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CAPÍTULO 4 – DO EROTISMO COMO MANIFESTAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

4.2 A experiência interior nas perturbações da carne

O esbanjamento próprio da experiência interior no erotismo diz respeito ao movimento de violência impresso no suporte do sujeito, o seu corpo. Ora, como já mencionado neste capítulo, o elemento que confere a saída de si dos sujeitos envolvidos no erotismo advém da própria animalidade, a passagem da descontinuidade para a continuidade na fusão como momento da reprodução sexuada. No entanto, segundo Bataille, o erotismo é a atividade sexual perversa, isto é, desprovida da finalidade de reprodução. Isso parece revelar um contrassenso. Faz-se necessário, acerca desse ponto, esclarecer algo: a atividade erótica é indiferente à finalidade reprodutiva, mesmo que a fecundação possa eventualmente acontecer. Atentar para essa indiferença nos permite ver a transgressão se realizar de muitas formas no erotismo, começando pela sua relação com a animalidade.

O erotismo é o distanciamento em relação à simples atividade sexual reprodutiva animal. O erotismo lhe é indiferente. No entanto, ele também é “infração à regra dos interditos” (BATAILLE, 1987a, p. 95), o que não quer dizer que ele seja um volta à natureza, pois ainda dá as costas à finalidade reprodutiva da prática sexual animal. Os interditos, por sua vez, se opõem às ações ou atividades alinhadas à animalidade, uma vez que expressam um “Não” dado à natureza, maneira de fazer a humanidade se proteger na recusa à violência do mundo natural. “Mas ainda que ele [o erotismo] comece onde acaba o animal, a animalidade nem por isso deixa de ser seu fundamento” (1987a, p. 95). Essa característica do erotismo é sua afirmação como transgressividade, pois aí a animalidade não foi excluída, apenas suspensa, dando nome ao erotismo. Bataille afirma: “A animalidade é mesmo tão bem mantida no erotismo, que o termo animalidade, ou bestialidade, não cessa de lhe estar ligado” (1987a, p. 95).

Se a experiência interior é uma ida aos extremos por parte de um ser isolado, é esse isolamento que é estremecido. No erotismo, trata-se do corpo e dos elementos da sexualidade física. A questão é que o suporte físico é o fundamento objetivo do erotismo81, de modo que

81 É essa perspectiva que Bataille afirma: “Sempre associada ao erotismo, a sexualidade física é para o

erotismo o que o cérebro é para o pensamento: do mesmo modo, a fisiologia permanece o fundamento objetivo do pensamento” (1987a, p. 95).

Bataille se utiliza das considerações biológicas para a abordagem da experiência interior na relação erótica. L’érotisme persegue a mesma preocupação científica também encontrada em La part maudite: neste livro, trata-se do diálogo com o físico Georges Ambrosino acerca da pressão no globo terrestre que leva ao gasto das formas de vida, naquele outro, trata-se de compreender o momento de “morte” como esbanjamento físico referente à atividade reprodutiva e aos órgãos sexuais.

Inicialmente, em L’érotisme, Bataille parte da análise da cissiparidade, reprodução assexuada de organismos unicelulares82. Se nesses tipos de organismos a cissiparidade se dá por meio da mitose, multiplicação das células a partir da divisão de seu núcleo em dois, há, portanto, um crescimento impessoal, isto é, se um organismo a se multiplica em a’ e a’’, o resultado dessa duplicação (a’ e a’’) está totalmente para além de a. Sobre o momento de cissiparidade, Bataille afirma que o ser da mitose morre, não se estende nos seres reproduzidos:

Com efeito, é errado afirmar que a imortalidade se estende às células que se dividem. A célula a não sobrevive nem em a’ nem em a’’, a’ é outro que a, outro que a’’; positivamente, na divisão, a deixa de ser, a desaparece, a morre. Ela não deixa vestígio, cadáver, mas morre (1987a, p. 95, p. 98).

É nítido que Bataille usa a biologia como suporte do seu desenvolvimento filosófico sobre a passagem da descontinuidade para a continuidade. O momento de “morte” da célula está no nível de considerar, filosoficamente, o outro como não sendo o mesmo, isto é, considerar as células divididas como o outro da célula que se dividiu: a que não existe em a’ e nem em a’’. Bataille sabe que o núcleo celular é o mesmo nas células divididas e mesmo sendo organismos de uma única célula, são seres diferentes entre si, descontínuos. Estamos na perspectiva acerca da cissiparidade que implica um crescimento impessoal dos seres. Bataille compreende a multiplicação como “pletora” do ser, sua divisão se dá por meio de seu crescimento. Isso é uma “amostra” de que no nível mais elementar da criação da vida há uma passagem da descontinuidade para a continuidade, a cissiparidade resulta seres descontínuos (a’ e a’’) a partir de um ser descontínuo (a), mas na multiplicação de um ser em dois há um

82 Talvez o desenvolvimento filosófico que Bataille faz a partir das considerações da cissiparidade

também sirva para os outros tipos de reprodução assexuada, uma vez que da cissiparidade o autor afirma um crescimento (multiplicação) para além do organismo que sofreu a mitose. De qualquer forma, seria preciso uma pesquisa mais aprofundada sobre o tema, coisa que não realizaremos nesta tese.

momento de passagem no qual a descontinuidade é suspensa e esse momento se dá inicialmente na pletora. Conforme Bataille:

É a pletora que começa um deslizamento onde o ser se divide, mas ele se divide no momento mesmo, no momento do deslizamento, no momento crítico onde tais seres, que toda hora se opõem um ao outro, não se opõe ainda. A crise separadora nasce da pletora: isso ainda não é separação, é a ambiguidade. Na pletora, o ser passa da calma do repouso ao estado de agitação violenta: esta turbulência e esta agitação atingem o ser por inteiro, atingem-no em sua continuidade. Mas a violência da agitação, que inicialmente tem lugar no seio da continuidade, evoca a violência da separação, de onde a descontinuidade procede. A calma, enfim, reaparece na separação acabada, onde se encontram dois seres distintos (1987a, p. 98).

Essa morte no momento da continuidade é menos clara no que diz aos seres sexuados (1987a, p. 101), uma vez que não há divisão de tais seres no momento de reprodução, pelo menos não há divisão perceptível, pois a procriação se dá a partir de dois seres e não a partir de um ser que se divide. Mas a passagem da descontinuidade para a continuidade na reprodução de seres sexuados está garantida no momento de fusão do espermatozoide com o óvulo. Tanto em seres assexuados como em sexuados, a reprodução implica na morte dos seres genitores na medida em que, a partir deles, seres novos, seres outros, passam a existir. Com isso Bataille afirma a economia geral, a do dispêndio, tanto no nível elementar quanto no nível de maior complexidade da criação da vida, pois o crescimento dos organismos, multiplicação e pletora, vão em direção a um desaparecimento dos seres geradores de vida. Organismos que se dividem a partir de si mesmos (reprodução assexuada) e organismos que reproduzem outros seres através da junção com outro organismo (reprodução sexuada) levam a formação de novos seres para além de si mesmos: a’ é outro que a, os filhos são outros que não os pais. Nessa medida o crescimento que teria, aparentemente, um sentido pessoal, de ganho de si – “estou imortalizado na perpetuação da espécie através de meus filhos” – passa a ter, na perspectiva da economia geral, o sentido da perda. Na realidade, para Bataille, um organismo que se divide para gerar outros seres, no fundo, se doa – da mesma maneira são os genitores machos e fêmeas que dão algo de si (espermatozoide e óvulo) para gerar algo completamente outro. Sobre esse ponto, Bataille afirma:

Se o crescimento tem lugar no aproveitamento de um ser ou de um conjunto que nos ultrapassa, isso não mais um crescimento, mas um dom. Para aquele que o faz, o dom é a perda daquilo que se tem. Aquele que dá se reencontra nisso que é dado, mas, antes de tudo, ele deve dar: de início, quase completamente, lhe foi preciso renunciar ao que, para o conjunto que o adquire, tem o sentido do crescimento (1987a, p. 97).

Nessa perspectiva, as considerações sobre a morte como fim do isolamento do ser (descontinuidade) afirmam a perda desse ser no momento do crescimento do conjunto da vida. Assim, a morte, compreendida no sentido da perda, está na base da vida, a fecundação (fusão) não seria possível caso uma descontinuidade perene e indestrutível não fosse senão um engano (BATAILLE, 1987a, p. 99). “Jamais devemos esquecer que a multiplicação dos seres é solidária da morte” (1987a, p. 101). É nesse sentido que a animalidade é o fundamento do erotismo, pois a multiplicação da vida passa pelo momento de passagem da morte, da continuidade, na reprodução sexual dos seres. A questão é que, na indiferença do erotismo em relação à reprodução, está o momento de crise do isolamento do ser, própria da atividade sexual (1987a, p. 101), através da pletora da carne, também presente na atividade reprodutiva. A pletora da carne é a superabundância dos órgãos no momento de excitação sexual na reprodução: o aumento de energia, o maior fluxo de sangue, o crescimento do órgão masculino, a lubrificação do órgão feminino. A morte evidencia-se, por outro lado, em seu próprio simulacro no desfalecimento passageiro dos amantes após o orgasmo, a falta de forças às vezes até para falar. A significação da morte, mesmo sem ser direta na atividade sexual é, de modo geral, pungente: “Para nossa imaginação, [a significação da morte é] tão dilacerante que o abatimento consecutivo ao paroxismo final é tido como uma ‘pequena morte’ [petit mort]” (BATAILLE, 1987a, p. 101). Mas Bataille insiste na consideração da morte na reprodução (e, consequentemente, no erotismo) para além da analogia do abatimento das forças, a morte é como “[...] o símbolo do recuo das águas que se segue à violência da agitação” (1987a, p. 101). Todo empenho de engendrar vida, todo o aproveitamento das forças para a criação e manutenção da vida desaguará na morte. As novas formas de vida geradas seguem no tempo à desaparição dos genitores. A própria vida, gerada pela superabundância dos seres, sua pletora etc., leva necessariamente à morte em longo prazo. É a realização inútil do universo que está em jogo, como um uso do aumento de forças e das formas vivas para uma finalidade dispendiosa, sem contrapartida. Em L’érotisme, Bataille resume essas considerações ateias numa longa passagem, passando pelos níveis da sexualidade e dos interesses do mundo do trabalho para manutenção da vida:

A superabundância tem por consequência inevitável a morte, só a estagnação assegura a manutenção da descontinuidade dos seres (de seu isolamento). Esta descontinuidade é um desafio ao movimento que fatalmente derrubará essas barreiras que separam os indivíduos distintos uns dos outros. A vida – o movimento da via – exige talvez um instante essas barreiras sem as quais nenhuma organização complexa seria possível, nenhuma organização eficaz.

Mas a vida é movimento, e nada está ao abrigo do movimento. Os seres assexuados morrem de seu próprio desenvolvimento, de seu próprio movimento. Os seres sexuados só opõem ao seu próprio de superabundância – como à agitação geral – uma resistência provisória. É verdade que eles sucumbem às vezes ao abatimento de suas próprias forças, à ruína de sua organização. Mas disso não podemos nos enganar. Só a morte inumerável tira do impasse esses seres que se multiplicam. O pensamento de um mundo onde a organização artificial asseguraria o prolongamento da vida humana evoca a possibilidade de um pesadelo, sem deixar entrever nada além de um ligeiro retardo. No final a morte estará lá, que a multiplicação apela, que a superabundância da vida apela (1987a, p. 102).

A partir dessas considerações o erotismo adquire um aspecto singular, ele responde a essa realização inútil geral. Nada pode escapar da morte, a reprodução cria seres que desembocarão numa dissolução total. Mas o erotismo não passa pela preocupação do crescimento, ele implica o movimento da superabundância do sujeito que não visa o proveito de engendrar seres para além de si, ou seja, é superabundância que tem em vista o esbanjamento como fim em si mesmo. O erotismo é manifestação do dispêndio na medida em que é “[...] a atividade sexual perversa (isto é, desviada da finalidade genital)” (BATAILLE, 1970d, p. 305). Nessa perspectiva, poderíamos pensar que, pelo menos fisicamente, o erotismo tem as mesmas característica que uma atividade animal simples, reprodutiva, mas isso não nos levaria tão longe nas problematizações de Bataille. Fato é que o erotismo tem um sentido mais profundo que a pura atividade sexual animal sem os fins reprodutivos. O erotismo se dá nas limitações da cultura, no seu espaço, e isso é o que a faz ser especificamente humana. Não só desviada da finalidade reprodutiva, mas também perpassada e assentada no domínio dos interditos.

A proibição é a forma maior na qual a sexualidade humana está fundada. Não que o sexo proibido seja o erotismo, como propõe Antonio Campillo (2001, p. 32), pois até mesmo o sexo com fins de reprodução também passa pela proibição; por exemplo, um casal que quer ter filhos tem de realizar suas tentativas em locais específicos. Propomos, nessa perspectiva, que o erotismo é especificamente humano, mas nem toda atividade sexual humana é erótica, apesar de, mesmo não sendo erótica, passe pelas interdições. Também é preciso salientar que a atividade sexual reprodutiva tem a consciência da reprodução, consciência de querer a reprodução. É o que se conclui, por via inversa, das asserções bataillianas: que os amantes, no momento da turbulência, erótica não têm a preocupação dos cuidados com os filhos (BATAILLE, 1987a). Todavia, além disso, da atividade sexual erótica pode resultar a reprodução sem a consciência de querê-la. O que fundamenta essa posição é a experiência

interior (colocação em questão dos indivíduos) presente no erotismo, que exige a sua consideração dentro dos limites dos interditos.

Para Bataille, os seres sexuados além dos humanos têm um tipo de experiência interior relacionada à reprodução, mas o autor apenas afirma isso, parecendo não ter outro nome melhor para a significação do sentimento de si, de dentro, dos animais (1987a, p. 100). A grande diferença entre uma “meia” experiência interior dos animais83 e aquela do erotismo

está no fato de que após a perturbação da pletora dos órgãos sexuais, os animais têm sua descontinuidade intacta, ao passo que após a perturbação da pletora dos órgãos sexuais nos seres humanos a descontinuidade não é a mesma.

A única modificação da descontinuidade individual a que o animal é suscetível é a morte. O animal morre, se não, a desordem encerrada, a descontinuidade permanece intacta. Na vida humana, ao contrário, a violência sexual abre uma ferida. Raramente a ferida se fecha por si só: é necessário fechá-la. Mesmo sem uma constante atenção, que a angústia funda, ela não pode permanecer fechada (1987a, p. 105).

O sujeito na perturbação que altera o estado de descontinuidade, após as turbulências eróticas, é aquele trespassado pelo mundo dos interditos que definem sua maneira de ser isolado. O que é perturbado é a inteira construção subjetiva que diz respeito a um modo de viver entre os outros, nas preocupações com a morte, nos diferentes tipos de relação exigidos com as diferentes pessoas que lhe rodeiam, nas mais constrangedoras pressões de um mundo da produtividade. No fundo, o sujeito perturbado é o que se constitui como produto dos interditos, de desejos reprimidos, refreados em vista da operatividade, que o nome da lei incide pesadamente sobre sua forma de existir. Esse sujeito do desejo reprimido não é senão o sujeito da racionalidade que proporcionou, ao longo da história, os meios mais diversos para possibilitar a manutenção da vida humana, no bojo cultural cujos limites lhe colocavam na contramão da dor e da morte, sempre mantendo-o, assegurando-o. Mas, como diz Bataille, exatamente aí onde se realizam todas obras para afastar o desaparecimento dos indivíduos separados entre si, “[...] a angústia da morte e da dor deram ao muro dessa separação a solidez, a tristeza e a hostilidade de um muro de prisão” (1987a, p. 99). Desse sujeito encerrado em si na experiência da crise do isolamento, Campillo afirma:

83 Bataille assume que da experiência interior alheia, a do animal – que ele não pode de nenhuma

forma representar a si, mas desconfiando que ela exista –, “[...] jamais os termos que a designam são verdadeiramente satisfatórios” (BATAILLE, 1987a, p. 100).

O sujeito racional é o que aprendeu a reprimir o desejo imediato, a manter com suas semelhantes relações funcionais, baseadas na desconfiança mútua e no cálculo de interesses a longo prazo. É um sujeito acossado, fechado em si, cuja integridade é tutelada pela lei (CAMPILLO, 2001, p. 75).

É nesse sentido que o erotismo tem a sua experiência interior no espaço do confronto na consciência do sujeito, pois a experiência interior é a “crise do ser”, quando “[...] o ser tem a experiência interior do ser na crise que o põe à prova. Eis a colocação em jogo do ser” (BATAILLE, 1987a, p. 102). No momento de perturbação da carne as vicissitudes se afirmam e a tranquilidade do sujeito constituído sobre o plano das mais diversas recusas se esvai. No erotismo acontece a comunicação, sagrada pela passagem do descontínuo ao contínuo. Uma vez dada a perda das idiossincrasias do sujeito, como ressalta Campillo: “Abrir-se à comunicação sagrada (seja erótica, festiva ou artística) exige romper essa couraça, infringir essa lei, deixar ao descoberto a própria nudez, convulsionada e vulnerável” (2001, p. 75). No erotismo, é o encontro com o outro, em sua abertura, em sua nudez que convulsiona a carne, que os amantes sentem essa laceração do espírito, uma perturbação característica do furor sexual. Esse furor, intenso esbanjamento, marca a saída de si numa continuidade oferecida para ambos os convulsionados. “Os outros, na sexualidade, não cessam de oferecer uma possibilidade de continuidade, os outros não cessam de ameaçar, de oferecer um rasgão ao robe sem costura da descontinuidade individual” (BATAILLE, 1987a, p. 103, grifo do autor).

O encontro com o outro não é uma união onde as partes encontram um no outro aquilo que lhes faltava. Como se trata do momento de continuidade, da perda de si, não há encontro nenhum nessa perda, mas uma partilha de sujeitos que se oferecem à perda de si mesmos, um no outro. “A violência de um se oferece à violência do outro: se trata, em cada lado, de um movimento interno que obriga a estar fora de si (fora da descontinuidade individual” (BATAILLE, 1987a, p. 103). Nesse sentido, Campillo afirma que “[o] erotismo [...] comporta uma violência que alcança o ser no mais íntimo” (CAMPILLO, 2001, p. 75). Mas tudo isso é movimento de transgressão, a partilha da crise é a crise do isolamento, do interdito, e acontece no sujeito posto em questão.

A angústia presente nesse tipo de experiência é a da derrisão do mundo dos interditos e do ser isolado, o que, para o autor, é a procura pela angústia da continuidade que implica a dissolução dos sujeitos. Mas a angústia aí não é senão a passagem para a sua própria superação, implicada no retorno à descontinuidade, afinal, trata-se de um confronto na consciência e consciência é descontinuidade. A abertura na continuidade não “subsiste nas consciências vagas”. Esse mesmo movimento é aquele dos primitivos que fizeram ritos das

práticas de morte, os sacrifícios, os quais se justificam pela procura da morte neles revelada (BATAILLE, 1987a; 1976b). Mas no sacrifício o confronto com a morte tem limites, e “[...] atingidos esses limites, um recuo é inevitável” (1987a, p. 89). Nesse sentido, o erotismo assume a forma da transgressão na medida em que há a suspensão do interdito (ou limite), e não a sua destruição. “É a crise ao mesmo tempo a mais intensa e a mais insignificante” (1987a, p. 104).

Por mais que o desenvolvimento de Bataille sobre a questão do erotismo seja um desenvolvimento que fala dos caminhos da angústia e do sofrimento, não é na angústia que ele quer chegar. A angústia pela angústia, como a angústia que gera a náusea no sujeito que se depara com a morte, naturalmente geraria uma vontade de acabar com esse sofrimento. Nesse panorama se originou o interdito geral contra a violência, segundo Bataille, como tratamos anteriormente neste capítulo. Ou seja, se a angústia for o único lugar a que se chega na experiência de mundo em sua abertura, não há possibilidade do gozo. A angústia precisa ser superada e nessa superação há a eminência do prazer. “Mas o ultrapassamento da angústia é possível sob uma condição: que a angústia esteja à altura da sensibilidade que a ela faz apelo” (BATAILLE, 1987a, p. 89). Isso quer dizer que a angústia só é superada pela sensibilidade que consegue suportar a angústia, se a sensibilidade não suporta a angústia, ela se abriga na morada dos interditos.

Na conferência que teve como base o texto da introdução em L’érotisme, Bataille responde a uma crítica feita pelo crítico e escritor de cinema Ado Kyrou, que consistia na ausência do elemento da alegria na fala de Bataille sobre o erotismo, e que para ele, Ado Kyrou, era a alegria a essência do erotismo. Bataille então esclarece, em sua resposta, que seu tratamento sobre o erotismo visa a alegria, ao mesmo tempo demarcando o limite da presença de Sade em suas considerações sobre o erotismo, de modo que afirma:

Ado Kyru disse que, para ele, o erotismo era essencialmente uma alegria. Me sinto de certa forma culpado, no sentido que dele falei muito longamente como de um sofrimento. Mas acredito jamais ter cessado de representar este sofrimento como a aspiração a uma alegria que é o fundo do sofrimento no erotismo, e se creio que o erotismo está ligado à morte, é porque se dá a dominação da morte no erotismo que o nega [o sofrimento] profundamente. Haveria talvez considerações a introduzir. Por exemplo, o erotismo, em Sade, introduz a morte de um modo muito diferente daquela que tenho