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CAPÍTULO 2 EXPERIÊNCIA: ÚNICA AUTORIDADE, ÚNICO VALOR

2.2 A experiência interior

2.2.5 Outra vez a angústia

2.2.5.1 Da angústia à delícia

Para Bataille, tudo está em transitividade, pois o excesso desconhece o repouso, de modo que a própria angústia é também excedida. O sujeito aberto a si mesmo na angústia não se reduz a ela. O homem, na experiência interior, também está aberto ao êxtase. A questão da angústia no pensamento de Bataille tem uma referência clara a Martin Heidegger, sobretudo

aos textos do final da década de 1920, Ser e tempo (1927) e Que é metafísica? (1929). Mas, apesar do nítido diálogo com o pensamento heideggeriano sobre questão da angústia, há um ponto fulcral de divergência entre os autores que concerne à presença do êxtase na experiência da angústia.

Em sua analítica existencial, Heidegger (1979; 2014) postula que a angústia é uma disposição de humor fundamental que existe como possibilidade no ser-aí (dasein), ou seja, no homem enquanto ente que está compreendido em seu habitar no mundo. Essa disposição fundamental, a angústia, revela a totalidade do ser do homem, ao mesmo tempo em que é o “acontecimento fundamental de nosso ser-aí” (HEIDEGGER, 1979, p. 39). Como afirma Marco Werler, a angústia é a resposta que Heidegger dá ao perguntar-se sobre em qual traço constitutivo do ser humano se define a sua totalidade. Assim, o conceito de angústia é tomado como “[...] disposição compreensiva que oferece o solo fenomenológico-hermenêutico para a apreensão explícita da totalidade originária do Dasein” (WELER, 2003, p. 104). Isso implica dizer que, guiado pelo “retorno às coisas mesmas”, próprio da fenomenologia husserliana, e por buscar compreender o sentido do ser a partir de dentro, Heidegger concerne à angústia o estatuto de experiência de autenticidade do ser. O modo como o dasein existe no mundo, onde lida com coisas e com outros seres humanos é, na maior parte do tempo, uma existência de decadência do ser, na medida em que o dasein está distante de si mesmo. Estar no mundo em meio as suas ocupações leva a uma espécie de despersonalização de si, trata-se de uma vida em meio à indiferença entre tantos outros seres humanos, na qual o dasein está encoberto para si mesmo. A experiência da angústia é o momento em que se dá, segundo Heidegger, uma abertura ao dasein para o encontro de seu próprio fundamento. Não é no modo de existência indiferenciada, do a gente intramundano,

[mas] só na angústia reside a possibilidade de uma assinalada abertura, porque ela isola. Esse isolamento resgata o Dasein do seu decair e lhe torna manifestas a propriedade e a impropriedade como possibilidades do seu ser. Essas possibilidades fundamentais do Dasein, que é cada vez meu, mostram- se na angústia como são em si mesmas, não deturpadas pelo ente do interior- do-mundo ao qual o Dasein se agarra de pronto e no mais das vezes (HEIDEGGER, 2014, p. 533, grifo do autor).

A angústia abre a possibilidade de o Dasein ter o seu fundamento revelado para si. Mas o que é revelado? O que se torna manifesto na angústia? “A angústia manifesta o nada”, diz Heidegger (1979, p. 39). Na experiência da angústia, onde o nada é manifestado, há uma saída da inautenticidade presente na existência humana em meio à cotidianidade. Na angústia,

o ser está junto ao nada em sua indeterminação, onde o sentido do ser não é determinado por nenhum ente e não pode ter significação (WELER, 2013, p. 109). Mas tudo isso é um acontecimento para o ente, que na angústia tem a experiência de sua totalidade, à qual o nada se junta. Conforme Heidegger: “[...] na angústia deparamos com o nada juntamente com o ente em sua totalidade” (HEIDEGGER, 2014, p. 40). O nada pertence à revelação originária do fundamento do Dasein para si mesmo: “O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à essência mesma (do ser). No ser do ente acontece o nadificar do nada” (HEIDEGGER, 2014, p. 41).

Em Ser e tempo a angústia adquire uma dimensão ontológica na medida em que manifesta o nada junto com a totalidade do ente privilegiado ontologicamente, o Dasein, que coloca para si a questão do ser em geral. Segundo Heidegger, o nada que é manifestado na angústia vivida pelo Dasein também é a causa da própria angústia. Diferente do medo, a angústia, para Heidegger, é o sentimento oriundo de uma ameaça. Mas qual o objeto ameaçador que gera a angústia? A pergunta não é “porquê a angústia?”, mas “diante do que se dá a angústia?”. Categoricamente afirma Heidegger: “Que o ameaçador não esteja em parte alguma caracteriza o diante-de-quê da angústia. A angústia ‘não sabe’ o que é aquilo diante- de-quê se angustia” (2014, p. 523). Mais adiante lemos: “No diante-de-quê da angústia torna- se manifesto o ‘não é nada nem em parte alguma’” (2014, p. 523). O objeto propiciador da angústia é indeterminado. Em Que é metafísica? vemos essa indeterminação expressa do seguinte modo:

Sem dúvida, a angústia é sempre angústia diante de..., mas não angústia disto ou aquilo. A angústia diante de... é sempre angústia por..., mas não por isto ou aquilo. O caráter de indeterminação daquilo diante de e por que nos angustiamos, contudo, não é apenas uma simples falta de determinação, mas a essencial impossibilidade de determinação (HEIDEGGER, 1979, p. 39). O sentimento da “essencial impossibilidade de determinação” é originado pelo nada. O nada não é somente manifestado na angústia, mas ele também a propicia. É nesse sentido que Heidegger afirma que “[o] próprio nada nadifica” (1979, p. 40), levando o sujeito a uma estranheza em face do nada manifestado. Perde-se, frente ao nada, todo sentido do existir e a tranquilidade da vida se esvai na indeterminação própria da angústia. Nessa medida o Dasein é remetido à sua totalidade, sentindo o fundamento do seu ser como ser angustiado que vive a estranheza em face do nada, como diz Marco Weler: “A angústia e o nada tomam o todo do ser do Dasein, fazendo com que o próprio ser-no-mundo seja abalado em suas bases e seja sentido em seu fundamento como angustiante” (2003, p. 109).

O que chama a atenção nas asserções heideggerianas é que a angústia é definida como uma experiência privilegiada de abertura do Dasein para o nada de seu fundamento. Mesmo tendo como objeto propiciador da angústia a “essencial impossibilidade de determinação”, é no puro existir onde a angústia se desencadeia. O estranhamento sentido na angústia nada mais é do que o existir humano em seu estado mais fundamental, longe de qualquer redução a princípios que norteiem o estar no mundo, ou seja, é o existir humano defrontando-se com o mundo como tal. Nessa perspectiva, o mundo como tal manifesta sua própria indeterminação, o nada diante do qual o Dasein está na medida em que está diante na angústia. Heidegger afirma: “Então, se o nada, isto é, o mundo como tal, se mostrou como o diante-de-quê da angústia, isto significa que aquilo diante de que a angústia se angustia é o ser-no-mundo ele mesmo” (2014, p. 525). Heidegger está se referindo aqui a um modo de existência que se distancia da cotidianidade na qual o ser humano se lança em meio a preocupações corriqueiras, distante do estar no mundo com sua própria essencialidade encoberta, tendo com isso uma tranquilidade oriunda do a gente impessoal da vida pública. A estranheza sentida pelo ser humano na angústia é, sobretudo, graças à ruptura dessa tranquilidade proveniente da vida corriqueira intramundana, ruptura com a segurança de si mesmo, com a familiaridade de um “ser em-casa”. A abertura na angústia caracteriza o encontrar do Dasein consigo mesmo através desse estranhamento onde nada se determina em nenhuma parte. Conforme Heidegger:

O encontrar-se – foi dito anteriormente – torna manifesto “como anda alguém”. Na angústia, ele sente-se “estranho”. Nisto se exprime de imediato a peculiar indeterminidade do que o Dasein encontra na angústia: o nada e o em parte alguma. Mas o estranhamento significa, então, ao mesmo tempo, o não-estar-em-casa (2014., p. 527).

Ora, para Bataille a questão da angústia em Heidegger poderia ser a ida ao extremo da experiência e teria tudo para ser um pensamento do extremo do possível, pois a abertura dada na angústia, no fundo, parece apontar para o problema da afirmação de uma experiência sem subterfúgios, a do mundo como tal. Mas Bataille discorda profundamente de um ponto decisivo do pensamento de Heidegger, a saber, a angústia como um estado de revelação da totalidade, no qual a nadificação revela o mundo em seu conjunto. Aos olhos de Bataille, Heidegger fundamenta todo o seu pensamento na angústia, ao passo que afirma: “eu parto do riso e não, como faz Heidegger em Was ist Metaphysik?, da angústia” (1973c, p. 217). Aqui se encontra um dos momentos de originalidade de Bataille em relação a Heidegger, pois, por mais que a experiência sem subterfúgios se dê como uma experiência da angústia, do sujeito

intranquilo, é no riso e no êxtase que a experiência desembocará. O sentido próprio da experiência do sem sentido para Bataille é o riso e o êxtase, de modo que o autor francês confessa, acerca de seu livro L’expérience intérieure: “Ensino a arte de transformar a angústia em delícia’, ‘glorificar’: todo o sentido deste livro. A aspereza em mim, a ‘infelicidade não é senão a condição” (1973a, p. 47).

Segundo Bataille, a experiência que se dá na angústia, por trazer à tona o excesso próprio do homem, vai em direção a uma espécie de superação da própria angústia, pois é experiência dos limites. Isso quer dizer que a angústia, como colocação em questão, é também saturada no questionamento, de modo que uma gargalhada explode em meio a ela. É nesse sentido, de ida aos limites, que o sujeito vive uma perda de si mesmo, pois, jogado na angústia que beira o riso, o caminho percorrido é o encontro com o excesso que não permite repouso. Claramente abre-se a perspectiva de um arrebatamento em meio à angústia, que leva a um sentimento paradoxal de suspensão da angústia na medida em que o sujeito ainda nela está mergulhado. Nesse sentido, Bataille narra uma experiência pessoal nas seguintes palavras:

Olhares onde percebo o caminho percorrido. – Há quinze anos atrás (talvez um pouco mais), eu vinha de não onde, tarde da noite. A rua de Rennes estava deserta. Vindo de Saint-Germain, atravessei a rua do Four (próximo aos correios). Carregava um guarda-chuva aberto e acredito que não estava chovendo (Mas eu não tinha bebido: estou dizendo, tenho certeza). Eu tinha este guarda-chuva aberto sem necessidade (senão aquela da qual falarei mais adiante). Eu era bastante jovem, caótico e pleno de embriaguezes vazias: uma ronda de ideias impróprias, vertiginosas, mas plenas já de preocupações, de rigor, e crucificantes, se davam em mim... Nesse naufrágio da razão, a angústia, a decadência solitária, a covardia, a má qualidade faziam morada: a festa um pouco mais longe começaria. O certo é que essa abastança, ao mesmo tempo o “impossível” confrontado explodiram em minha cabeça. Um espaço constelado de risos abriu seu abismo obscuro perante mim. Ao atravessar a rua do Four, tornei-me esse “nada” desconhecido, de repente... eu negava aqueles muros cinzas que me enclausuravam, me lancei num tipo de arrebatamento. Eu ria divinamente: o guarda-chuva fechado sobre minha cabeça me cobria (eu me cobria de propósito com esse sudário negro). Eu ria como jamais talvez se riu, o fundo do fundo de cada coisa se abria, desnudado, como se eu estivesse morto (1973a, p. 46).

Nessa confissão, a própria noção de desnudamento e de desconhecido carrega o sem sentido da experiência do êxtase e do riso no âmbito da angústia. Não há sentido porque nada se ganha, um conhecimento não é formado, pois nada se conhece, isto é, só há o não-saber (non-savoir). Diz Bataille: “O NÃO SABER DESNUDA” (1973a, p. 66, grifo do autor). Essa

ausência de conhecimento na experiência interior gera o não-saber que lança o sujeito para o sem sentido de si mesmo, colocado a nu, sem subterfúgio, mas, ao mesmo tempo, como experiência de abertura e desencadeamento – e entenda-se, aqui, desencadeamento como ausência de repouso, de petrificação. Dizer “o não-saber desnuda” implica, para Bataille, afirmar a perspectiva aberta, excessiva, acerca da existência humana, pois assume a extrema ausência de redenção existencial. Podemos ler em Bataille:

Esta proposição é o ápice, mas deve ser entendida assim: desnuda, então vejo o que o saber escondia até então, mas se vejo, sei. Com efeito, sei, mas o que eu soube, o não-saber o desnuda ainda. Se o não-sentido [non-sens] é o sentido, o sentido que é o não-sentido se perde, volta a ser não-sentido (sem repouso possível) (1973a, p. 66, trad. nossa).

A ausência de repouso caracteriza o pensamento batailliano. Segundo François Cuzin, a angústia para Bataille é diferente da angústia para Heidegger na medida em que, para o autor francês, como experiência do nada, a angústia obedece a uma dialética. A angústia em L’expérience intérieure está numa dialética com o êxtase e esta é o trato fundamental desse livro, “[...] a ligação dialética, o ritmo Angústia-Êxtase” (CUZIN, 2003, p. 32), ao passo que este trato não está presente no pensamento heideggeriano sobre a angústia. A ausência da dialética em Heidegger se dá na medida em que a angústia é o solo onde existe a abertura para uma cumplicidade entre o ser e o nada, na qual o sujeito experimenta a totalidade através da nadificação, essa “intimidade contemporânea entre um e outro”. Trata-se aí de uma angústia fundamental e nela se dá a nadificação, experiência privilegiada na qual o mundo é nadificado, ou seja, revelado em seu conjunto para o sujeito. Mas para Bataille esse sujeito é considerado como aquele que se vê pertencente à totalidade do mundo, mesmo no estranhamento do “não-estar-em casa”. Cuzin aborda essa questão nos seguintes termos:

Ora, a angústia não a-nadifica [a-néantit] o mundo, ela o nadifica [néantit], e assim ela o revela: é o deslizamento do conjunto dos existentes perante o sujeito e do sujeito aderente ao conjunto que dá à consciência a prova de um conjunto de existentes, de um mundo: o sujeito se dá, assim, a experiência de um poder que a angústia suporta e que ela enquadra – (na medida onde o sujeito heideggeriano se sente retido, e o mundo com ele, no interior de uma angústia fundamental) – mas que ela não encerra e nem aprisiona estreitamente. Dito de outro modo, a experiência do Nada em Heidegger é não dialética: O ser repousa sobre um fundo de nada sempre presente, ainda que mascarado, que se descobre em uma experiência privilegiada, normalmente resolvida pela reflexão por uma tomada de consciência da liberdade do sujeito. Assim, a angústia traz à luz uma solidariedade contemporânea do nada e do ser: o ser repousa sobre o nada, mas o nada, a

seu modo, supõe um existente que nele se nadifica e que nessa nadificação não deixa de ser realmente um existente (2003, p. 32, grifo do autor).

A dialética ausente aí se dá na falta da negação entre ser e nada. Na experiência da angústia fundamental, em Heidegger, a nadificação revela o mundo ao sujeito, mas o sujeito ainda permanece existente, o que significa, em termos bataillianos, que o sujeito não parece ser colocado em questão. Cuzin contrapõe o tratamento do problema da angústia feito por Bataille ao tratamento de Heidegger na medida em que, para o autor de L’expérience intérieure, o sujeito não é de modo algum remetido à totalidade. “A experiência descrita por Bataille começa precisamente com a revolta do [ser] particular contra esta totalidade” (BATAILLE,1973a, p. 34). Na angústia, o sujeito desliza para a ida de seus limites e nesse deslizamento a angústia se afirma, uma vez que o sujeito que desliza ao extremo do possível é aquele que quis ser tudo. Pertencia ao ipse a tranquilidade rasgada na angústia. Bataille continua:

Na angústia, a consciência vê deslizar diante de si a totalidade do existente e desliza com ela. Assim, esta totalidade é revelada, e o fato que ela não é ela [a consciência], que ela se opõe a ela, é a condição de possibilidade da angústia. Eis então que surge para a consciência – como paliativo à angústia – a tentação de constituir a si mesma na totalidade: pois a totalidade dos possíveis desliza em seu conjunto, de tomá-la sobre si: de ser todo seu possível (1973a, p. 34).

Mas como essa crítica se sustenta? Como se dá esse direcionamento do sujeito à totalidade pela nadificação? O confronto com uma concepção de sujeito dilacerado, perdido nos limites de sua subjetividade é o que leva à colocação da crítica. O sujeito levado à saturação dos limites, no movimento de negação desenfreado, às fronteiras da vida mesma triscando a morte, no não-saber que o desnuda, é no fundo um sujeito que se coloca à altura do esvaziamento de si enquanto ser remetido a qualquer noção de totalidade. Sobre isso, ainda diz Cuzin: “A angústia é meu bem próprio, porque na angústia em caio em mim mesmo, eu descubro em mim mesmo aquilo que eu sou realmente no momento onde eu cesso de pretender ser nas formas do projeto e da vontade de totalidade: um nada [rien], um vazio [vide]” (2003, p. 31).

A essa altura é preciso salientar que se trata aqui de uma leitura sobre Heidegger, à qual, justamente, referimo-nos ao que foi citado de Bataille anteriormente: “eu parto do riso e não, como faz Heidegger em Was ist Metaphysik?, da angústia”. O êxtase se dá no riso, “[no]

riso, o êxtase é solto, imanente” (BATAILLE, 1973b, p. 348), e aí o elemento da perda de si é central.

Nessa perspectiva, a crítica a Heidegger se constrói na medida em que algumas noções nessa dialética não operativa entre angústia e êxtase estão imbuídas. No tratamento da questão da experiência, Bataille anuncia, nas primeiras páginas de L’expérience intérieure, que a relação entre sujeito e objeto na experiência interior é uma relação de fusão, onde as diferenças entre sujeito e objeto estão suprimidas. Isso está num contexto de afirmar a experiência como autoridade de si mesma, contrariando a filosofia que, aos olhos de Bataille, faz da experiência um meio para o saber, um objeto para o conhecimento, como reconhece em Heidegger, na medida em que suas obras pressupõem uma comunidade de professores, homens letrados e cultos buscando algum saber e aptos a entender as citações em grego sem tradução, feitas em Ser e tempo. Bataille afirma que a experiência pode ser submetida a autoridades alheias, a dogmas religiosos, à ciência, mas “[...] foi possível também subordiná- la ao conhecimento, como o faz a ontologia de Heidegger” (1973a, p. 19). Nas notas do primeiro tomo de La somme atéologique, Bataille expressa de modo mais claro o que lhe suscitou a leitura de Heidegger e nos remete à influência das noções do “filósofo da floresta” ao seu pensamento da seguinte forma:

Eu não quero ser colocado na continuação de Heidegger. [...] O pouco que eu conheço de Sein und Zeit me parece ao mesmo tempo judicioso, detestável. É possível que meu pensamento em alguns pontos proceda do seu. [...] Escolhi, no entanto, caminhos inteiramente outros e o que eu chego a dizer não é representado, em Heidegger, que por um silêncio [...]. Dito isto, este Heidegger não está mais em seu lugar na minha casa do que estaria o pintor com a sua escada mesmo se tivesse pintado os muros outrora (1973d, p. 474).

A proposta de Bataille, como dito anteriormente, é afirmar a vivência da experiência a partir de dentro, isto é, não fazendo dela um discurso ou um conhecimento, mas de fato vivendo-a. Numa nota de rodapé de Méthode de méditation (1947), o autor afirma claramente sua divergência com o pensamento heideggeriano, inscrevendo-se numa esteira de preocupações éticas a respeito do modo como o pensamento heideggeriano aborda a experiência40. Bataille escreve:

40 Segundo Habermas, em O discurso filosófico da modernidade, Bataille e Heidegger perseguem em

suas críticas o mesmo alvo: a racionalidade normativa e homogeneizadora. No entanto, os dois autores o fazem de modos diversos: Bataille, privilegiando uma crítica ética à racionalização, enquanto que Heidegger assume a crítica ontológica da mesma (HABERMAS, 2001).

[...] a obra publicada de Heidegger, pelo que me parece, é muito mais uma fábrica do que um copo de álcool (ela é o mesmo que um tratado de fabricação); é um trabalho professoral, cujo método subordinado fica colado aos resultados: contrariamente, o que conta, aos meus olhos, é o momento do descolamento, aquilo que ensino (se é verdade que...) é uma embriaguez, isso não é filosofia: não sou um filósofo, mas um santo, talvez um louco (1973c, p. 217-218).

A crítica e a renúncia em relação à filosofia se dão no plano de afirmação da experiência enquanto algo a ser vivido em seus mais diversos desenlaces. Um discurso filosófico não dá conta, aos olhos de Bataille, da experiência senão por uma espécie de mutilação da mesma ao transformá-la em conhecimento. A perspectiva que norteia essas concepções bataillianas advém da preocupação de que o discurso prolonga os interesses do projeto, do ser isolado41.

A experiência coloca em questão o projeto e todo modo de vida nele implicado. Assim, “[a] experiência atinge, por fim, a fusão do objeto e do sujeito, sendo como sujeito o não-saber e como objeto o desconhecido” (BATAILLE, 1973a, p. 21). A fusão do sujeito e do objeto se dá no desprendimento de uma existência isolada. O ser isolado é o ser da relação