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CAPÍTULO 1 – O PRIMEIRO CENÁRIO: DESPROPORÇÃO E AUSÊNCIA DA

1.2 Documents e o embate entre Bataille e Breton: as sementes de um pensamento aberto

1.2.2 A negação da forma humana ideal

O alvo visado em Documents é a regularidade do mundo implícita nos discursos idealistas, tanto referentes à natureza quanto à forma humana. Em se tratando da natureza, Bataille abordou outras manifestações desviadas, as não necessariamente belas, de modo a desfazer a discursividade que encadeia a própria natureza numa forma idealizada. A natureza também produz desvio, como os monstros que arrebataram os espíritos no século XVI da história europeia, de tal modo que Pierre Boaistuau afirma, na passagem citada por Bataille em “Les écarts de la nature”:

Dentre todas as coisas que podem ser contempladas sob a concavidade dos céus, não se vê nada que desperte mais o espírito humano, que arrebate mais os sentidos, que aterrorize mais, que provoque nas criaturas uma admiração ou um terror maior do que os monstros, os prodígios e as abominações pelas quais vemos as obras da natureza reviradas, mutiladas e truncadas (BOAISTUAU apud BATAILLE, 1930b, p. 79).

O texto “Les écarts de la nature”, publicado no número 3 do segundo ano de Documents, é apresentado em meio às imagens intituladas “Os desvios da natureza”, do Sr. e da Sra. Regnault. O título do texto batailliano é tomado de empréstimo dessa série de imagens gravadas e coloridas em 1775. Essas imagens retratam gêmeos siameses grudados pelas costas ou pelas cabeças (Double Enfants), corpos infantis sem cabeças, um corpo infantil com uma cabeça contendo duas faces e um olho na testa (Enfant Monstrueux). Segundo Bataille (1930b, p. 79), esse álbum confeccionado pelos Ragnault “testemunha, sobretudo, o fato que, de um modo ou de outro, em uma época ou em outra, a espécie humana não pode permanecer fria perante seus monstros”.

Guiado por essa teratologia, com o imperativo de não permanecer frio perante os monstros da natureza e dos homens, Bataille mina toda noção de ideal e do dever ser. Se ele fala sobre a beleza é para afirmar que esta é considerada segundo uma medida comum, mas que cada rosto é individualizado, irredutível à identificação de uma regularidade das formas.

Escapando dessa regularidade, por justamente ser irredutível, cada rosto é um monstro em alguma medida (BATAILLE, 1930b, p. 82).

No número 4 do primeiro ano de Documents, Bataille já havia, em outro texto, remetido o aspecto humano a um conglomerado de monstros. Isso foi na ocasião da referência a uma foto de casamento burguês, presente no texto “Figure humaine”.

Figura 5 – Mariage. Seine-et-Marne (1905)

Fonte: BATAILLE, 1929c.

O monstruoso aqui é tratado como o abismo das diferenças e das individualidades expressas nos rostos de cada um que posa na foto do casamento burguês, de modo que, a partir disso, Bataille admite não haver uma natureza humana. O autor está, na realidade, constatando a confrontação entre as formas fixas e organizadas (lineares) humanas do senso comum e o próprio consenso modernista da ausência da natureza humana.

Se admitimos, ao contrário, que nossa agitação mais extrema estava dada, por exemplo, no estado de espírito humano representado por tal casamento provincial, fotografado há quase vinte e cinco anos, nós nos colocamos fora das regras estabelecidas, no sentido de que uma verdadeira negação da

existência da natureza humana está implicada (BATAILLE, 1929c, p. 196, grifo do autor).

A justaposição entre imagem e texto atua aqui de modo crucial, pois a percepção e afecção através da foto do casamento burguês resultam no estranhamento em relação a alguma forma humana, podendo-se questionar existência de algum elo fundamental capaz de conciliar os abismos existentes entre as faces lânguidas dos convivas e dos noivos. Além desse aspecto, a discussão através do uso das imagens por Bataille suscita, como afirma Marcelo Jacques de Moraes, “[...] a dimensão fantasmática, alucinatória [...] da percepção e do desejo humanos, o que o leva a recusar a própria ‘existência de uma natureza humana” (MORAES, 2005, p. 109). O caráter “improvável” dos rostos produz o espectro monstruoso, não similar, dessemelhante, que constitui o traço mais humano da pretensa “natureza humana”. Para Bataille, é nesse panorama que as pessoas ajuntadas na referida foto do casamento burguês não passam de um conglomerado monstruoso de corpos engessados em seus trajes, posando em frente a uma loja de ferragens (quincaillerie). Por contraste, podemos olhar esse grupo como

[...] o próprio princípio de nossa atividade mental mais civilizada e mais violenta, e, se quisermos, de um modo simbólico, o par matrimonial, entre outros, como o pai e a mãe de uma revolta selvagem e apocalíptica, uma justaposição de monstros que se engendram incompatíveis estariam a substituir a pretendida continuidade de nossa natureza (BATAILLE, 1929c, p.196).

O que Bataille quer afirmar é a desproporção (desproportion) e a ausência de relação (absence de rapport) entre os homens, o que incide na negação de uma natureza humana contínua. Trata-se de uma ruptura com a ideia de “qualidades eminentes” que compõem esta natureza. É interessante notar que isso também é feito em Documents, pela exposição do aspecto deslocado e absurdo de fotos de atores e atrizes em trajes e poses ridiculamente burguesas e assombrosas.

Percebe-se, como dito, que Bataille se utiliza da pulverização modernista da forma humana para colocar-se em posição de desmentir qualquer modelo da mesma (MORAES, 2010, p. 127). Nessa perspectiva, “Figure humaine” é o primeiro texto onde precisamente as belas formas humanas, sustentadas por ideais de nobreza, serão interrogadas diretamente. Isso leva a uma total cisão com qualquer antropomorfismo que se queira estabelecer como originador tanto de uma correspondência entre ser humano e natureza, quanto de uma

superioridade humana em meio ao vai e vem de outras formas de vida. Para isso, desfigura-se também o ar de importância de sua forma em meio à justaposição de imagem e texto.

A pulverização da forma humana retira de cena a linearidade representacional sobre o homem, de modo que, ao invés de haver uma tranquilidade e confiança das formas clássicas de sua representação, o que há é o espaço aberto para a surpresa e para o choque. A sequência clara e distinta, reconfortante para o espírito, não tem mais vez. Em Documents, nesse sentido, se faz uso daquilo que Denis Hollier salientou de sua proposta como revista de “variedades”: a licença para chocar (HOLLIER, 1991). O choque, a surpresa, vem pela abertura da ausência de regularidade das formas. Através das fotos dos atores em trajes burgueses, registradas por Nadar, Bataille afirma o caráter improvável da “figura humana”. Sua visão fantasmagórica surpreende tanto quanto “[...] a de uma mosca sobre o nariz de um orador” (BATAILLE, 1929c, p. 196).

Figura 6 – Fotomontagem de atrizes

Fonte: BATAILLE, 1929c.

A noção de “figura humana” passa a ser reduzida à impureza e à perturbação. A desproporção dos traços lineares se evidencia nesse contexto justamente pelo caráter improvável do humano, tal como uma mosca, quer no nariz de um orador, quer num prato de sopa, que põe em questão o encadeamento justaposto projetado no mundo. Esse encadeamento implica uma valoração homogeneizadora do ser humano, que inclui um possível pertencimento a uma organização existencial superior, carregada de importância.

No mesmo número de Documents, em que se encontra “Figure humaine”, Bataille publica também três quadros de Salvador Dali: “O mel é mais doce que o sangue” (Le miel est plus doux que le sang), de 1927, “Banhistas” (Baigneuses), de 1928, e “Nu feminino” (Nu féminin), de 1928. As últimas duas mostram troncos torcidos, desfigurados à beira mar, com seus sexos quase escondidos em meio a uma metamorfose de corpos sem formas que povoam um espaço com o céu azul, se aliando em contexto ao primeiro quadro. A ausência de semelhança a qualquer banhista ou nu feminino ajunta-se à desfiguração de “O mel é mais doce que o sangue”, no qual as formas corporais humanas subsistem espalhadas na própria laceração de sua ordem: uma cabeça afastada do corpo nu com pés mutilados, lado a lado de animais em putrefação, perturbados por nuvens de moscas, visitados pelo esvanecimento com sombras e ossos a formar silhuetas e espectros no chão de uma paisagem desolada.

Figura 7 – Baigneuses (1928)

Fonte: Acervo digital da Fundação Gala-Salvador Dalí20.

20 Disponível em: https://www.salvador-dali.org/fr/oeuvre/catalogue-raisonne-peinture/1928/203/baigneuses.

Figura 8 – Nu féminin (1928)

Fonte: Acervo digital da Fundação Gala-Salvador Dalí21.

21 Disponível em: https://www.salvador-dali.org/fr/oeuvre/catalogue-raisonne-peinture/1928/202/nu-feminin.

Figura 9 – Le miel est plus doux que le sang (1927)

Fonte: Acervo digital da Fundação Gala-Salvador Dalí22.

Podemos ver entre os quadros de Dali e o texto “Figure humaine” um elo parental estranho que expõe a ruína da pretensa superioridade da figura humana. Ora, a monstruosidade afirmada por Bataille, na concepção da ausência de uma natureza humana, parece se refletir no informe dos destroços e das massas libidinosas humanas de Dali. Além disso, em Documents, o caráter de irregularidade se evidencia na própria disposição dos quadros numa sequência de imagens referentes a resenhas de discos de jazz, musicais de comédias americanas e à seção intitulada “Dictionnaire critique”. O heteróclito (des)organizacional faz estremecer o referencial de distinção e importância humana pelo seu caráter embaralhador das formas, sem privilegiar um elemento dominador que norteie o que o ser humano é – eis a cabeça a rolar separada do corpo mutilado de “O mel é mais doce que o sangue”, ou a carne desordenada com unhas e pelos pubianos que sugerem a estranheza da

22 Disponível em: https://www.salvador-dali.org/fr/oeuvre/catalogue-raisonne-peinture/1927/194/le-miel-est-

sexualidade de um nu feminino de Dali. É a consideração da “monstruosidade sem demência” dos noivos burgueses em frente à quincaillerie que expurga o espírito de clareza determinante e valorativa da existência.

Nessa perspectiva, Documents se ergue, em seu contexto, como uma revista anti- surrealista, como um cavalo de batalha, uma “máquina de guerra”, à qual seus dissidentes ligaram-se um a um (SURYA, 2012). A investida contra o grupo de Breton é direta, como no caso da última imagem de “Figure humaine”. Trata-se de uma fotomontagem idealizada, talvez feita por Jacques-André Boiffard (VERGARA, 2013), na qual vemos um tabuleiro composto por fotografias de vários atores vestidos como seus respectivos personagens, oriundas do acervo de Félix Nadar. Esses atores estão em trajes burgueses circundando uma fotografia maior de um imponente Netuno que, sentado em seu trono, segura uma espécie de cetro, tendo um céu de papelão por atrás dele. O excêntrico e magistral Netuno era interpretado pelo ator Jean Mounet-Sully, representando seu personagem para a peça Amphitryon, de Molière.

Figura 10 – Fotomontagem da revista Documents (1929)

Fonte: BATAILLE, 1929c.

Em Documents, essa fotomontagem (figura 10) é uma espécie de “paródia” de outra fotomontagem (figura 11) publicada anos antes, em dezembro de 1924, no primeiro número

da revista vanguardista La révolution surréaliste, encabeçada por Breton. A montagem surrealista é feita a partir de fotos, dispostas também em forma de tabuleiro, dos rostos de vários surrealistas, incluindo também o rosto de pessoas famosas, porém, alheias ao movimento, tais como Picasso e Freud. As faces dos surrealistas circundam uma face maior, uma fotografia retirada dos arquivos da polícia, que ocupa o centro do tabuleiro: trata-se da imagem da anarquista Germaine Berton, acusada de ter assassinado Marius Plateau, figura antissemita e de extrema direita, secretário de redação de L’action française (VERGARA, 2013). No final da fotomontagem surrealista está escrita a seguinte frase de Baudelaire: “A mulher é o ser que projeta a maior sombra ou a maior luz em nossos sonhos”.

FIGURA 11 – Fotomontagem da revista La Révolution surréaliste (1924)

Fonte: Ilustração da revista La Révolution surréaliste.

De que maneira a fotomontagem em Documents é uma crítica, enquanto paródia, ao surrealismo? O é na medida em que, como salienta Didi-Huberman (2015), incorpora a derrisão do antropomorfismo, sobretudo burguês. A fotomontagem de La révolution surréaliste expõe uma autorrepresentação de membros “oficiais” do movimento surrealista,

expondo a importante adesão e apoio ao feito da anarquista assassina, que simbolizava para eles um ato contra a opressão, de tal modo que Louis Aragon afirma que ela, Germaine Berton, “[...] é o maior desafio que conheço à escravidão, o mais belo protesto elevado à face do mundo contra a mentira odiosa daquele que é feliz” (ARAGON, 1924, p. 12). Uma mulher, com nome e história pessoal, transformada numa heroína do mal, no tabuleiro homenageada pelos cegos de olhos abertos, pois tanto a luz mais intensa quanto a sombra mais escura impedem de ver qualquer coisa. Há nessa fotomontagem uma ligação significativa entre aqueles que homenageiam Germaine Berton, no entanto, em Documents, as referidas imagens dos surrealistas foram substituídas por imagens de burgueses ridicularmente trajados, “artistas oficiais do mundo do espetáculos”, como bem descreve Didi-Huberman (2013, p.54): “[...] Johann Strauss, com suas inenarráveis suíças, ou então ‘Mademoiselle Cécile Sorel’, toda florida como um bolo recoberto de frutos confeitados, e vestindo suas asas de borboleta factícias, para as necessidades de não sei que pecinha de teatro”.

A fotomontagem em Documents, como paródia daquela dos surrealistas, leva a forma