 Ir fundo na angústia

Bataille caracteriza como “isolado” o sujeito levado à contestação de si mesmo. É do isolamento de si que o sujeito parte na experiência do impossível, de modo que esse isolamento reflete sua relação com o mundo: regramento, “domesticação”, resistência à vida em seu desencadeamento sem sentido. O ser isolado é o sujeito permanente de sua particularidade, agarrado à sua estreita idiossincrasia que se dá nos limites de uma vida possível e menos conturbada. Bataille levará essa discussão do ser isolado, ou do sujeito apartado, a outras problematizações ao longo de sua obra. Por exemplo, em L’érotisme, retratando o ser isolado como o sujeito da civilização que recusa a violência, ou, em La part maudite, como o sujeito da “economia restrita”, aquele preocupado pela falta dos recursos materiais.

Segundo Bataille, em L’expérience intérieure, o ser isolado é o ser do apaziguamento e visa querer ser tudo, pois diante de sua vontade por autonomia em meio ao que é caótico e sem sentido, coloca-se como instituidor de significações para as coisas existentes, como se o universo fosse a extensão de si mesmo e de suas valorações. Bataille escreve: “Não importa quem, dissimuladamente, querendo evitar sofrer se confunde com o todo do universo, julga cada coisa como se ele fosse esse todo, do mesmo modo que imagina, no fundo, jamais morrer” (1973a, p. 10). Trata-se do sujeito dos subterfúgios existenciais (Deus, conhecimento

e supressão da dor), imerso na ilusão da convicção e segurança de si mesmo enquanto ser que se coloca como medida do mundo.

Querer ser tudo é também querer permanecer perene, salvaguardando sua singularidade perante as turbulências que o rodeiam. Segundo Bataille, “[essas] ilusões nebulosas, nós as recebemos com a vida como um narcótico necessário para a suportar” (1973a, p. 10). Petrificar-se num isolamento de si, ao mesmo tempo colocando como medida de tudo, isto é, como ipse querendo ser tudo, é totalmente o contrário de colocar-se em questão no movimento de contestação que caracteriza a experiência. Na medida em que o sujeito sai desse isolamento e não quer mais ser tudo, ou seja, na medida em que o sujeito deixa de ser isolado e ipse, o seu ser é questionado e coloca-se em vias de se perder. Conforme Bataille: “Não mais querer ser tudo é tudo pôr em causa” (1973a, p. 10). Esta frase carrega a noção de que colocar tudo em causa é sair da posição subjetiva de direcionar a existência a horizontes de sentido determinados. Bataille fala de algumas atitudes que expressam esse questionamento que põe em risco o ipse. Como afirma Silvio Mattoni:

Bataille enumera algumas dessas atitudes que são a moral da experiência interior: “A ausência de cuidados, a generosidade, a necessidade de desafiar a morte, o amor tumultuoso, a ingenuidade ameaçadora”. Em tais instâncias, se esquece o desejo de querer ser tudo, se eclipsa o centro do mundo que está limitado por minha linguagem, de modo que a experiência renuncia a onipotência do eu, do seu pensamento e do seu corpo: sou um ponto sem nome (MATTONI, 2011., p. 80).

Claramente, não querer ser tudo é negar qualquer autoridade em relação à experiência, é a derrocada dos subterfúgios para o sujeito levado ao cume da contestação numa experiência diferenciada, insuportável, pois encara o sofrimento. Nesse simulacro de imolação sacrifical a vítima é a rede de designações de sentido, na qual o sujeito antes estava mergulhado tranquilamente. Na destruição a tranquilidade se mostra como ilusão. Bataille afirma:

Não somos tudo, só temos duas certezas neste mundo, esta e a de morrer. Se temos consciência de não ser tudo como temos de ser mortais, isso não é nada. Mas se não temos narcóticos, se revela um vazio irrespirável. Gostaria de ser tudo: que desfalecendo nesta vida, mas tomando coragem, eu diga a mim: “Tive vergonha de ter querido ser tudo, pois, vejo agora, seria dormir”, desde então começa uma experiência singular. O espírito se coloca num mundo estranho onde a angústia e o êxtase se misturam (1973a, p.10).

A relação do sujeito com o mundo muda drasticamente na colocação em questão da experiência, que nada mais é que libertar-se da limitação que visava escapar do sofrimento. Parte-se, agora, como um desintoxicado, numa viagem ao desmascaramento do que existe em sua mais brutal aparência, numa experiência mais nua do mundo. Eis a vontade, postulada por Bataille, para a colocação em questão em Le coupable, segundo volume de La somme atéologique: “Com a paixão, a lucidez cruel da qual sou capaz, quis, em mim, que a vida se despisse” (1973b, p. 276). Vemos aí, como dito anteriormente, uma vontade de viver a existência sem subterfúgios. Essa via sem apaziguamento, como a noção já indica, leva o sujeito ao tormento. A pergunta que fica é: por que, então, querer a angústia? Sabemos do caráter obsedante da palavra angústia (angoisse) na obra de Bataille (DURANÇON, 1976). Ela aparece repetidas vezes em sua obra, principalmente em La somme atéologique. A angústia se afirma irredutivelmente, mesmo sendo referida a outras noções – como a de “suplício”, à qual o autor dedicará duas partes de L’expérience intérieure32.

Para além das diversas ocorrências da palavra “angústia” e de suas variações na obra batailliana, a angústia tem o caráter decisivo de proporcionar uma experiência diferenciada em relação à experiência da realidade prosaica, como afirma Jean Durançon: “Em torno dessa palavra, em torno dessa noção de angústia, parece, com efeito, se cristalizar uma experiência fundamental, decisiva quanto aos seus prolongamentos” (DURANÇON, 1976, p. 29). A angústia proporciona uma experiência diferenciada, fundamental para Bataille33, na medida

em que coloca o sujeito na ausência de apaziguamento existencial, nas estribeiras de seu ser. A vertigem sentida é oriunda da quebra do laço de “querer ser tudo”. Nessa experiência angustiante nos revelamos como somos a nós mesmos. Mas essa revelação não revela nada de positivo, senão o vazio no qual nada se apazigua. “O que caracteriza uma tal experiência, que não procede de uma revelação, onde nada mais se revela, senão o desconhecido, é que ela não traz nada de apaziguador” (BATAILLE, 1973a, p. 10).

A experiência desencadeada, interior, se dá na angústia, e traz consigo a própria revelação vazia que a angústia carrega. A experiência que nada revela, senão a si mesma

32 É interessante notar o peso que a presença da angústia tem na obra de Bataille, de modo que a

primeira frase de Histoire de l’œil – primeiro livro publicado, mesmo que sob o pseudônimo Lord Auch – é a seguinte: “Fui criado muito só e, até onde me lembro, era angustiado [angoissé] por tudo o que era sexual” (BATAILLE, 1970c, p. 13).

33 Para Jean Durançon, a obra de Bataille está fundamentada sobre a noção de angústia, ela é o seu

motor, sua mola mestra. Ele diz: “Sempre a angústia atravessa os textos, os esburaca, em toda ocisão que nele surge. Como se ela constituísse sua própria base, seu alicerce necessário. Seu alicerce: isto é, também aquilo que os faz nascer, aquilo que, num desequilíbrio primeiro, os emudece, os faz oscilar” (DURANÇON, 1976, p. 30).

como puro desencadeamento, na febre e na angústia, é aquela que contestou toda e qualquer autoridade externa, fazendo expiar ela mesma como única autoridade de si em seu “Simplesmente ser” (BATAILLE, 1973a, p. 24). Mais uma vez a questão de negar os subterfúgios está em voga. Tudo isso traduz uma obsessão da escrita de Bataille: a de nada mascarar sobre os possíveis do homem, indo até o impossível de seu ser, numa lucidez pronta a levar o sujeito aos limites.

Para Durançon (1976, p. 46), Bataille se negou aos intentos estéticos, religiosos e científicos que poderiam amenizar ou mesmo excluir radicalmente a angústia. Se a angústia se coloca como espaço de radicalização imanente da experiência, mesmo o sujeito aí pagando o preço da súplica, Bataille quer somente afirmar esse acontecimento. A angústia só pode ser vivida de “dentro” da experiência, dela não se faz escola, não é transmitida e absorvida como um conhecimento qualquer, uma vez que ela não revela nada. Bataille escreve:

A angústia, evidentemente, não se aprende. É possível provocá-la? É possível: não acredito muito nisso. Pode-se agitar sua borra... Se alguém admite sua angústia, é preciso mostrá-lo o nada de suas razões. Ele imagina a saída de seus tormentos: se trataria de mais dinheiro, uma mulher, uma outra vida... A estupidez da angústia é infinita. No lugar de ir à profundeza de sua angústia, o ansioso balbucia, se degrada e foge. No entanto, a angústia era a sua chance: ele foi escolhido na medida de seus pressentimentos. Mas que desperdício se ele elude: ele sofre do mesmo jeito e se humilha, torna-se besta, falso, superficial. A angustia eludida faz do homem um jesuíta agitado, mas no vazio (1973a, p. 47, grifo do autor).

Na revelação onde nada se revela, sem princípio e sem objetivo a ser alcançado, o sujeito imerge no tormento e, no momento da súplica, se ele não quer estar desintoxicado, perde a possibilidade de encarar a vida em sua nudez, que é o mesmo que senti-la em seu sem sentido. O ser que quer ser tudo vive na tranquilidade do ipse, alinhado, em acordo, segundo Bataille, com o mundo e consigo mesmo. Mas trata-se, na realidade, de um engano. É uma ilusão para afirmar-se um minuto na existência, pois o homem em estado de nudez é súplica, angústia. Na perspectiva batailliana, colocar-se contra a angústia (do simples fato de existir), no isolamento da calmaria de sua particularidade consciente, é viver uma vida estranha a tudo o que lhe rodeia.

Segundo Susana de Castro Vieira: “A consciência clara e a razão surgem quando o ser humano se distingue do mundo e passa a tratar os objetos e animais ao redor como o não eu” (2014, p. 6). Nessa determinação do eu em sua particularidade e autonomia em relação ao mundo, isto é, como “não eu”, o sujeito está como um estranho em relação ao todo, ao universo, como diz Bataille: “Cada homem é estranho ao universo, pertence aos objetos, às

refeições, aos jornais – que o enclausuram em sua particularidade –, o deixam na ignorância de todo o resto” (1973b, p. 283). O ser isolado está, nessa perspectiva, isolado de todo o resto enquanto ser que está certo de si mesmo e diferenciado do todo existente.