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CAPÍTULO 4 – DO EROTISMO COMO MANIFESTAÇÃO DA EXPERIÊNCIA

4.1 O erotismo (in)fundado na transgressão

Quatro anos antes da publicação do ensaio de Derrida sobre Bataille, em 1967, Foucault já havia assinalado, em “Prefácio à transgressão”, o acontecimento da escrita soberana de Bataille, sem expor no extenso debate com Hegel, mas salientando o movimento intrínseco de ruptura com o pensamento, que Foucault chamou de “transgressão”74. Nessa perspectiva, o tema do impasse de uma experiência paradoxal, cujo sujeito põe-se em jogo ao falar dela, ou pensa-la, faz Foucault referir-se ao movimento da transgressão desenvolvido por Bataille em L’érotisme.

Já em Bataille, se ele afirma que a transgressão “suspende o interdito sem suprimi- lo” (BATAILLE, 1987a, p. 39), é preciso ressaltar que toda a problemática envolvendo a transgressão diz respeito a uma crítica social operada pelo autor. Na leitura de L’érotisme não vemos outro horizonte de tratamento do problema, no entanto, isto não é, mesmo que pareça, uma redução. Se Bataille faz da crítica social o terreno onde se articula a discussão sobre a natureza e o lugar que o erotismo ocupa na vida dos seres humanos, isso se ramifica nas problematizações sobre o projeto, o discurso e a experiência. “[...] O MUNDO DO DISCURSO É O MODO DE SER DA PROIBIÇÃO”, afirma Philippe Sollers (1992, p. 128, grifo do autor).

Nessa perspectiva, não é possível pensar a transgressão sem o seu par, o interdito, e nem o interdito sem a transgressão. A essa imbricação Foucault se referiu como uma relação “em espiral” entre transgressão e limite. Note-se que, pelo menos na linguagem comum, o limite tem uma especificidade menor que o interdito ou as proibições sociais, manifestações dos tabus antigos etc. Podemos pensar nos limites do próprio pensamento (assim o fez Kant) ou até mesmo nos limites da linguagem, ou nos limites das horas, nos limites de nossos espaços, ou nos limites de nossas contas bancárias etc. Nessa perspectiva, poderíamos chegar à seguinte conclusão: todo interdito é um limite, mas nem todo limite é necessariamente um interdito. Essa inferência se desfaz se pensarmos nos textos de La somme atéologique, nos quais o discurso é abordado em estreita relação com o mundo do trabalho, que lhe é o tipo de linguagem fundamental, que obedece ao projeto, à humanidade que se constrói sob o primado

74 Os comentários da letra batailliana na década de 1960, feitos por Foucault e Derrida, sem dúvida

nortearam o que outros autores escreveram sobre Bataille no final dessa década, como Philippe Sollers (1968-1992), assim como autores a partir de 1970, tais como François Durançon (1976) e Denis Hollier (1974).

do futuro a partir das realizações de suas ações, cuja forma privilegiada é o próprio trabalho. Esse horizonte hegel-kojeviano é o horizonte do interdito, o das proibições que determinam a manutenção da lei e da ordem e estruturam o mundo humano, o mundo do trabalho, a partir dos limites. Para maiores esclarecimentos, é preciso que retornemos à questão do mundo do trabalho.

Como já foi abordado no segundo capítulo desta tese, Bataille parte do ponto de vista freudiano acerca do surgimento do trabalho como meio pelo qual a humanidade se construiu, no entanto, o enfoque aqui é sobre a superação da animalidade por parte da civilização. Para ambos os autores, a civilização é o afastamento da humanidade em relação à animalidade. Em O mal-estar da civilização, Freud diz: “[...] ‘civilização’ designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si” (FREUD, 2010, p. 48). Nessa mesma perspectiva, Bataille salienta que o mundo do trabalho (da civilização) se erigiu como recusa à violência, instaurando os interditos: “[...] o que o mundo do trabalho exclui através dos interditos é a violência” (BATAILLE, 1987a, p. 45). Mas de qual violência fala Bataille? Nessa questão dos interditos a violência tem origem tanto da natureza, em sua brutalidade de ameaça física, quanto do âmbito dos desejos humanos.

Assim, Bataille afirma que a morte e a reprodução sexual tornam-se os objetos gerais das proibições. A violência, como movimento de destruição, instaura a desordem no domínio da cultura, de modo que, como afirma Levi-Strauss (2003, p. 46), é a ausência de ordem, ou de regra, que traça os exatos limites entre natureza e cultura75. É num panorama de interdições

em relação à morte, traduzidas nas práticas do sepultamento, por exemplo, e à sexualidade, traduzidas nos interditos do incesto, da menstruação, do parto etc. (BATAILLE, 1987a), que Bataille pensará o erotismo em sua relação negativa com a produção da vida e com o estado de animalidade. Se em “Hegel, la morte et le sacrifice” Bataille afirma que a ficção é uma atividade excepcionalmente humana e é o que nos diferencia dos animais, o erotismo também pertence a essa classe de atividades restritamente humanas, “[...] se o erotismo é a atividade sexual do homem, o é na medida em que ela difere daquela dos animais. A atividade sexual

75 Sobre isso, em As estruturas elementares do parentesco (1949), Levi-Strauss afirma: “Em toda parte

onde se manifesta uma regra podemos ter certeza de estar numa etapa da cultura. [...] Porque aquilo que é constante em todos os homens escapa necessariamente ao domínio dos costumes, das técnicas e das instituições pelas quais seus grupos se diferenciam e se opõem. [...] Estabeleçamos, pois, que tudo quanto é universal no homem depende da ordem da natureza e se caracteriza pela espontaneidade, e que tudo quanto está ligado a uma norma pertence à cultura e apresenta os atributos do relativo e do particular” (LEVI- STRAUSS, 2003, p. 47).

dos homens não é necessariamente erótica. Ela o é a cada vez que não é rudimentar, que não é simplesmente animal” (1987a, p. 33). A atividade sexual humana é erótica quando não visa os fins de reprodução e, para Bataille, isso é especificamente humano.

A atividade sexual de reprodução é comum aos animais sexuados e aos homens, mas aparentemente somente os homens têm feito de sua atividade sexual uma atividade erótica, aquilo que diferencia o erotismo e a atividade sexual simples como sendo uma busca psicológica independente do fim natural dado na reprodução e na preocupação com as crianças (1987a, p. 17).

Mas há um sentido mais profundo do erotismo subjacente a essas considerações: o erotismo é uma das formas privilegiadas, entre outras, da experiência interior. Tudo no erotismo responde a uma interioridade obscura, inapreensível e sem determinação acabada do sujeito. Bataille diz: “O erotismo é um dos aspectos da vida interior do homem. Quanto a isso nós nos enganamos (sic), pois ele procura fora, sem cessar, um objeto do desejo. Mas este objeto responde à interioridade do desejo” (1987a, p. 33). O sujeito do desejo se lança para fora, deseja um objeto exterior a ele mesmo, mas esse objeto erótico responde a um tumulto interno, a algo que não se pode saber muito bem o que é, algo que nos foge e só podemos indicar, mas não conhecer: é a experiência interior. Nessa relação com o objeto externo a si, o que é decisivo é a interioridade humana à qual os objetos do desejo se referem. Bataille desenvolve isso na perspectiva de que, longe da determinação própria da simples atividade sexual reprodutiva (animal), o desejo é a expressão de uma contestação de qualquer determinação acabada da subjetividade humana. Acerca do erotismo, o foco está na interioridade do sujeito como interioridade inapreensível na medida em que só nela é possível haver o questionamento de si mesma, contestação de seu próprio fundamento no ser isolado. Assim, o erotismo é uma forma privilegiada da experiência interior porque “[o] erotismo é, na consciência do homem, o que nele coloca o ser em questão” (1987a).

Desdobra-se no texto batailliano, mais uma vez, a noção de confronto, pois a consciência é o lugar do questionamento do ser, é nela que tudo se põe em jogo. Nada mais é tão explícito quanto esse momento de confronto da consciência quando, fundamentalmente, “[do] erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte” (1987a, p. 17). Isso quer dizer que a relação do erotismo, essa experiência privilegiada, se dá, no fundo, com a morte.

Sem dúvida alguma essa consideração do erotismo é amplamente devedora da obra de Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade, como o próprio Bataille confessa, citando-o na introdução de L’érotisme: “Não há meio melhor de se familiarizar com

a morte do que aliá-la a uma ideia libertina” (SADE apud BATAILLE, 1987a, p. 18). Em sua obra maldita, composta por personagens celerados, a libertinagem é a atividade posta em obra nas narrativas inquietantes de Justine, Filosofia na alcova e Os 120 dias de sodoma. A relação do erotismo com a morte, pensada por Bataille, está em estreita conexão com os sentidos da libertinagem na obra de Sade: a revolta ateísta à religião e, consequentemente, à sua moral, em nome de um prazer que instaurava a liberdade do corpo em sua naturalidade antagônica a idealidades metafísicas do gozo, como o ideal de amor redentor que “escraviza” o prazer. Sobre isso, Eliane Moraes afirma:

Assim, por desprezar os “gozos metafísicos” que esse sentimento [o amor] produz nos indivíduos, tornando-os dependentes e fracos, os libertinos sadianos só reconhecem a insaciabilidade da carne. Ao amor que escraviza eles contrapõem a libertinagem, força libertadora a emancipar o indivíduo das indesejáveis dependências, fazendo-o recuperar o estado original de egoísmo e isolamento de que foi dotado pela natureza (2011, p. 99).

As devassidões às quais se prestam os heróis sadianos nada fazem mais do que afirmar esse “princípio do mal” que está na origem do desejo (BATAILLE, 1987a, p. 123). Como busca calculada da extrema intensidade do prazer76 que leva, muitas vezes, à dissolução total do objeto desejado, a libertinagem tem como fonte indispensável, talvez a de maior arrebatamento, a morte de um outro (1987a, p. 17). Vemos como em Os 120 dias de Sodoma os quatro senhores celerados aguardam com bastante apreço e ansiedade a chegada do “ciclo da morte” e de suas atividades mais humilhantes, devastadoras e arrebatadoras no castelo de Siling, de modo que, em tom vocativo, o narrador confessa:

[...] nenhum libertino minimamente ancorado no vício ignora o império do assassinato sobre os sentidos e o quanto este determina voluptuosamente um esporro. Eis uma verdade que o leitor haverá de guardar em mente antes de empreender a leitura de uma obra que busca tanto desenvolver esse sistema (SADE, 2011, p. 25-26).

É na perspectiva da abertura do corpo para o prazer oriundo de um desejo que tem a morte como realização máxima, que Bataille compreende a verdade do erotismo, mas com suas devidas explicações. A questão é que o erotismo “partilha” aquilo que se revela no assassinato, o encontro com a morte. Mas vale lembrar que a morte, para Bataille, tem o

76 Não podemos eludir a demasiada racionalidade na obra de Sade (BLANCHOT, 2007, p. 204;

MORAES, 2011, p. 23), seria um grande equívoco afirmar em Sade a negação do sujeito racional, logo em A filosofia na alcova¸ por exemplo, que vemos em evidência a corrupção das ideias por meio do corpo e a corrupção do corpo por meio das ideias.

sentido filosófico do excesso que exige o dispêndio, a perda última. A exuberância da vida própria ao erotismo é da ordem do excesso, pois ela não entra nas considerações do aproveitamento que implica a atividade reprodutiva de construir uma família, cuidar dos filhos etc. Se o erotismo é a busca de um objeto que passa ao largo da reprodução, ele passa a ser vizinho da morte na medida em que está em aproximação com o dispêndio. A contradição de uma atividade de exuberância da vida que está próxima da morte revela uma verdade que é a base das “nossas representações da vida e da morte”, e que só podemos pensar o ser sem prescindir dessa verdade: o movimento das paixões (BATAILLE, 1987a, p. 18).

Se o erotismo se opõe à reprodução, isso não invalida, aos olhos de Bataille, que a chave do entendimento do erotismo ligado à morte pertença ao sentido próprio da reprodução, a saber: “A reprodução coloca em jogo seres descontínuos” (1987a, grifo do autor). Na reprodução, os seres envolvidos partilham de uma diferença individual intransponível. Há uma descontinuidade que marca fortemente as barreiras de distinção individual entre os seres na reprodução. Essa descontinuidade pertence ao mundo dos homens, cada pessoa tem na consciência as demarcações precisas de sua própria individuação, como uma espécie de barreira que a separa de todos os outros: pais, amigos, irmãos etc. Em suma, ninguém é igual a ninguém, por mais que em alguns momentos as pessoas compartilhem umas com as outras vivências comuns, lugares, amizades, há entre elas, de todo modo, um hiato abissal que não pode ser transposto.

Cada ser é distinto de todos os outros. Seu nascimento, sua morte e os eventos de sua vida podem ter para os outros algum interesse, mas somente ele é o único interessado diretamente. Somente ele nasce. Somente ele morre. Entre um ser e outro, há um abismo, há uma descontinuidade (1987a).

Em modo vocativo, pois a introdução L’érotisme é o texto de uma conferência, Bataille ainda diz:

Este abismo se situa, por exemplo, entre você que me escuta e eu que vos falo. Tentamos nos comunicar, mas nenhuma comunicação entre nós poderá suprimir uma diferença primeira. Se você morre, não sou eu quem morre. Somos, você e eu, seres descontínuos (1987a, p. 18-19).

No entanto, esse abismo entre as individuações, do qual fala Bataille, é o que os sujeitos têm em comum. Sendo assim, para o autor, o sentimento da vertigem desse abismo é o que pode ser compartilhado para além da vida descontínua. Se o abismo demarca a

separação entre os sujeitos, se demarca a vida que cada um vive, ele também é o fim da descontinuidade. Bataille se refere ao fim das descontinuidades existentes pelo conceito de continuidade. Nesse sentido, a “morte tem o sentido da continuidade do ser”, pois é a saída dessas barreiras que demarcam a vida de cada um. “Esse abismo em certo sentido é a morte, e a morte é vertiginosa, ela é fascinante” (BATAILLE, 1987a, p. 19).

A reprodução que põe em jogo seres descontínuos os lança para a continuidade dos seres. É no momento de fusão entre os dois seres na atividade de criação de outro ser que as descontinuidades são postas em derrisão. Não que os amantes deixem de existir na reprodução, eles estão presentes na atividade sexual, mas a fusão entre eles se dá num instante, momento onde o espermatozoide e o óvulo se desgarram do seus respectivos seres descontínuos no momento de união que resultará no zigoto como o fruto desse momento de perda de dois seres.

O espermatozoide e o óvulo são, em estado elementar, seres descontínuos, mas eles se unem, em consequência uma continuidade se estabelece entre eles para formar um novo ser a partir da morte, do desaparecimento dos seres separados. O novo ser é ele mesmo descontínuo, mas ele traz em si a passagem à continuidade, à fusão, mortal para cada um deles, de dois seres distintos. (1987a, p. 20).

Essas mudanças que estão na base da vida sexual são os momentos de morte próprios da vida, próprios do ser – como o quer Bataille. Nessa medida, justifica-se a afirmação do autor, a saber, que não podemos falar do ser prescindindo das representações da vida e da morte a que ele está jogado, aos “movimentos de paixão”. Notadamente, a morte manifesta a saída de um ser de sua descontinuidade, saída sem retorno. O erotismo, por sua vez, tem esse princípio da passagem do descontínuo para a continuidade, “[...] o que está sempre em questão é a substituição do isolamento do ser, de sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda” (BATAILLE, 1987a, p. 21).

Bataille considera que a humanidade, em sua vida descontínua, tem a nostalgia de uma continuidade perdida, e isso é uma clara relação do erotismo com o profundo sentido das religiões, abordado em Théorie de la religion (1948), como a “busca da intimidade perdida”. Essa intimidade da qual fala Bataille é um sinônimo da continuidade, também chamada de imanência ou animalidade (BATAILLE, 1976b). Em um sentido geral, a esfera da intimidade é a da situação animal, isto é, uma situação de imediatez no mundo, onde a relação entre a vida animal e mundo não tem nenhuma mediação, não tem distinção das formas de vida, como uma continuidade indistinta: “O animal está no mundo como a água na água”

(BATAILLE, 1976b, p. 295). O apelo poético dessas palavras traduz a enorme dificuldade de falar da animalidade, da esfera da intimidade que é a da continuidade indistinta, pois ela está fechada para nosso entendimento. A poesia é a maneira correta de falar da animalidade, pois “[...] a poesia não descreve nada que não deslize para o incognoscível” (1976b, p. 293). Mas é esse incognoscível da intimidade do animal que nos traz, pelo “poder poético”, o sentimento de uma profundidade, profundidade da imediatez da vida, que de alguma maneira também temos e que é profundidade porque nos escapa. Conforme Bataille:

O animal abre perante mim uma profundidade que me atrai e que me é familiar. Esta profundida, num certo sentido, eu a conheço: é a minha. Ela é também o que mais longinquamente se furta a mim, o que merece o nome de profundidade, que quer dizer com precisão aquilo que me escapa (1976b, p. 294).

É no sentido de uma nostalgia dessa intimidade, para nós um “enigma embaraçoso”, que o sentimento do sagrado diz respeito, e com ele todas as tentativas na história da humanidade de responder ao mal estar de uma vida separada dessa imanência profunda, tentativas estas que se expressam, sobretudo, nos sacrifícios em ritos solenes (BATAILLE, 1976b). A relação entre o erotismo e o sagrado tem como horizonte essa noção de nostalgia da continuidade dos seres da qual fala Bataille, e que se torna mais imperiosa na medida em que vivemos angustiados se a vida se passa somente na esfera da descontinuidade. Bataille diz: “Suportamos mal a situação que nos prende à individualidade eventual [...]. Ao mesmo tempo em que temos o desejo angustiado da duração desse perecível, temos a obsessão de uma continuidade primeira, que nos religa geralmente ao ser” (1987a, p. 21). A passagem para a continuidade implica a existência da violência, pois se trata da saída da descontinuidade. Basta pensarmos no caso extremo do sacrifício, onde

[a] vítima morre, enquanto os assistentes participam de um elemento que revela sua morte. Este elemento é aquilo que é possível nomear, segundo os historiadores da religião, o sagrado. O sagrado é justamente a continuidade do ser revelado àqueles que fixam sua atenção, num ritual solene, sobre a morte de um ser descontínuo. Há, pela morte violenta, ruptura da descontinuidade de um ser: o que subsiste e que, no silêncio que cai, experimentam os espíritos ansiosos é a continuidade do ser, à qual a vítima retornou. Só uma imolação espetacular, operada nas condições que determinam a gravidade e a coletividade da religião, é suscetível de revelar o que normalmente escapa à atenção (BATAILLE, 1987a, p. 27).

Figura 17 – Sacrifício de um galo (Candomblé Cosme, Salvador/BA, 1948-1953)77.

Fonte: BATAILLE, 1987a.

O pensamento de Bataille sobre as formas do erotismo78 se dirige aos limites da realização da violência – é diante disso que a aproximação com a obra de Sade fica mais visível. A perda das formas constituídas de nosso corpo se dá pela violência em jogo no ato

77

Esta fotografia de Pierre Verger é uma das várias imagens que compõem L’érotisme, que sobretudo não vêm acompanhadas de uma análise por parte do autor, mas servem como apoio imagético às noções desenvolvidas no livro.

78 Bataille faz referência a três formas do erotismo: dos corpos, dos corações e do sagrado. O erotismo

dos corpos diz respeito à efetiva atividade sexual sem fins reprodutivos, acompanhada dos sentimentos de tumulto e intensidade próprios à dissolução dos seres descontínuos no limite do jogo erótico; o erotismo dos corações diz respeito ao sentimento de paixão dos amantes sem o toque do corpo, em que, nessa situação de distância do ato sexual, o sentimento envolvido no erotismo é ainda mais vertiginoso; e, por fim, no erotismo do sagrado a relação erótica é entre um sujeito que tem um objeto sagrado como sendo o desejado, é o “amor por Deus”, no qual se dão muitas vezes as experiências místicas dos santos (BATAILLE, 1987a).

sexual, como afirma Benjamim Noys: “O ato sexual é uma experiência da continuidade, que é uma experiência da perda ou dissolução dos limites do nosso corpo” (2000, p. 83). O erotismo joga com os limites dos sujeitos na medida em que “[essencialmente,] o domínio do erotismo é o domínio da violência, o domínio da violação” (BATAILLE, 1987a, p. 22). Essas considerações se estendem na relação do erotismo com a morte pela violência nele implicada, na medida em que, segundo Eliane Moraes, Bataille “[...] enfatiza seu caráter destrutivo” (2010, p. 51). Assim, a destruição presente no erotismo se dá na violência da perturbação, a dissolução da ordem descontínua em que os seres fechados, isolados, se encontram, isso tanto no nível corporal em suas violações, cuja manifestação última é a morte, quanto no nível dos sentimentos, das crises emotivas que desnorteiam os amantes. Bataille afirma: “Toda a operação erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é, no