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CAPÍTULO 3 – EXPERIÊNCIA E ESCRITA: O PROBLEMA DO DISCURSO

3.1 A fissura do sentido

Se há um saber conquistado através da construção do sentido na discursividade, uma fissura do sentido só pode, para Bataille, acarretar o não-saber. A questão do não-saber e do não-sentido insere a categoria da experiência num ponto antipodal ao percurso circunscrito, conforme a filosofia de Hegel, que a consciência faz de sua experiência. As figuras que a consciência adquire no seu vir a ser em direção à totalidade, o “restabelecimento da unidade”, ou a “consciência final da substância com o sujeito”, se realiza somente “na descrição adequada da totalidade do Ser e do real pela filosofia absoluta” (KOJÈVE, 2002, p. 497). O sistema filosófico se constitui como discurso de compreensão e descrição do devir filosófico. O discurso filosófico descreve a revelação da totalidade do ser ao homem, ao mesmo tempo em que é a revelação da totalidade. A totalidade do sistema implica o discurso sobre a totalidade. Segundo as palavras de Kojève, a Fenomenologia, como “ciência da experiência da consciência”, postula um saber, o verdadeiro, sobre o Ser e a totalidade. Mas Bataille desconfia da completude do sistema hegeliano, pois considera que a experiência está além do saber. O não-saber, como ultrapassamento da experiência da totalidade, da qual o sujeito faz ciência, como afirma Franco Rella (2010, p. 26), “[...] que Bataille supõe à altura da Suma ateológica deveria ter em si ‘a inexorável lucidez de Hegel”. Assim, Bataille se estreita mais e mais à filosofia hegeliana, porém com o intuito de ultrapassá-la:

Além de todo saber está o não-saber, e que se absorveria no pensamento quando além de seu saber ele não saberia nada; tivesse em si a inexorável lucidez de Hegel, não seria mais Hegel, mas um dente doloroso na boca de Hegel. Somente um dente doente faltaria ao grande filósofo? (BATAILLE, 1973d, p. 422-423).

Que a filosofia de Hegel, enquanto sistema, seja uma grande boca, Bataille postula uma derrisão dessa grande boca, mas por dentro da própria boca, um dente doente. O preço a se pagar por querer ser esse dente doente é o da falência. Bataille quis pensar o impensável, o que excede o pensamento, opondo ao sistema a experiência, ao saber, o não-saber (RELLA, 2010). A grande filosofia tem como modelo o sistema do pensamento, que Bataille concebe como trabalho discursivo que transparece a confiança de alcançar um resultado especulado desde o início (BATAILLE, 1976e, p. 202). Trata-se, sem dúvida, da filosofia de Hegel. Bataille diz: “A construção de Hegel é uma filosofia do trabalho, do ‘projeto’. O homem hegeliano – Ser e Deus – se cumpre, se encerra na adequação do projeto” (1973a, p. 96). No entanto, Bataille quer o dispêndio que exige o excesso, ou o excesso que exige o dispêndio, de modo que encara a filosofia de Hegel, como bem ressalta Derrida (2011), sob uma perspectiva dramática.

O “drama Hegel” diz respeito à morte, ao riso e à satisfação do espírito. Se a filosofia absoluta dá conta da totalidade do real, noção que Bataille aprendeu com Kojève, esse percurso não foi sem vertigem, pois a Hegel não faltou orgulho e obstinação de ir ao fundo das coisas. Sobre isso, Bataille afirma:

Ele [Hegel] teve sem dúvida um tom de benzedor irritante, mas através de um retrato dele mais velho, imagino ler o esgotamento, o horror de estar no fundo das coisas – de ser Deus. Hegel, no momento em que o sistema se encerrou, acreditou durante dois anos estar louco: talvez tivesse medo de ter aceitado o mal – que o sistema justifica e faz necessário; ou relacionando a certeza de ter atingido o saber absoluto ao acabamento da história – na passagem da existência ao estado de vazia monotonia – se viu, num sentido profundo, tornar-se morto; talvez mesmo essas tristezas diversas se compõem nele no horror mais profundo de ser Deus (1973a, p. 128).

O drama anunciado nessas palavras circunscreve a experiência de Hegel com o extremo, “ser tudo” ao extremo. Nos anos que se seguem a La somme atéologique, esse caráter é mais acentuado, de modo que em “Hegel, la mort et le sacrifice”, artigo publicado em 1955 na revista Deucalion, Bataille toma a filosofia hegeliana do saber absoluto como uma filosofia da morte (1988a, p. 334). Essa perspectiva Bataille deve a Kojève, que em 1947 lançou no volume de Introdução à leitura de Hegel um anexo intitulado “A ideia de morte na

filosofia de Hegel”. A influência heideggeriana sobre a leitura de Kojève acerca de Hegel é nítida, pois, no plano fenomenológico, o homem tem a consciência da morte que lhe comanda as exigências de se fazer homem frente ao horizonte marcado pela sua finitude. A filosofia de Hegel, para Kojève, é uma antropologia filosófica que erige um discurso sobre a condição essencialmente humana de defrontar-se sempre com sua morte, com o seu fim. O saber da finitude, isto é, da morte, faz o sujeito da filosofia hegeliana lograr êxito na conquista pela liberdade e pela consciência-de-si. Kojève afirma:

Segundo esse pensamento, é ao aceitar voluntariamente o risco de morte numa luta por puro prestígio que o homem aparece pela primeira vez no mundo natural; e é ao resignar-se à morte, ao revelá-la pelo discurso, que o homem chega finalmente ao Saber absoluto ou à sabedoria, concluindo assim a história. Pois é partindo da ideia de morte que Hegel elabora sua ciência ou filosofia absoluta, a única capaz de explicar filosoficamente a existência, no mundo, de um ser finito consciente de sua finitude e dela dispondo a seu bel-prazer (2002, p. 504-505).

Kojève é radical nesse aspecto, pois a morte constitui o horizonte que a consciência faz no percurso da experiência de si mesma, sobretudo pela negatividade que garante o movimento dialético dessa experiência. Ora, notadamente Kojève se serve das próprias palavras de Hegel no prefácio à Fenomenologia do espírito, onde a morte surge como potência máxima da negatividade que não efetiva nenhuma obra. Hegel afirma: “A morte – se assim quisermos chamar essa inefetividade – é a coisa mais terrível; e suster o que esta morte requer a força máxima” (2014, p. 41). Sobre essa citação, como afirma Susanna Mati, “[...] Bataille se detém, demora e para” (2010, p. 59). O estarrecimento se dá nas consequências de manter a negatividade em sua forma mais devastadora, sustentar a morte. É como se Hegel olhasse a morte nos olhos, soubesse que ela é terrível. Para Bataille, Hegel foi ao extremo do negativo, manteve os olhos fixos no extremo do negativo, porém, manter-se aí é permanecer distante da conciliação própria ao movimento dialético pela negatividade determinada. Conforme Hegel:

Portanto, manter-se junto ao mortuum é limitar-se (literalmente) à antítese, junto ao segundo passo que nega o primeiro, não conseguindo imaginar-se uma Aufhebung [uma superação] (ou um remédio?) a tanta extrema potência, à devastadora e irredimível obra da negatividade (2014, p. 41).

Mas, segundo Bataille (1988a), Hegel desviou o olhar do extremo negativo e fez da morte um horizonte para o sentido e o saber, fez da experiência da consciência a conservação

de si próximo à morte para poder realizar a negatividade determinada. Superar o encontro com a morte é próprio à realização do Espírito como totalidade dialética do Ser, “entidade- objetivamente-real”, como diz Kojève (2002, p. 500). Como ser-em-si-e-para-si, o Espírito comporta o movimento dialético do absoluto enquanto totalidade integrada do Ser e do real, isto é, quando há unidade entre “substância e sujeito”, e o sujeito sabendo-se como tal (KOJÉVE, 2002, p. 499-500). Colocar-se face a face com a morte, na filosofia de Hegel, acarreta a elevação da consciência ao espírito, de modo que a vida que segue mesmo olhando a morte é a vida da consciência que se tornará espírito e garantirá, segundo Kojève, o desenvolvimento da história. Não se trata, pois, de uma mera vida natural poupada da morte, mas da vida espiritual que junto à morte se conserva, realiza o movimento dialético. Conforme Hegel: “[...] não é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida do espírito” (2014, p. 41). O sujeito aí, que para Hegel é o substancial, tem aquele “poder mágico” do espírito, que se demora junto ao negativo e transforma-o em ser.

Frente a esse demorar que opera, que transforma o negativo em ser, Bataille vê uma espécie de drama, o drama de Hegel como um homem mutilado, pois abriu mão do extremo para pô-lo a serviço de uma operação de construção de sentido, a uma satisfação do espírito50. Dessa situação, que poderia ser trágica, a do homem mutilado, mas sabendo dos extremos, Bataille desata um riso frente a ela, frente à situação do espírito satisfeito:

Pequena recapitulação cômica. – Hegel, imagino, tocou no extremo. Era jovem ainda e acreditou tornar-se louco. Imagino mesmo que ele elaborava o sistema para escapar (cada tipo de conquista, sem dúvida, é o fato de um homem fugindo de uma ameaça). Por fim, Hegel chega à satisfação, vira as costas ao extremo. A súplica morreu nele. Que procuremos a salvação, ainda passa, continuamos a viver, não podemos estar seguros, é preciso continuar a suplicar. Hegel ganhou, vivo, a salvação, matou a suplicação, mutilou-se. Dele não restou senão um cabo de pá, um homem moderno. Mas antes de se mutilar, sem dúvida, ele tocou o extremo, conheceu a suplicação: sua memória o leva ao abismo percebido, para o anular! O sistema é anulação (1973a, p. 56, grifo do autor).

Nessas palavras, percebemos o teor de confronto com a filosofia hegeliana, o saber que dela segue, segundo Bataille, é o saber do mundo da ação. Trata-se inicialmente de uma filosofia da morte, pois, como sugere Kojève, tudo parte dela, mas para desembocar no andamento da história por sujeitos que, graças ao trabalho, buscam uma vida mais livre. O pensamento de Hegel, para Bataille, tem um apelo abismal sobre a realidade, mas que em

seguida dirige as forças para a construção e elaboração da realidade e do seu sentido. Bataille comenta:

Insisto sobre a conexão contínua de um aspecto abissal com um aspecto duro, terra a terra, desta filosofia, a única que teve a pretensão de ser completa. As possibilidades divergentes das figuras humanas opostas se afrontam e se juntam, a figura do moribundo e aquela do homem orgulhoso que se desviam da morte, a figura do senhor e aquela do homem adicto ao trabalho, a figura do revolucionário e aquela do cético, cujo interesse egoísta limita o desejo. Esta filosofia não é somente uma filosofia da morte, é também uma filosofia da luta de classes e do trabalho (1988a, p. 334).

Para Bataille, a filosofia da morte de Hegel tem um cunho marxista, sobretudo porque, como afirma Derrida, Bataille não vê diferença entre Hegel e a interpretação marxista por parte de Kojève51. Para a interpretação kojèviana da filosofia de Hegel, a morte coloca ao

sujeito o horizonte de sua finitude que o lança ao mundo da ação, graças ao trabalho, que tem a luta de classes como palco para a transformação da realidade humana. Para Bataille, o que surge desse pensamento é que o discurso, o saber, a satisfação e a ação estão estritamente relacionadas, de modo que alterar esse domínio filosófico, que se faz modelo para a filosofia, implica admitir aquilo que Hegel recusou: o excesso do discurso filosófico. Nesse sentido, Derrida expõe o pensamento de Bataille em profunda aproximação a Hegel, admitindo-o como um “hegelianismo sem reserva”.

O título do ensaio de Derrida sobre Bataille é “Da economia restrita à economia geral: um hegelianismo sem reserva”, e se encontra em A escritura e a diferença, publicado em 1967. Nesse ensaio Derrida analisa a obra e a escritura de Bataille percorrendo o caminho da crítica ao pensamento de Hegel. Mas tal crítica salienta que quanto mais a escritura de Bataille se distancia do discurso hegeliano, mais próxima dele está. “Considerados um a um e imobilizados fora da sintaxe deles, todos os conceitos de Bataille são hegelianos”, afirma Derrida (2011, p. 371). No entanto, não se trata – e nem precisamos – de uma descrição das

51 Em “Da economia restrita à economia geral: um hegelianismo sem reserva” Derrida aponta para a

ausência de desconfiança, por parte de Bataille, no tocante à interpretação de Kojève sobre o pensamento de Hegel. Ele diz: “Observemos desde já que, pelo menos aos olhos de Bataille, nenhuma ruptura fundamental aparecia entre a leitura de Hegel por Kojève, que ele reconhecia subscrever quase totalmente, e o verdadeiro ensino do marxismo. [...] Saibamos já que, positiva ou negativa, a apreciação do hegelianismo por Bataille devia a seus olhos traduzir-se, tal qual, numa apreciação do marxismo” (DERRIDA, 2011, p. 370-371).

convergências e divergências presentes na obra de batailliana em relação ao pensamento de Hegel, ou até que ponto Bataille é fiel a Hegel etc52.

De todo modo, o que cabe colocar é que, frente ao discurso filosófico, Bataille faz desatar o riso. A condição da consciência servil para alcançar a verdade da certeza de si mesma é ser servil, é trabalhar, é ser consciência recalcada, é retardar seu desejo. A independência do senhorio, por outro lado, é na realidade uma dependência total. A vida, por mais que tenha sido colocada em xeque, exige permanecer intocável, ela é o suporte de toda a experiência que a consciência faz. O riso se desata exatamente dessa comicidade da economia da vida que o senhorio se propõe. Conforme Derrida: “[...] essa economia da vida restringe-se à conservação, à circulação e à reprodução de si, assim como do sentido; a partir de então, tudo o que é abarcado pelo nome de senhorio desaba na comédia” (2011, p. 374). A comédia ainda se faz maior quando, na dialética entre as consciências-de-si, a condição para a liberdade é a servilidade, é ser escravo53. Na figura do escravo a consciência-de-si alcança a verdade de si mesma e a liberdade, que encadeia a história e o sentido. Até mesmo quando a consciência servil conquista a verdade da certeza de si mesma, ela permanece como consciência recalcada, refreando seus desejos na atividade laboral. A constituição da consciência-de-si, da verdade e do sentido, segundo Derrida, passa por essa situação, cômica aos olhos de Bataille.

A independência da consciência de si torna-se risível no momento em que ela se liberta escravizando-se, em que ela entra em trabalho, isto é, em dialética. Só o riso excede a dialética e o dialetista: só explode após a

52

Como já firmava Paulo Arantes (1991), sobre essa mediação de Kojève na interpretação de Hegel por parte de grandes pensadores franceses contemporâneos, como Bataille, Sartre, Merlau-Ponty, Lacan etc.: trata-se de “Um Hegel errado mas vivo”.

53 Safatle problematiza a releitura daqueles que veem o “abrir mão” da particularidade e da

determinação individual da consciência servil ao senhor no caminho para a conquista da liberdade como algo negativo. Passar pelo momento de subserviência após o medo da morte, segundo Safatle, garante à consciência realizar a saída da particularidade rumo ao universal na medida em que, seu desejo esvaziado de determinação de interesse individual (pois trabalha para um outro), experimenta em si o encontro com o fundamento, que é indeterminação. Conforme Safatle: “Nesse contexto, a morte não é uma simples destruição da consciência (e toda confusão nesse sentido deve ser fortemente rechaçada como um equívoco profundo), não é um simples despedaçar-se (zugrunde gehen), mas um modo de ir ao fundamento (zu Grund gehen). Pois a confrontação com a morte é experiência fenomenológica que visa exprimir o acesso ao caráter inicialmente indeterminado do fundamento” (2012, p. 50). Nesse sentido, esvaziar-se perante um senhor absoluto que fragiliza as determinações do Eu é condição essencial para a conquista da autonomia e da certeza de si mesma por parte da consciência em seu percurso fenomenológico, e nada tem a ver com ideias de repressão, ressentimento etc. Ele continua: “A dialética precisa, pois , aceder a um fundamento não mais dependente da forma autoidêntica do Eu, o que é possível através da superação dos modos naturalizados de determinação, através da fragilização das imagens de mundo que orientam e constituem nosso campo estruturado de experiências” (2012, p. 51).

renúncia absoluta ao sentido; após o risco absoluto da morte, após aquilo que Hegel chama de negatividade abstrata (DERRIDA, 2011, p. 374).

Bataille escancara o riso frente à completa submissão ao sentido no pensamento de Hegel, que faz da colocação em jogo da vida um momento de investimento, que faz do extremo negativo da morte um horizonte para a elaboração de obras etc. Mas esse riso não é um riso comum, não é um riso meia boca. É como um riso dionisíaco, como aquele que Nietzsche afirmou em seus escritos, um riso descontrolado, que não é possível colocar em operação, que se opõe à rentabilidade da vida. Aquele que ri é lançado para o desconhecido imprevisível, é tomado pelo riso, possesso por um desencadeamento interior. O riso tem o caráter do desconhecido e do incognoscível, domínio fechado para a consciência clara (BATAILLE, 1976h). A comoção do riso afasta momentaneamente o sujeito do sentimento de segurança e estabilidade das coisas. Podemos ler em Bataille:

Aquilo que nos faz rir, em suma, nos faz passar muito bruscamente, de repente, de um mundo onde cada coisa está bem qualificada, onde cada coisa está dada em sua estabilidade, em uma ordem estável em geral, à um mundo onde subitamente nossa segurança é revirada, onde percebemos que esta segurança era enganosa, e que, lá onde havíamos acreditado que toda coisa estava prevista, ocorrera o imprevisível, um elemento imprevisível e que revira, nos revelando, assim, uma verdade última (1976h, p. 216).

Trata-se do riso que estremece, que leva o sujeito a uma descentralização, na vertigem de sua própria derrocada. O riso liga-se àquela verdade do excesso, do tumulto do ser que persiste na fulguração do inacabamento e da contestação. Contrário à economia da vida, o riso põe-se nas vias da intensidade, do ápice que preconizou Bataille em La somme atéologique:

O riso apresenta a verdade que desnuda a laceração do ápice: que nossa vontade de fixar o ser é maldita. O riso desliza na superfície ao longo de depressões ligeiras: o dilaceramento abre o abismo. Abismo e depressões são um mesmo vazio: a inanidade do ser que nós somos. O ser em nós se furta, ele nos falta, na medida em que nos fechamos no ipse, pois ele é desejo – necessidade – de abraçar tudo. E o fato de saber claramente a comédia não muda nada. As escapatórias (a humildade, a morte em si mesma, a crença no poder da razão) são somente vias por onde nos metemos mais e mais (1973a, p. 107-108).

É no sentido de emoções fortes que o riso se insere nas considerações de Bataille, permanecendo fora do sistema dialético hegeliano, pois não é negatividade que se faz em obra. O riso, como o êxtase, ou como o erotismo, é uma das faces do dispêndio e do excesso

que se furtam ao aproveitamento. Como afirma Luiz Renato Martins, “[não] se determinam em nenhum sentido” (1992, p. 423). Segundo Martins, a ruptura com a fenomenologia hegeliana perpassa exatamente aí, numa ampliação da experiência que não se dá somente como saber, mas como questionamento do finalismo da experiência. Ele acrescenta: “[...] a preocupação maior é considerar a heterogeneidade do espírito, negligenciada tanto pela fenomenologia hegeliana quanto pela contemporânea” (1992, p. 423). O ponto fulcral nessas considerações é o estatuto de insubordinação do riso, nele o sujeito não faz experiência de aproveitamento, isto é, de submissão a algum sentido. O riso, portanto, é um riso soberano. É um riso que compartilha o extremo negativo, a morte, pois dela não se aproveita nada, e ela não se mostra em sua negatividade absoluta na construção do sentido, pois, segundo Derrida, a operação da dialética é que a todo momento recomeça o trabalho. É nessa perspectiva que Derrida afirma:

Riso que, literalmente, não aparece nunca, visto que ele excede a fenomenalidade em geral, a possibilidade absoluta do sentido. E a própria palavra ‘riso’ deve ler-se na explosão, também no estouro de seu núcleo de sentido em direção ao sistema da operação soberana (2011, p. 374).

A própria noção de “sistema da operação soberana” surge como um oxímoro, pois “sistema” e “operação” são incompatíveis com a noção de “soberania”. É próprio da operação haver um aproveitamento de forças ou recursos; é próprio de um sistema uma rede de inteligibilidade, previsão e resultado conforme algumas operações. Tudo isso tem o estatuto de subordinar aquele que está inserido na operação e no sistema às suas designações, aos seus referenciais etc. Soberania é a insubordinação a qualquer coisa, é um “não estar sujeito a”, esse é o “sentido” do termo no vocabulário batailliano (BATAILLE, 1973c). Em La souveraineté, escrito póstumo, Bataille afirma o seguinte sobre a soberania:

Jamais nada de soberano deveria servir ao útil. As obras, todas as obras, tendo por fim último e inacessível este elemento miraculoso que ilumina o ser, o transfigura e lhe confere, além da pobreza da coisa, essa autenticidade fabulosa, que jamais se deixar pôr à medida do trabalho humilhante (1976f, p. 273, grifo nosso).

Miraculosa, a soberania escapa da realidade prosaica do mundo das coisas úteis. A