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CAPÍTULO 3 – EXPERIÊNCIA E ESCRITA: O PROBLEMA DO DISCURSO

3.2 Da escritura dispendiosa

3.2.1 Figuração e desaparecimento de si na escrita

Cinco anos após Le coupable, Bataille afirma, em La part maudite, que a destinação do movimento dispendioso “daquilo que é”, isto é, do universo, não vai dar em nenhum aproveitamento. É como deságua “um rio no mar”, é um jogo maior onde, de uma forma ou de outra, a ação, o pensamento e a linguagem vão dar. “Além de nossos fins imediatos, sua obra [da humanidade], com efeito, persegue a realização inútil e infinita do universo” (BATAILLE,1976d, p. 29). No espaço do dispêndio da realização inútil se dá o jogo maior do não-sentido, no qual, como salienta Derrida (2011), a operação soberana inscreve o discurso.

Gargalhadas e beijos são meios trôpegos para o alcance do conhecimento, mas que dão a “conhecer” – eis o deslizamento da palavra – na crise do logos. Com a palavra em crise, com o fundamento rompido, o universo só pode ser risível e tudo se dá, como disse Bataille, no nível da aparência. Nessa concepção do universo risível, a inteligência é colocada em questão pelo riso. Nesse ponto, as implicações são existenciais, pois a inteligibilidade proporciona o ordenamento da vida, se estrutura discursivamente, traduzindo-se no projeto, na fuga do questionamento que é a experiência soberana. A inscrição do sentido no não-sentido é a falência tanto do sentido quanto da própria inscrição. Como realizar a tarefa de falar da experiência de ser inteiro se, de antemão, ao submeter a experiência aos ajustes do pensamento, estamos na égide do fracasso do discurso (e de qualquer linguagem) que venha comportar a soberania? Essa é uma das grandes questões para Bataille, mas, mesmo assim, ele continua falando.

A operação própria a esse impasse é usar a linguagem de modo retorcido a tal ponto que se abram nela fissuras através das quais o pensamento se embaralha. Há uma passagem em Le coupable em que Bataille narra uma história que expõe o embaraço da inteligência quando algum elemento risível rasga o plano de significação do encadeamento discursivo e mostra uma realidade inapreensível, ou como ele mesmo diz, “o universo risível”:

Introduzo agora uma história (a última que me contaram): um homem em cima de um banco pinta uma lâmpada de azul, o pincel alcança dificilmente a lâmpada; um outro chega e se aproximando lhe diz com muita seriedade: “Agarre-se no pincel, eu tiro o banco”. Poderia não ter introduzido nenhuma história, mas, nesse caso particular, “a mudança se produz sobre o plano da aparência”. O espírito considerava um conjunto coerente, - ao qual pertencia a lâmpada, o pincel, o pintor: um tal conjunto só tem realidade no espírito, de modo que movimento do espírito são suficientes para colocá-lo em questão. Mas o que aparece não é o vazio. A cortina rasgada das aparências, um instante, através do rasgão, o espírito percebe o “universo visível”. A “mudança sobre o plano da aparência” foi necessária para o retorno à “realidade móvel, fragmentada, inapreensível” (1973b, p. 268).

Essa piada anedótica, “agarre-se no pincel, eu tiro o banco”, expõe um deslizamento através de um deslocamento discursivo no plano da significação. A torsão gerada no âmbito das aparências coerentes força o espírito a entrar numa zona de desconforto intelectual, numa realidade inapreensível e cambiante que de certa forma não permite a segurança de um sentido articulado. No nível do discurso, operar esse tratamento linguístico é uma tarefa contraditória, pois é difícil – quiçá impossível? – sair do domínio das palavras: trata-se de, falando, escapar das palavras. “[...] as palavras, que só servem para fugir [da experiência], quando cessei de fugir me levam à fuga” (BATAILLE, 1973a, p. 25). É nessa medida que Bataille recorre aos usos heterogêneos da escrita intelectual, quase no limite da literatura, buscando definições conceituais que por vezes caem em descrições de experiências íntimas65, fazendo uso de expressões contraditórias66, numa exigência de falar enquanto lhe falta a

linguagem, enquanto tenta dizer o impossível, de falar calando67. Numa passagem de

L’expérience intérieure, Bataille trata do problema de falar da experiência que excede o discurso e do modo como, mesmo parecendo sem sentido, ele não pode ficar calado, mesmo dizendo uma linguagem que coloca a própria linguagem em questão. Para Bataille, é necessário falar essa linguagem fracassada:

65

Esse tipo de estratégia na escrita de Bataille é bastante recorrente (BATAILLE, 1973a, p. 130-131).

66 “A sede sem sede quer o excesso de bebida, as lágrimas querem o excesso de alegria” (id., 1973b, p.

270).

67 “De fato, a linguagem vem a faltar menos em Bataille não durante as etapas, mas por princípio: pela

sua própria exigência em tentar mais uma vez dizer o impossível. A inevitável impotência que resulta desse impossível coincide com o ser colocado numa estrada (sobre um método) já perdida na partida, e desejado de qualquer forma como tal no procurado e inexausto tormento da sua insensatez. A exigência de encontrar-se ao mesmo tempo dentro e fora da totalidade do possível que constitui o universo – e um universo já dito (por Hegel, acrescentaria Kojève) –, ou seja, a exigência de falar e calar ao mesmo tempo, de falar calando, evolve-o realmente numa série infinita de oximoros, de ‘conceitos impensáveis’ e de impossíveis” (MATI, 2010, p. 81).

Mas a dificuldade é que se calar não é conquistado facilmente, e nunca o conseguiremos por completo, que é preciso lutar contra si mesmo com uma paciência de mãe: nós procuramos apreender em nós aquilo que subsiste ao abrigo das servilidades verbais, e o que encontramos somos nós mesmos divagando, empilhando frases, talvez em nome de nosso esforço (em seguida, de seu fracasso), mas frases e na impotência de encontrar outra coisa. É preciso nos obstinar, nos fazer familiares, cruelmente, à uma impotente tolice normalmente ultrapassada, mas caindo sob a plena luz: muito rápido aumenta a intensidade dos estados e, desde então, eles absorvem e mesmo arrebatam (1973a, p. 27).

A característica da obra batailliana de expor um discurso que coloca em questão o próprio discurso é para levar o leitor ao encontro da derrisão da linguagem e de seus enunciados coerentes e, consequentemente, ao encontro da derrisão das “operações inteligentes” do pensamento. O que emerge disso é a incitação de uma experiência da sensibilidade, como um apelo afetivo ao leitor que, no predomínio do pensamento, encontra- se neutralizado. Vale salientar que não se trata de aniquilar a razão, mas abrir a passagem para outro modo de subjetividade, a do sujeito sensível, ao qual a experiência de que fala Bataille pode ser vislumbrada, o que não acontece para um sujeito predominantemente cognoscente (MARTINS, 1990).

O terreno da consciência é árido para a totalidade de frutos da experiência. Bataille pesadamente afirma: “Lamento que a inteligência não tenha a sensibilidade dolorosa dos dentes... um cérebro debilitado é minha partilha” (1973b, p. 307). A esfera de excitação leva à desorientação do sujeito, no extremo o espírito é “posto a nu” por qualquer cessação íntima de “toda operação intelectual” (1973a, p. 25). Do contrário, “o discurso o mantém em seu pequeno aperto” (1973a, p. 25). O discurso é tomado como o abrigo em que o sujeito se espreme, mas ele não se espreme para sempre, ele também se transborda e o abrigo que o encerra desconhece as excitações ardentes que, para Bataille, é a magnificência da vida, pela qual o sujeito é levado por uma correnteza, não compreendendo e por vezes deixando-se ir, como K. para os braços de Frieda. “Não sei mais o que quero; excitações importunando como moscas, todas tão incertas, mas queimando interiormente” (BATAILLE, 1973b, p. 270). O desencadeamento é contraditório e assume lugar na desorientação das excitações, a “sede sem sede” e as lágrimas que vertem de um bebê que não sabe o que quer e por que chora (BATAILLE, 1973b, p. 270).

Esse panorama do absurdo (não-sentido) para o pensamento remete ao interior do sujeito, daquilo que não tem sentido nenhum, pois o sujeito, no pensamento de Bataille, está emparelhado com a realização inútil do universo, como afirma Jean Piel: “[...] o destino do universo é uma ‘realização inútil e infinita’, aquele do homem é perseguir essa realização”

(1963, 730). Enquanto realizações inúteis as excitações que queimam têm razão de ser em si mesmas e nisso a linguagem perde sua seriedade e torna-se um momento de tolice (sottise) (BATAILLE, 1973c, p. 210). O papel da significação cai por terra e as palavras perdem todo e qualquer sentido68. Mas essa perda é inscrição, como bem falou Derrida, e aí se expõe a

soberania, ou a experiência. Quando o discurso é rompido, a experiência passa a se abrir para o que é soberanamente, não mais como um fim para o conhecimento ou para o enunciado significativo das coisas. Na interioridade do sujeito, onde se dá a experiência autêntica, o discurso não serve mais, ele (ou sua função de significar e ordenar o pensamento) não é mais um fim a ser alcançado. Bataille diz: “[...] o que conta não é mais o enunciado do vento, é o vento” (1973a, p. 25).

Mas, mesmo com a atitude afirmadora da importância da própria experiência (e não do seu enunciado), o espaço da escrita permanece como uma forma privilegiada da operação soberana da qual Bataille tanto fala em sua obra. Além do simulacro, insistimos em algumas estratégias às quais Bataille recorre para cumprir a inscrição do deslizamento. Uma dessas estratégias é a figuração no seio da linguagem. A relação de Bataille com as imagens remonta aos tempos de Documents (fotografias e pinturas) e Acéphale (desenhos de André Masson), mas a partir de La somme atéologique, o uso das imagens ficou cada vez menos frequente, voltando a ser implementadas no texto em L’érotisme. Mas nem por isso o autor deixou de fazer alusões a imagens, mesmo sem colocá-las no texto, remetendo a elas uma abertura própria à soberania e à experiência. Talvez um dos casos mais famosos seja o comentário desnorteante da fotografia de um supliciado chinês, evocada tanto em L’expérience intérieure quanto em Le coupable.

68 “[...] ninguém entraria aí verdadeiramente ainda falando, se satisfazendo da esfera comum onde cada

Figura 16 – Fou Tchou Li

Fonte: BATAILLE, 1989.

Trata-se da fotografia de Fou Tchou Li no suplício dos “Cem pedaços” (Cent morceaux), registrada em Pequim em 1905 por Georges Duma e Louis Carpeaux. Essa fotografia compõe uma série de cinco imagens do suplício de Fou Tchou Li, condenado à pena de ser despedaçado vivo por matar o príncipe Ao Han Ouan, foi a ordem vinda da “clemência do imperador” (SURYA, 2012, p. 117). Essas fotografias foram publicadas por Dumas em seu Tratado de psicologia (1924), uma delas foi parar nas mãos Bataille – cópia talvez – através de André Borel, em 1925, seu psicanalista na época. “Esta foto teve um papel decisivo em minha vida”, disse Bataille (1987b, p. 627). As imagens do suplício de Fou Tchou Li estarreceram o autor de L’expérience intérieure, intrigado por Dumas em seu livro, pois, como em meio às feições embrutecidas dos carrascos, pele arrancada sangrando em carne viva, membros mutilados, ossos serrados, vivo ainda, o supliciado mantinha uma feição de êxtase? Luiz Augusto Contador Borges expõe o contexto da surpresa cismada de Bataille nas seguintes palavras: “É bem verdade que o supliciado encontrava-se sob efeito de injeções

de ópio, não para mitigar seu sofrimento, como se poderia supor, mas para prolongá-lo ainda mais. O enigma estava criado” (BORGES, 2005, p. 24.).

Ficamos intrigados através da imagem. De onde vem o riso em meio à súplica? Parece que diz respeito a um excesso que extravasa a própria dor incomensurável do supliciado; parece que o horror não está acontecendo a Fou Tchou Li, como se ele não pertencesse à situação, estivesse fora de cena, estivesse fora de si. Em L’expérience intérieure essa imagem intrigante é usada para projetar o “ponto-objeto” de deslizamento através da abertura da estabilidade do sujeito que olha tal imagem, estremecido na ausência de tranquilidade, na dramatização69. Conforme Bataille:

De todo modo, só podemos projetar o ponto-objeto pelo drama. Recorri a imagens perturbadoras. Em particular, eu fixava a imagem fotográfica – ou às vezes a lembrança que tenho dela – de um Chinês que deve ter sido supliciado antes de eu ter nascido70. Deste suplício eu tive, outrora, uma

sequência de representações sucessivas. No final, o paciente, com o peito esfolado, se contorcia, braços e pernas cortados nos cotovelos e nos joelhos. Os cabelos arrepiados sobre a cabeça, hediondo, atordoado, melado de sangue, belo como uma vespa (1973a, p. 139).

A descrição desse pathos através da evocação de uma imagem traz à luz o uso de imagens, na escritura, para lançar o sentido no não-sentido. Essa inscrição se traduz no caso do suplício chinês como a ruptura da estabilidade do sujeito. Essa imagem de Fou Tchou Li tem um parentesco com as imagens da significação aberta dos corpos em Documents, onde Bataille criticava o “idealismo” surrealista. Mas a fotografia do suplício chinês traz uma imagem de dilaceramento do corpo mais direta do que as imagens presentes na revista de 1929, trata-se da captura de um corpo humano esfolado em imagem fotográfica71. Destarte, Osvaldo Filho afirma: “A imagem do corpo desfigurado presta-se, pois, ao intento de alimentar o ‘drama’ que conduz à saída de si” (2018, p. 258).

69 Ver o subitem “A comunicação e o drama” no segundo capítulo desta tese.

70 A esse respeito, se seguirmos as palavras de Surya (2012, p. 117), Bataille está equivocado, pois seu

biógrafo afirma que o suplício ocorreu no dia 05 de abril de 1905, ou seja, sete anos após o nascimento de Bataille.

71 Em Documents as imagens que trazem o embaralhamento e deslocamento das formas do corpo

humano são pinturas de Picasso ou Dali e, mesmo que na revista Documents encontremos fotografias dos abatedouros de Eli Lottar – patas decepadas e corpos abertos sendo arrastados pelo chão – trata-se aí de corpos de animais e não de pessoas (BATAILLE, 1929g).

Vemos como a imagem de um corpo destruído, dilacerado, confere ao sujeito o deslizamento, no drama, a uma turbulência interior. Mas além do recurso aos movimentos interiores de dramatização72, o próprio texto de Bataille traz o embaralhamento das formas

fazendo chocarem-se as significações, é “o juízo estético [que] irrompe como uma involuntária resposta a essa imagem” (1973a, p. 139) – “belo como uma vespa”. Bataille expõe sua surpresa em relação a esse juízo estético, de algum modo surpreendendo também o leitor, como se tal juízo aparecesse no texto de uma forma inesperada, onde o Eu que escreve não é tão estável e convicto do que diz: “Escrevi ‘belo’! ... alguma coisa me escapa, me foge, o medo me furta a mim mesmo e, como quis fixar o olhar no sol, meus olhos deslizam” (BATAILLE, 1973a, p. 139). A espacialidade do texto Batailliano expõe lacunas que compõem, como num espaço de ausência, a suspensão na qual o discurso se inscreve.

Nas mesmas linhas em que Bataille evoca a foto do suplício chinês, reproduzidas no livro de Dumas, há o uso figurativo não dizendo respeito à imagem mesma, diretamente, à fotografia de Fou Tchou Li. Bataille fala que a lembrança é outra possibilidade de fixação da imagem para o deslizamento do pensamento: “Em particular, eu fixava a imagem fotográfica – ou às vezes a lembrança que tenho dela”. Desse segundo modo de apelo à figuração, Bataille faz um uso abusivo em seus textos. Sem dúvida, inúmeras são as ocasiões em La somme atéologique, por exemplo, em que tais figurações surgem no texto. Estratégia simulativa por sua vez, a figuração por lembrança ou representação dão ao sujeito os momentos de ruptura de seu isolamento egóico. Em Le coupable vemos algumas dessas figurações representacionais, como a incitação ao êxtase por imagens representadas por Bataille a si mesmo:

Vou dizer como cheguei um êxtase tão intenso. Sobre o muro da aparência, projetei imagens de explosão, de dilaceramento. Inicialmente, pude fazer em mim o maior silêncio. Isso se tornou possível a mim todas as vezes que quis. Nesse silêncio geralmente sem graça, evoquei todos os dilaceramentos imagináveis. Representações obscenas, risíveis, fúnebres, se sucederam. Imaginei a profundeza de um vulcão, a guerra, ou minha própria morte. Não duvidava mais que o êxtase pudesse se passar ao largo de Deus (1973b, p. 269).

A figuração própria do êxtase do qual não se extrai nenhum sentido é a figuração também da ausência de fundamento. A experiência do não-sentido passa ao largo de Deus,

72 Nas páginas que seguem à recordação do suplício chinês, Bataille escreve: “Recorrei ao mesmo

tempo a um mundo de dramatização despojada. Eu não partia, como o cristão, somente do discurso, mas também de um estado de comunicação difusa, de uma felicidade de movimentos interiores” (BATAILLE, 1973a, p. 139).

onde o repouso não é admissível nessa figuração. Mas, para Bataille, é preciso não fugir dessa maré turbulenta de associações. Conforme Bataille: “[...] ao fluxo das imagens, a fim de remediar a fuga de ideias por associações sem fim, nós podemos propor a equivalência do leito imutável de um rio com a ajuda de frases ou de palavras obsedantes” (1973b, p, 273). Aqui vemos o momento de inscrição do discurso no não-sentido. As palavras que servem para significar e orientar, conforme Bataille, passam a ser usadas para colocar em questão a estabilidade do sujeito a partir “de frases ou de palavras obsedantes”. Trata-se de uma experiência tumultuosa advinda da figuração, por evocação discursiva, que põe o sujeito em questão. Bataille diz:

Relato de uma experiência ardente, há alguns meses. Fui, na caída da noite, a uma floresta: andei uma hora, depois me dissimulei numa alameda sombria onde queria me liberar de uma pesada obsessão sexual. Então, imaginava essencial – em um certo ponto – de aniquilar em mim a beatitude. Evoquei a imagem de uma “ave de rapina degolando um pássaro bem menor”. Imaginava na noite os altos galhos e a folhagem negra das árvores animada contra mim, contra a beatitude, contra a ave de rapina. Me pareceu que a ave sombria pousava sobre mim... e me abria a garganta (1973b, p. 276).

Em se tratando dos artifícios figurativos, Bataille normalmente coloca o Eu fora da evidência autográfica, sempre nas vias da perdição, como um Eu que se dilacera ao representar o dilaceramento, que se convulsiona ao figurar para si explosões de todo tipo, um Eu decaído nas turbulências da derrisão da estabilidade do ser. Trata-se de um Eu desaparecido posto em presença pelos derruimentos de uma escrita que mantém suspenso o seu enunciador e a si mesma, como a imagem do grande pássaro abrindo sua garganta, evocada por Bataille. Na perspectiva de que na soberania a linguagem experimenta sua liberação, Foucault remete, em 1963, o pensamento de Bataille ao debate filosófico acerca dos desafios aos quais a linguagem filosófica se insere na confrontação da escrita batailliana. Em “Prefácio à transgressão” (1963), texto publicado no número da revista Critique em homenagem a Bataille, após um ano de sua morte, Foucault afirma o acontecimento da escrita posta à prova por um sujeito em ocaso, trazendo nas mãos uma linguagem que de nenhum modo pode ser suportada: “A linguagem de Bataille [...] desmorona-se sem cessar no centro de seu próprio espaço, deixando a nu, na inércia do êxtase, o sujeito insistente e visível que tentou sustentá-la com dificuldade, e se vê como que rejeitado por ela, esgotado sobre a areia do que ele não pode mais dizer” (FOUCAULT, 2009a, p. 36). Três anos após seu ensaio sobre Bataille, Foucault afirma, em “O pensamento do exterior”, que “[...] o ser da linguagem só aparece para si mesmo com o desaparecimento do sujeito” (2008b, p. 222).

O que fundamenta essas asserções é que, para Foucault, o acontecimento da morte de Deus abala decisivamente a contemporaneidade e com ela a filosofia e sua linguagem, de tal modo que esta linguagem, como afirma Daniel Galantin, “[...] não mais regida pela representação, é definida enquanto uma linguagem não-dialética” (2017, p. 215). O sujeito detentor de operações predicativas que se alinha em unidade com “a função gramatical” está em ruína, ele “some”, de certa maneira, em sua experiência de finitude, “reino ilimitado do limite”, na experiência da morte de Deus, entendida “[...] como espaço a partir de então constante de nossa experiência” (FOUCAULT, 2009a, p. 30). A linguagem de um sujeito marcado pela morte de Deus, que revela sua própria finitude (morte), expõe que o ser da linguagem está em relação com a morte do sujeito, como num “isomorfismo sublinhado”, afirma Galantin (2017), onde se dá a ruína da subjetividade filosófica.

O sujeito da escrita batailliana é aquele que sai de si mesmo na e pela linguagem que põe em questão a determinação dos sentidos possíveis. Ora, o dispêndio próprio da experiência e da soberania encontra seu correspondente na linguagem. O sujeito aí é “gasto”, dispendido, doado sem contra-partida, insistente na supressão de si. Em Le coupable lemos: “Em verdade, a linguagem que tenho só poderia ser levada à cabo pela minha morte” (BATAILLE, 1973b, p. 241). O desaparecimento de si na experiência turbulenta é o movimento presente na inscrição que a operação soberania realiza no discurso. Além de figurações que evocam a morte do sujeito, a desordem perpassa as frases de Bataille, percorrendo caminhos tortuosos, desnivelados do ponto de vista da integridade do corpo