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CAPÍTULO 2 EXPERIÊNCIA: ÚNICA AUTORIDADE, ÚNICO VALOR

2.2 A experiência interior

2.2.4 Excesso e desejo

Se nos determos no diálogo de Bataille com Hegel, percebemos que a presença do pensamento hegeliano faz grande sombra nos principais livros de Bataille, que vão do início de 1940 até o final de 1950. Esse diálogo se mostra constante, mas sobretudo de modo crítico, pois, admitindo o postulado do “desejo refreado” na realidade do trabalho como elemento fundamental na constituição da humanidade, esta paga um preço caro por isso. Trata-se de uma espécie de retardo da própria vida. Notadamente, essa asserção vai ao encontro da contribuição que a psicanálise trouxe para a formação de outra imagem do ser humano: ser de desejo relacionado à força pulsional, sujeito psíquico que tem como parte integrante de sua estrutura o inconsciente etc.

A psicanálise freudiana oferece uma consideração da vida não mais como encadeamento progressivo de um espírito a atingir a certeza de si mesmo. O sujeito da psicanálise é constituído por um aparelho psíquico dono de um nova significação, determinado pelos caminhos das pulsões e dos desejos. Se “[...] Freud enxerga o ímpeto da vida pulsional vislumbrando na sua imanência a projeção dos desejos humanos universais”

(IBERTIS, 2017, p. 50), o sujeito para Bataille também é perpassado por forças do desejo, admitindo, sobretudo, o desejo pela autodestruição. A noção de desejo em Bataille se inscreve em duas problematizações: uma aponta na direção do aproveitamento da energia tendo em vista a auto conservação, a outra, em direção ao desencadeamento próprio do desejo. Autopreservação e desencadeamento, no vocabulário de Bataille, são traduzidos por aquisição e gasto, e é preciso esclarecer essa gramática.

Bataille afirma o duplo caráter das atividades humanas levadas à conservação de si e à autodestruição. No entanto, para o autor, mesmo com a ambivalência presente, é do lado da destruição que se encontra a verdade do desejo, entendido aqui como desejo soberano, ligado à experiência que coloca tudo em causa, que não se subordina a nenhuma autoridade alheia. “De uma parte, se faz apelo ao excesso de forças, aos movimentos de embriaguez, de desejo. E de outra parte, a fim de dispor de foças em quantidade, nos mutilamos” (BATAILLE, 1973a, p. 36). O problema é o desejo refreado. Esse refreamento se expressa através da moral e do primado do futuro, de modo que é no panorama das ações humanas que a auto conservação se insere. Mas, ao mesmo tempo, os desejos anunciam o ápice da vida como movimento de ruína:

Esta moral é menos a resposta a nossos desejos ardentes de um ápice do que uma tranca oposta a tais desejos. O esgotamento chegando depressa, os dispêndios desordenados de energia, os quais nos engaja a preocupação de romper os limites do ser, são desfavoráveis à conservação, isso é, ao bem deste ser (BATAILLE, 1973e, p. 51).

O refreamento dos desejos se põe sob a égide da mutilação da vida, mutilação do que é essencialmente excessivo. Levado pelas considerações do excesso, Bataille postula o não aproveitamento (contabilização) da turbulência que anima o ser, da embriaguez que lhe é própria, mas que para se manter na existência impõe-se restrições. O aproveitamento dos recursos (materiais e energéticos) é um meio para que a vida se torne possível, porém esse aproveitamento em algum momento atinge um limite, “[a] atividade humana não é inteiramente redutível a processos de produção e de conservação” (BATAILLE, 1970d, p. 305). O consumo é necessário, mas não somente o tipo de consumo produtivo que auxilia a manutenção da vida e dos bens. Há o tipo de consumo improdutivo, conceitualizado como dispêndio (dépense), de tal forma que este é a única via pela qual se pode dar vazão ao excedente.

Esse tema é encarado antes da escrita de La somme atéologique, notadamente em “La notion de dépense” (1933), publicado na revista La critique sociale. Aqui Bataille inicia

suas considerações sobre o dispêndio, visto como um movimento de dilapidação referente à realidade humana, evidenciado historicamente pelas práticas do sacrifício, das artes, dos jogos, da atividade sexual perversa etc. Como afirma o autor, o dispêndio não tem somente o caráter de consumo real, isto é, consumo material efetivo, mas o dispêndio também tem o caráter simbólico; por exemplo, locais de cerimônia religiosa e artística, bem como as próprias produções artísticas (BATAILLE, 1970d, p. 307). O princípio da perda, do dispêndio, nunca foi escamoteado na vida social humana, pois mesmo com o empenho em conservar e adquirir, a humanidade nunca deixa de ir em direção ao dispêndio. Bataille diz:

Uma vez indicada a existência do dispêndio, assim como a de uma função social, é preciso considerar as relações dessa função com aquelas de produção e de aquisição que lhe são opostas. Essas relações se apresentam imediatamente como aquelas de um fim com a utilidade. E se é verdade que a produção e a aquisição mudam de forma se desenvolvendo, introduzem uma variável cujo conhecimento é fundamental para a compreensão dos processos históricos, eles são somente meios subordinados ao dispêndio. Por tão terrível que seja, a miséria humana jamais teve um domínio suficiente sobre as sociedades para que a preocupação com a conservação, que dá à produção a aparência de um fim, imperasse sobre a preocupação com o dispêndio improdutivo (1970d, p. 308, grifo do autor).

A aposta de Bataille é na insubordinação que fundamenta a noção do dispêndio. O que é dispendido é o excesso, aquilo que não se deixar aproveitar utilmente. Em 1949, com a publicação de La part maudite, Bataille amplia a noção de dispêndio em problematizações acerca da economia geral, numa relação mais profícua com o excesso. Para Bataille, o ponto de vista é geral, pois falar do excesso é não se restringir ao nível individual, mas considerar o excesso no nível “cósmico”. O que dizer disso? O excesso está em todas as partes, é a abundância de energia que circula pelos recônditos onde a vida se propaga. Segundo Jean Piel,

[essa] descoberta está na extrema origem do interesse que ele deveria levar em seguida, não somente pela etnologia, mas também – e cada vez mais – pelos fatos econômicos, vindo a intervir como uma iluminação que permitiria a Bataille de se representar o mundo como animado por uma ebulição, acordo com aquilo que não cessou de dominar sua vida pessoal (1963, p. 725, trad. nossa).

A generosidade do sol que fornece energia sem receber nada em troca, o “dar sem contrapartida”, evidencia a dádiva de energia na superfície do globo (BATAILLE, 1976d). As formas de vida são exuberantes, o próprio ato de manducação entre os animais é um evento de

efervescência da vida38, “[na] efervescência geral da vida, o tigre é um ponto de extrema incandescência” (1976d, p. 40). Ao mesmo tempo, o dispêndio de riquezas com fins agonísticos entre tribos do noroeste americano, o potlatch, mostra que o que é dado às queimadas pertence ao não aproveitamento: “A obrigação de dar é a essência do potlatch” (MAUSS, 2003, p. 243, grifo do autor). Dentre os estudos antropológicos em alta na primeira metade do século XX na França, o Ensaio sobre a dádiva (1925), de Marcel Mauss, proporcionou a Bataille o conhecimento do fenômeno do potlatch, dando-lhe uma compreensão do tumulto subjacente à vida humana que promove uma economia do excedente. No potlatch, um doador dá sem reservas boa parte de suas riquezas a um donatário, com a finalidade de humilhá-lo, instaurando assim um desafio. o Donatário, em contrapartida, tem que retribuir com uma doação maior o gesto da dádiva. Essa doação não é uma troca de riquezas, mas sim a destruição dos bens. Sua ocasião são ritos de passagens, onde a ostentação dilapidatória dos bens – escravos e cachorros degolados, fortunas jogadas ao mar, incêndio de aldeias etc. – marcava o delírio do tempo da festa. Para Bataille, o potlatch mostra como o dispêndio fundamentou a atividade econômica de uma sociedade em algum momento da história.

Em La part maudite, encontramos um Bataille que tenta expor sistematicamente sua visão de mundo, escrevendo uma “história universal” a partir da noção de dispêndio e de excesso, partilhando sua filosofia da história e da natureza (PIEL, 1963). O excesso está na base dessas considerações, pois o excedente não pode ser aproveitado. O dispêndio é necessário, é a doação sem contrapartida, perda sem reservas que responde ao tumulto e efervescência dos indivíduos envolvidos. A economia caracterizada pela abundância e pela perda é de caráter geral, pois diz respeito ao dispêndio em seu conjunto. Tal “economia geral” se contrapõe à “economia restrita” (relativa ao ponto de vista do particular). A diferença se dá

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A hipótese de Bataille sobre as formas do excesso que comandam a vida é oriunda das contribuições de seu amigo físico Georges Ambrosino, cuja pesquisa sobre a pressão e o excesso de energia no globo se faz muito presente em La part maudite. Das considerações da física, Bataille transpõe a existência do excesso para a vida animal, afirmando a exuberância e onerosidade da vida nos seguintes termos: “A forma de vida menos onerosa é aquela de um micro-organismo verde (absorvendo a energia do sol através da ação da clorofila), mas geralmente a vegetação é menos onerosa que a vida animal. A vegetação ocupa rapidamente o espaço disponível. Os animais fazem hecatombes com elas e estendem suas possibilidades do seguinte modo: eles se desenvolvem mais lentamente. Neste ponto de vista, a besta feroz está no ápice: suas depredações contínuas de depredadores representam uma imensa dilapidação de energia. William Black perguntava ao tigre: ‘Em quais abismos, em quais céus longínquos incendiou-se o fogo dos teus olhos?’. O que o impressionou desse modo era a pressão cruel, no extremo do possível, o poder de consumação intensa da vida. [...] E esta incandescência, com efeito, de fato se abrasou na profundeza recuada do céu, na consumação do sol” (BATAILLE, 1976d, p. 40).

no destaque ao excesso que deve ser despendido. O problema que se coloca para a economia geral é o problema do excesso que necessita do dispêndio; do ponto de vista da economia restrita, o problema se coloca do ponto de vista da falta de recursos e da preocupação pelo crescimento e acúmulo com a finalidade de suprir essa falta (BATAILLE, 1976d, p. 45). A diferença está entre a necessidade e a exuberância. Bataille afirma, sobre a economia geral: “[...] o que a economia geral define inicialmente é um caráter explosivo desse mundo, levado à extremidade de tal tensão explosiva no tempo presente” (1976d, p. 46, grifo do autor).

Em La part maudite, o ser humano é posto em consonância com o universo na perspectiva do excesso. Se analisarmos a obra L’érotisme, é o excesso (turbulência) que faz da sexualidade humana um desvio da simples atividade reprodutiva (BATAILLE, 1987a). É pelo excesso que o sujeito é pensado dentro e fora da natureza. Sua existência é diferente das outras formas de vida, mas a vida humana não está separada da ebulição que é a vida como um todo. Conforme Bataille: “Com efeito, a ebulição que considero, a ebulição que anima o globo, é também minha ebulição. Assim, esse objeto de minha pesquisa não pode ser distinguido do próprio sujeito, mas devo ser mais preciso: do sujeito em seu ponto de ebulição” (1987a, p. 20, grifo do autor).

La part maudite demorou dezoito anos em gestação (de 1931 a 1949), tendo em “La notion de dépense”, de 1933, o aparecimento das primeiras problematizações sobre o dispêndio, como já mencionado. Dessa forma, a questão do excesso esteve presente no pensamento de Bataille quando ele escrevia La somme atéologique, de modo que vemos em Sur Nietzsche (1945), terceiro volume da Suma, o sujeito da colocação em questão ser o do excesso, da “perda de forças”, do dispêndio. Trata-se de um sujeito impossível, colocando-se na contramão do projeto, nos extremos dos limites, no ápice da vida intensa. “O ápice responde ao excesso, à exuberância das forças. Leva ao máximo a intensidade trágica. Ele se liga aos desmedidos dispêndios de energia, à violação da integridade dos seres. É, portanto, mais próximo do mal do que do bem” (BATAILLE,1973e, p. 42, trad. nossa). A vida no ápice não se coloca nas vias do bem, entendido como conservação dos seres. Se o ápice é a intensificação, colocando a integridade dos seres em questão, a preservação é o declínio da exuberância. “O declínio – respondendo aos momentos de esgotamento e fadiga – dá todo o valor à preocupação de conservar e de enriquecer o ser. É dele que dependem as regras morais” (1973e, p. 42, trad. nossa). Nessa perspectiva, há duas disposições morais: a do ápice e a do declínio, uma de colocação em questão do sujeito e outra de limitação. Todavia, na vida encadeada no projeto é a moral do declínio que está em voga.

Uma coisa é extremamente problemática no tratamento sobre a experiência: seu pensamento vai ao encontro do tempo de sua escrita, a escrita de alguém acometido pela guerra. Mas essa relação é ambivalente, pois em meio ao horror da guerra somente alguém enlouquecido apostaria em algo diferente do projeto prático pela liberdade humana. Não foi por acaso que L’éxpérience intérieure foi alvo de severas críticas por parte de Sartre, dando à Bataille o posto de “novo místico” (SARTRE, 2006). Em meio ao cerceamento da possibilidade da vida, humilhações, mortes em níveis catastróficos e pessoas vivendo o horror, alguém que escreve sobre êxtase, exuberância, excesso e interioridade não pode ser levado a sério. Como bem afirma Eduardo Pellejero: “O próprio Bataille sabia que, num mundo no qual ninguém duvida do valor da ação, só alguém que perdeu a cabeça pode recusar um objetivo sem propor outro mais válido” (2017, p. 39).

É notório que Bataille não se manteve impassível perante a guerra e a ascensão do nazi-fascismo na Europa. No entanto, seu modo de responder à catástrofe do horror foi outro. Com a guerra que teve início em 1939, dias depois começa a escrita de Le coupable. Nesse tempo Bataille não assumiu um engajamento militante, mas se lançou na efemeridade do ser que a guerra expõe, ela “se acompanhará de uma impressão, de muitas maneiras escandalosa, de leviandade” (HOLLIER, 1993, p. 102). Se, para Denis Hollier, L’éxpérience intérieure foi escrita na imersão de seu tempo, isso se estende aos outros volumes de La somme atéologique, no caso Le coupable e Sur Nietzsche. Em especial, Le coupable carrega o peso da escrita da experiência no lugar e no tempo que ocupa. A culpa do narrador (o próprio Bataille) se traduz nessa investida no universo da intimidade dos desejos e de uma experiência do ápice rumo ao êxtase, em meio às bombas em noites escuras. Passando meses no campo, em Vézelay, Bataille vive a guerra na experiência da efemeridade do ser, comparado a K., em O processo, uma vida culpada na negligência de seus afazeres, como salienta Hollier:

K. gasta seu tempo em infantilidades (é a palavra de Bataille no capítulo de A literatura e o mal consagrado a Kafka), não leva a sério suas dificuldades, ou, ao invés disso, as esquece, atento, mais do que à vaidade dos seus advogados, aos charmes de suas secretárias (1993, p. 102).

Mas a culpa também se dirige àquele que está esgotado e fracassado na experiência do ápice. O excesso se coloca para o sujeito, mas não se despende numa realização total. Há um fracasso próprio da experiência que contradiz a plenitude, de modo que a culpa do fracasso vem à tona. O fracasso circunscreve a própria experiência do sujeito na extrema contestação. Jamais poderá ser plena, pertence a ela mesma ser inconclusa. Plenitude é

repouso, tudo tem que tremer, não há descanso na ebulição. “Começar, esquecer, jamais ‘alcançar’..., segundo eu, este é o método correto, o único à medida dos objetos que lhe são semelhantes (que se assemelham ao mundo)” (BATAILLE,1973e, p. 342). Jamais alcançar na medida em que o encontro é furtivo, nada se apreende. Talvez o projeto de sair do projeto se dê através de uma vontade de ir à própria exasperação, pois só na contestação de si esse projeto de fuga é (im)possível.

Eis o ponto fulcral da condição humana no tratamento da experiência em Bataille: a condição humana é como estar num beco sem saída, o excesso é sua verdade, a experiência sem limitações é a forma mais lúcida e honesta de encarar a vida. Contudo, a existência se situa, antes de tudo, em limitações que dizem respeito à condição de refrear os desejos em prol da vida. Não se pode escapar do declínio, é de onde se parte e para onde se retorna na aspiração ao ápice, como nitidamente Bataille afirma em Sur Nietzsche: “[...] o declínio é o inevitável e o próprio ápice o indica; se o ápice não é a morte, ele deixa atrás de si a necessidade de descer” (1973e, p. 57). É preciso remarcar a importância do estatuto da impossibilidade da experiência interior, isto é, impossibilidade da realização plena da contestação, pois a morte é a única parada (definitiva) real onde vai dar a experiência dos excessos. Trata-se sempre de uma aspiração, ida a algum lugar, não necessariamente chegar em algum lugar, “[o] ápice não é ‘aquilo que é preciso atingir’” (1973e, p. 57). Trata-se do caminho a percorrer, mas sempre na errância. O trilhar é sempre o perder-se. Bataille diz: “Como o castelo de Kafka, o ápice não é senão, no fim das contas, o inacessível” (1973e, p. 57). A impossibilidade do ápice é a impossibilidade da própria vida no ápice, onde ela não é mais rentável, uma vez intensificada ao extremo. A contestação que expia a autoridade da própria experiência pruma em expiar a vida, como numa espécie de suplício. Esse impasse é a condição humana. Podemos ler em Bataille:

O ápice, em essência, é o lugar onde a vida, no limite, é impossível. Só o atinjo na muito fraca medida em que despendo forças sem reserva. Só disporei de forças a dilapidar novamente na condição, graças ao meu labor, de recuperar aquelas que perdi. Aliás, o que sou? Inscrito nos limites humanos, só posso dispor, sem cessar, de minha vontade de agir. Cessar de trabalhar, de me esforçar de algum modo em torno de um objetivo ilusório definitivamente, nem pensar. Suponhamos mesmo que considere – na melhor das hipóteses – o remédio cesariano, o suicídio: esta possibilidade se apresenta a mim como um empreendimento exigindo – certamente com uma pretensão desconcertante – que eu ponha sobre o instante presente a preocupação com o por vir. Não posso renunciar ao ápice, é verdade. Protesto – e quero, em meu protesto, pôr um ardor lúcido e mesmo ressequido – contra tudo que exige sufocar o desejo. Todavia só posso, rindo, aceitar o destino que me obriga a viver nas necessidades. Não tenho o

sonho de suprimir as regras morais. Elas derivam do inevitável declínio. Declinamos sem parar, e o desejo que nos destrói só renasce quando nossas forças estão reestabelecidas. Assim devemos deixar acontecer em nós a parte da impotência, não tendo forças ilimitadas, temos de reconhecer em nós esta necessidade à qual estamos sujeitos, mesmo que a neguemos. [...] Só posso dizer tristemente, da necessidade à qual estou submetido, que ela me humaniza, que ela me dá sobre as coisas um império inegável. No entanto posso me recusar a ver nisso um signo de impotência (1973e, p. 57-58, grifo do autor).

O excesso pressupõe o gasto sem contrapartida. Instaura-se uma espécie de esgotamento no sujeito, mas o excesso por si não se estagna, pois seu imperativo está ligado ao intenso questionamento e contestação. É mediante o excesso pertencendo ao ser, àquilo que é, que Franco Rella encara o pensamento de Bataille na perspectiva de uma estância metafísica:

“O excesso é aquilo mesmo para o qual o ser está, em princípio, antes de cada coisa, além de todo limite”. Bataille exprime, aqui, a própria estância metafísica. O ser está também dentro dos limites, e é em virtude desses limites que posso falar, embora a palavra que falo seja uma palavra que foge constantemente em direção àquela estância ulterior, aquela que está além do limite, porque “tudo aquilo que é, é mais do que aquilo que é” (2010, p. 34- 35, grifo do autor).

Mas essa “metafísica” é o inverso de uma metafísica, pois não restitui o sujeito a uma totalidade e nem orienta o ser ao seu fundamento. “É o excesso metafísico que está no coração do ente singular, da coisa singular, do ser singular” (BATAILLE,1973e, p. 38). A impossibilidade da obtenção de sentido perfila o horizonte de laceração da filosofia batailliana, pois o ser é considerado no movimento de ultrapassamento de si. Essa é a verdade do ser, a verdade contraditória do excesso (BATAILLE, 1971a). Como Bataille escreveu no prefácio de seu livro erótico Madame Edwarda, publicado sob o pseudônimo Pierra Angélique, o ser se dá no ultrapassamento de si, na ida aos próprios limites, onde está presente um halo de morte:

O ser nos é dado em um ultrapassamento intolerável do ser, não menos intolerável que a morte. E visto que, na morte, ao mesmo tempo ele nos é dado, ele nos é retirado; devemos então procurar no sentimento da morte, nesses momentos intoleráveis onde ele se apresenta quando morremos, pois o ser não está mais aí que por excesso, quando a plenitude do horror e a alegria coincidem (1971a, p. 11-12).

Nesse pensamento o sujeito é um ser que sangra e sua ferida nunca se cicatriza. Uma aproximação da morte, mas somente aproximação, traz o impossível no espaço da vida. A